Não tenho nada para fazer! E agora?
Beatriz Grácio
Beatriz Grácio
Estava uma manhã muito fria e solene. Dezembro aproximava-se. Já tinhas chegado, havia duas semanas, mas foi nessa manhã que te vi pela primeira vez sem um sorriso na cara. Estavas na sala, com a avó Aline. Ambas já tinham tomado o pequeno-almoço. Tu resmungavas e eu não sabia o que fazer quanto a isso. Ainda abri a boca e avancei uma perna para te ir perguntar, mas achei melhor dirigir-me à avó.
− Está a fazer birra. É normal -respondeu-me ela.
− Ora, mas birra porquê?
− Porque diz que quer ir à escola ver os amigos. Aqui não tem nada para fazer, e já está farta dos brinquedos.
Ouvi a tua avó e tive um outro momento durante o qual me esqueci que era suposto aborrecer-me contigo e ficar rabugento. E então disse-te:
− Catarina, levanta-te. Quero mostrar-te uma coisa.
Tu olhaste-me muito séria e atenta. Hesitaste, desconfiada, e só depois vieste ao meu encontro. Essa tua desconfiança e mania de questionar tudo foi uma das coisas que me levou a amar-te.
− Tenho uma crónica sobre o que estás a sentir -disse-te, ao chegarmos ao escritório.
E li-te a crónica com o título “Pensamentos sobre pensar” (que te levou a fazer uma careta engraçada de confusão), a qual transcrevo aqui:
“Um dos maiores problemas de metade da espécie humana é precisamente o desejo mais profundo da outra metade. E esta coisa estranha, que para uns é um sacrilégio e para outros uma bênção, é exatamente o facto de não ter nada para fazer. Sempre que alguém reclama por isto, vem logo outro responder: `Quem me dera!`. Para mim, o que há aqui é uma inconsciente disputa de quem acha que tem razões para reclamar. Afinal, é um dilema ou uma espécie de competição: qual será o pior dos problemas, o meu ou o teu.
Mas acho particularmente interessante este problema de não ter nada para fazer. Este estigma resulta da necessidade de manter a mente ocupada, mas o grande segredo (que é a chave para este problema) mostra que não precisamos necessariamente de fazer algo de concreto para que isso aconteça. Basta pensar, entretermo-nos com a nossa visão das coisas, única no meio de todas as outras. Mas poucos entendem que a melhor coisa que podemos fazer é pensar.”
− Pensar? Dizes que a melhor coisa para fazer é...pensar? − Tu desconfiavas novamente.
− Sim. E se pensares e escreveres os teus pensamentos? Quando vês, por exemplo, uma árvore, em que é que pensas?
Tu roubaste-me uma folha de papel e disseste:
− Pensa comigo. No que vamos pensar primeiro?
Passámos, então, o dia inteiro a pensar em tudo quanto existia e a expor as nossas opiniões. Uma coisa que, com certeza, me penetrou profundamente foi quando já estavas a dormir, a tua avó sorriu para mim e perguntou:
− E quando a Margarida chegar? Como te vais desapegar dela?
Não respondi, assim como não dormi nessa noite, revoltado com o pensamento de que te irias embora. Mas ainda estava mais revoltado com a minha inesperada revolta. Afinal, o meu plano era ser frio, e não o estava a conseguir executar...