Dia 28 de Março a Iniciativa Liberal apresentou mais uma proposta de reforma do sistema eleitoral que consiste, resumidamente, na introdução de um circulo de compensação com 30 mandatos. Podem consultar a página da proposta na AR ou o pdf da mesma.
Neste documento vamos analisar os 4 detalhes mais problemáticos da proposta:
uma imprecisão sobre a igualdade de voto, que até pode originar um problema de inconstitucionalidade;
a abertura do circulo nacional aos eleitores no estrangeiro, que torna a proposta (ainda) mais disruptiva e dá mais uma justificação fácil para que seja chumbada;
a imposição de um mínimo de mandatos por circulo, que é certamente inconstitucional, e que até tem uma solução alternativa simples;
a oportunidade perdida para deixar de prejudicar o interior na distribuição de mandatos, algo que já reúne um grande consenso.
Cada um destes pontos é introduzido com uma citação do projecto de lei, seguido da respectiva explicação.
“O círculo de compensação corrige as desproporcionalidades resultantes da organização por círculos eleitorais, garantindo que o voto de qualquer português vale o mesmo, onde quer que vote.”
Para que isto aconteça é preciso que o círculo tenha um tamanho mínimo, que apenas é sabido depois da eleição, porque depende da distribuição dos votos. Na prática em 2022 teriam sido precisos 37 mandatos.
Este facto pode parecer um detalhe, mas um círculo de tamanho insuficiente para garantir a igualdade de voto pode até ser inconstitucional, porque não permite a aplicação “pura” do método de Hondt. Nos Açores o círculo é ainda mais pequeno (proporcionalmente), e nunca foi suficiente para assegurar a aplicação do método de Hondt “puro”, mas aí não há problema, já que a imposição do método de Hondt apenas é uma exigência constitucional para as eleições legislativas (e não para as regionais)
“Há um círculo nacional de compensação, que coincide com a totalidade dos círculos eleitorais.”
Alargar o círculo de compensação aos eleitores no estrangeiro é um tema delicado, tanto que levou a IL a emendar a sua última proposta quase 2 meses depois da sua apresentação.
Sendo a favor ou contra, é inegável que o círculo nacional aberto também aos círculos da emigração introduz uma mudança significativa face ao que já tem sido proposto.
Por exemplo, o PS já chegou a propor círculos de compensação nacionais em projectos de lei, mas nunca um alargado aos círculos da emigração.
E se um círculo de compensação para o território nacional é normal em muitos países com sistema proporcionais, a igualdade plena entre residentes nacionais e residentes no estrangeiro já é mais rara.
Por exemplo, a Dinamarca, que tem dos sistemas mais proporcionais/equitativos do mundo, nos seus círculos das Ilhas Faroé e na Gronelândia mantém a eleição de 2 deputados em cada, sem que esses votos sejam incluídos no cálculo do círculo de compensação nacional (e o sistema eleitoral garante a igualdade dos votos nacionais há mais de 100 anos!)
Há até vários países europeus onde os residentes no estrangeiro nem podem votar, ou apenas o podem fazer por três anos (Dinamarca) ou com algumas restrições (Alemanha, Grécia, Irlanda, Suécia e Suíça).
Não está obviamente em causa o direito de voto dos emigrantes, que aliás, está garantida no artigo 49º da Constituição, mas abrir este debate é dar (mais) uma razão muito fácil para PS e PSD voltarem contra a proposta, sem ter de debater o ponto fundamental da mesma: quem votou na Lourinhã conseguiu contribuir para a eleição de qualquer dos 9 partidos presentes na AR, quem mora ali ao lado, em Peniche apenas teve 3 escolhas válidas.
“o número de deputados de cada círculo eleitoral não pode ser inferior a dois.”
Este ponto é inconstitucional. O artigo 149º diz: “O número de Deputados por cada círculo plurinominal do território nacional, excetuando o círculo nacional, quando exista, é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos.”
Impor um mínimo viola este princípio, quer esse mínimo seja 2 ou seja outro número qualquer, já que para esses círculos deixa de existir proporcionalidade. O que já foi apresentado antes (p.ex. pelo PS) é que nos casos em que um círculo tivesse menos que X mandatos, então passaria a estar automaticamente agregado a outro, para evitar que existam círculos demasiado pequenos.
“O número total de deputados pelos círculos eleitorais do território nacional é de 196, distribuídos proporcionalmente ao número de eleitores de cada círculo, segundo o método da média mais alta de Hondt...”
Se colocar um mínimo de 2 mandatos por círculo é inconstitucional, há formas legais de evitar que Portalegre passasse a ter apenas um mandato (o que também seria inconstitucional por não permitir a aplicação do método de Hondt).
Aliás, se a ideia desta proposta é (também) dar mais equidade aos territórios do interior então manter a aplicação do método de Hondt nesta distribuição não faz sentido, já que há soluções proporcionais mais equitativas, como o método de Webester/Sainte-Lague. Até porque esta redução de mandatos do interior já foi apontada na proposta da legislatura passada como justificação para o voto negativo do PS e do PSD.
Para comparação, o círculo nacional com 30 mandatos ia retirar, para os dados de 2022, um mandato a Évora, Beja, Castelo Branco, Vila Real, Viana do Castelo e Madeira.
Usando o método de Sainte-Lague, Évora, Beja e Castelo Branco seriam poupados a esta diminuição para apenas dois mandatos, e Portalegre fica muito mais distante de vir a ser reduzido a apenas 1 mandato, tornando irrelevante, nesta fase, a medida inconstitucional de fixar um limite mínimo. Na proposta anterior, com 40 mandatos de compensação, Portalegre ficaria reduzido a um mandato, mas usando o método de Sainte-Lague isso apenas aconteceria para um círculo com 78 mandatos, ai sim, já muito acima da % mínima recomendada.
A diferença não é radical, mas é consensual que reduziria o problema, dentro dos limites constitucionais, e tanto PS como PSD mostraram abertura a uma alteração destas no último processo de revisão constitucional, e o método do quociente (semelhante ao Sainte-Lague mas em pior) fez mesmo parte de uma apresentação do PSD em 2021.
Em soluções mais criativas, há vários países com um círculo de compensação "descentralizado", onde os mandatos que dai resultam são alocados directamente aos círculos eleitorais, evitando assim a redução da representatividade dos círculos mais pequenos pela introdução de um circulo de compensação, como acontece na Dinamarca, Suécia e Noruega. Uma solução que funciona harmoniosamente há mais de 100 anos, e que inspirou esta proposta para Portugal.
A proposta do Bloco de Esquerda
As diferenças são:
não engloba os círculos da emigração, o que a torna menos disruptiva
10 mandatos de compensação em vez de 30, ou seja deixa a igualdade mais longe
não exige um mínimo de 2 mandatos, o que evita a inconstitucionalidade (até Portalegre baixar para 1 mandato)
não estava no programa
Nesta proposta acontece ainda um fenómeno curioso, apenas possível quando o circulo de compensação não é suficientemente grande: a AD que teve mais votos que o PS, e mais 2 mandatos, passaria a ter menos 1 mandato, já que nesta configuração a AD perdia 5 mandatos, e o PS, por acaso, apenas 2.
A proposta do Livre
As diferenças são:
37 mandatos em vez de 30, precisamente o mínimo para garantir a igualdade absoluta nos resultados de 2022
sem prever agregação de círculos ou uma distribuição modificada Portalegre ficava apenas com um mandato e o sistema "bloqueava"
Em comum, nenhuma das propostas aproveitam para alterar o método de alocação de mandatos aos círculos, uma clara oportunidade perdida, e por isso em ambos os casos existem mais círculos com dois mandatos, Beja em todos os casos, Évora no caso da IL e adicionalmente Bragança no do Livre, entre outros círculos pequenos que se tornam mais pequenos ainda. Mais grave, na proposta do Livre, Portalegre ficaria com apenas um mandato, o que tornaria o sistema inconstitucional.
Para alguma dúvida ou sugestão: emcadavotoigualdade@gmail.com
Uma proposta de reforma inspirada no modelo dinamarquês: https://sites.google.com/view/emcadavotoigualdade
Análise da constitucionalidade do sistema actual: https://sites.google.com/view/resumo-inc
A falácia dos votos desperdiçados
Em muitas propostas fala-se no problema dos votos desperdiçados (ou perdidos), num artigo sobre o tema escreve-se assim: "A proposta de introdução de um círculo nacional de compensação visa, fundamentalmente, reduzir o número total de votos perdidos".
Os votos desperdiçados são algo a evitar, mas o objectivo fundamental deve ser sempre garantir a igualdade de voto. Se isto estiver garantido, os votos desperdiçados vão sempre baixar, mas o contrário não é necessariamente verdade.
Vão sempre haver votos desperdiçados, por exemplo se um partido receber 10 mil votos, esses nunca seriam suficientes para eleger em nenhum sistema.
Em 2024 houveram 575.400 votos desperdiçados no território nacional, que podiam ser aproveitados com um circulo de compensação com tamanho adequado.
No entanto bastava um circulo de compensação com 6 mandatos para aproveitar 79% desses votos desperdiçados! Todos os votos do BE, PCP, L, PAN e ADN iam contribuir para a eleição neste circulo nacional, e com 11 mandatos de compensação já ficariam "aproveitados" 93%, com a entrada da IL no circulo de compensação. Apenas com 26 mandatos neste circulo se chegava aos 98% (entrava a AD), e com 27 atingia-se, finalmente, os 100% (entrava o CH).
Se o objectivo fundamental fosse diminuir os votos desperdiçados, então certamente os 6 ou os 11 mandatos seriam o tamanho ideal, já que aumentar o tamanho do circulo de compensação (na versão básica) implica um esvaziamento dos círculos locais, com especial impacto nos círculos mais pequenos, e o retorno em votos aproveitados começa a ser bem menor a partir desses valores.
Claro que o problema fundamental é outro, o rácio entre votos e mandatos de cada partido, que, com 6 mandatos ia significar que PS e AD iam eleger com 23 mil votos por mandato, enquanto todos os outros partidos precisavam de 40 a 60 mil votos por mandato, muito longe de garantir a igualdade de voto que a CRP proclama no artigo 10.
Mais sobre o que a CRP diz sobre o sistema eleitoral, com a citações de vários constitucionalistas e juízes do Tribunal Constitucional, aqui.