Artemisia Gentileschi. Judite decapitando Holofernes. 1615.
Texto de Beatriz S. Pereira, Abril de 2021.
Artemisia Gentileschi. Judite decapitando Holofernes. 1615.
Texto de Beatriz S. Pereira, Abril de 2021.
Três mulheres recebem destaque como protagonistas dos seus próprios livros do Antigo Testamento: Rute, Ester e Judite. Suas narrativas foram amplamente exploradas artisticamente, especialmente na Renascença.
Nessa história, Judite se encontra no meio de uma guerra. Os anciãos de seu povo decidem aguardar cinco dias pela misericórdia do Senhor, e se seu clamor não fosse atendido “que fosse feita sua vontade”. Indignada, questiona a decisão dos anciãos e decide agir.
Judite se entrega como espólio de guerra ao inimigo sem que a guerra tenha terminado. Astuta, sai do acampamento inimigo todos os dias para se banhar e orar junto com sua criada. No momento em que Holofernes deseja tomá-la sexualmente, comete o deslize fatal: se embebeda.
“Pela astúcia de meus lábios,
fere o escravo com o chefe
e o chefe com seu servo.
Quebra sua arrogância
pela mão de uma mulher. (Jt 9,10)
Dá-me palavra e astúcia para ferir e matar
os que forjaram duros planos
contra tua Aliança,
tua santa habitação,
a montanha de Sião
e a casa que pertence aos teus filhos.” (Jt 9,13)
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. 5. ed. rev. São Paulo: Paulus, 1996.
Então, nossa heroína dourada corta-lhe a cabeça, a esconde e sai do acampamento, como de costume. Revela o real espólio de guerra ao seu povo. Ela é celebrada, fazendo sua marca na história.
É notável como Agostino Tassi, mentor de Artemisia Gentileschi, pode ocupar o lugar de cavalo de Troia, tanto quanto a própria Artemisia, ao se pintar como Judite.
Ao estuprar a jovem aluna de 18 anos, filha de um amigo e colega de trabalho, a confiança que existe entre professor-aluno, entre um artista e outro é irremediavelmente quebrada.
Um longo julgamento público se seguiu, a primeira versão da cena foi pintada, e quase 10 anos depois, a segunda versão da cena.
Artemisia Gentileschi, Judith Slaying Holofernes (1612-1613).
Coleção do Museu Capodimonte, Nápoles
Artemisia Gentileschi, Judith Beheading Holofernes (1620-1621). Coleção das Galerias Uffizi, Florença
No segundo quadro, Judite mais do que nunca recebe uma posição ativa na morte de Holofernes. Gentileschi acrescenta um bracelete de camafeu em seu braço, que simboliza o elo com a deusa grega Ártemis, deusa virgem da caça, da lua, dos partos, animais selvagens e irmã gêmea do deus Apolo. Cultuada por proteger e aliviar doenças de mulheres, crianças e jovens.
É no braço que segura a cabeça e ao mesmo tempo, que afasta o olhar de Holofernes de seu rosto.
Ela é uma guerreira.
O esforço visível e invisível para sobrepujar um homem, mesmo que num ato de auto defesa.
Pose ativa das duas mulheres na decapitação, pois mesmo embriagado, Holofernes e Tassi resistem, tentando se salvar e impor sua perspectiva da história.
Artemisia vivenciou uma história realmente antiga:
Viu seu trabalho ser desvalorizado e frequentemente atribuído a homens, seja seu pai ou outros artistas;
Seu agressor passou por julgamento livre;
Sua denúncia foi questionada;
Sua credibilidade colocada em cheque;
O agressor pode escolher entre prisão e exílio, que escolheu o exílio e pode viver livre, impune
A necessidade de se filiar a um homem para voltar a ser aceita na sociedade, por meio de um casamento arranjado, apenas dois dias após a condenação de Tassi.
E ainda assim, foi a primeira mulher a ser membro da Academia de Belas Artes de Florença, a mesma da qual Michelangelo passou. Mesmo que só tenha recebido o devido reconhecimento na segunda metade do século XX.
A cor de maior destaque é o vermelho: do sangue, escorrendo, jorrando, manchando o branco virginal dos lençóis. O vermelho nas vestes da criada, na primeira versão, que passa para as de Holofernes e sutilmente para as de Judite, sendo coberto pelo amarelo vivo, exposto ao arregaçar as mangas e evitar se sujar.
A espada ao centro pode ser vista como símbolo da cruz cristã e, portanto, da fé: é por meio dela que o sangue e a justiça transbordam.
Judite faz uma promessa para proteger seu povo, suas ações são lembradas e ecoam. Artemisia protege outras que passaram pelas mesmas coisas, denuncia e critica em suas obras leituras dúbias de ações masculinas.
Coloca luz sobre uma perspectiva ainda em voga no mundo da arte, que imita a vida.
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