HOMENAGEADOS

MOACIR SANTOS

Foto: Divulgação / Guto Costa

Biografia

Moacir José dos Santos (Serra Talhada, Pernambuco, 1926 - Los Angeles, EUA, 2006). Compositor, arranjador, saxofonista, vocalista. Ainda criança, aprende a tocar todos os instrumentos da Banda Marcial da cidade de Flores, onde vive com uma família adotiva desde a morte da mãe, aos três anos de idade. Aos quatorze, foge de casa e inicia uma andança de oito anos pelo Nordeste, integrando orquestras de circo e bandas militares de diversas cidades até ser contratado, em João Pessoa, pela jazz band da Rádio Tabajara, da qual se torna regente em 1947. No ano seguinte, migra para o Rio de Janeiro e passa a trabalhar como saxofonista em orquestra da Rádio Nacional. Em 1951, torna-se arranjador da emissora, ao lado Radamés Gnattali, Leo Peracchi e Lyrio Panicalli. Decide então aprofundar o estudo formal de música, frequentando o curso de férias do maestro alemão Ernest Krenek, que o introduz na técnica dodecafônica. Prossegue os estudos de música erudita com Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005), de quem se torna assistente, Claudio Santoro (1919-1989) e Cesar Guerra-Peixe (1914-1993). Permanece na Rádio Nacional até 1967, com breve intervalo entre 1954 e 1956, período em que rege a orquestra da TV Record de São Paulo.

No final dos anos 1950 e início dos 1960, desenvolve intensa atividade docente, figurando entre seus alunos Baden Powell (1937-2000), João Donato (1934), Paulo Moura, Sérgio Mendes, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra e Roberto Menescal. Em 1963, assina os arranjos dos discos Elizeth interpreta Vinicius, Vinicius e Odete Lara e Baden Powell swings with Jimmy Pratt, nos quais figura ainda como compositor. No ano seguinte, sua Nanã, parceria com Mário Telles, é gravada por Nara Leão em seu disco de estreia. Também tem composições gravadas nos álbuns Você Ainda não Ouviu Nada (1963), de Sérgio Mendes, e Edison Machado É Samba Novo (1964). Em 1964, grava cantando pela primeira vez o Samba do Carioca, na trilha da peça Pobre Menina Rica, de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes. Compõe a trilha de filmes nacionais e estrangeiros, entre eles Ganga Zumba (Cacá Diegues, 1964), Os fuzis (Ruy Guerra, 1964) e Amor no Pacífico (Zygmunt Sulistrowski, 1970), cuja pré-estreia, em 1966, o leva pela primeira vez aos EUA. Parte dessas trilhas integra seu primeiro disco-solo, Coisas, lançado em 1965 pelo selo Forma.

Em 1967, migra para os Estados Unidos, onde continua a exercer atividade docente e a compor trilhas para cinema, trabalhando como ghost writer nas equipes de Henry Mancini e Lalo Schifrin. A carreira como solista e compositor só deslancha em 1971, quando Nanã é gravada pelo pianista Gil Evans no disco Where Flamingos Fly. No ano seguinte, lança o álbum Maestro, indicado ao Grammy, ao qual se seguem Saudade (1974) e Carnival of the Spirits (1975), todos pela conceituada Blue Note Records. Seu último álbum gravado nos EUA, Opus 3 n° 1 (Discovery Records), é de 1981. Compõe ainda a trilha dos filmes África Erótica (Zygmunt Sulistrowski, 1970) e Final Justice (Greydon Clark, 1985).

A partir de 1985, quando é homenageado no 1º Free Jazz Festival, visita o Brasil, onde recebe vários tributos. Em 2001, os músicos e produtores Zé Nogueira e Mario Adnet regravam parte de sua obra no CD duplo Ouro Negro, com participações de Milton Nascimento, João Bosco, Ed Motta, Gilberto Gil. Eles também são responsáveis pelo relançamento em CD de Coisas (2004) e pela gravação de Choros e Alegrias (2005), com músicas inéditas do compositor, além de três songbooks. Em 2006, Muiza Adnet grava As canções de Moacir Santos, com vocal do compositor em algumas faixas.

Entre seus parceiros, destacam-se Vinícius de Moraes (Mulher carioca, Menino travesso, Triste de quem e Se você disser que sim), Nei Lopes (Maracatu, Nação do Amor , Oduduá, Orfeu e Sou eu) e Geraldo Vandré (Dia de festa).


Análise

A exemplo de outros maestros do rádio, como Radamés Gnattali e Lyrio Panicalli, Moacir Santos produz uma obra na fronteira entre a música popular e a erudita. Obrigado a dominar os diferentes estilos orquestrais em voga nos anos 1940 e 1950, do jazz ao folclorismo sinfônico, passando por ritmos latinos como a rumba e o merengue e por gêneros brasileiros como o samba, a marcha e o choro, ele desenvolve um estilo eclético. Tamanha versatilidade, reverenciada por Vinícius de Moraes em seu Samba da bênção ("A bênção, Moacir Santos, tu que não és um só, és tantos"), transparece tanto em seus arranjos como em suas composições, áreas que se confundem em sua obra.

Após duas décadas de profícua atuação como orquestrador e maestro, Santos vê seu campo de trabalho diminuir sensivelmente na segunda metade dos anos 1960, quando o desaparecimento das orquestras de rádio e TV, somado a valorização da canção com letras de cunho político na cena musical brasileira pós-1964, reduz o espaço para a música instrumental no país. Nesse contexto, ele integra o grupo de músicos que, ligados à Bossa Nova ou ao samba-jazz (gêneros considerados "alienantes" num meio musical fortemente politizado), seguem carreira na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos, como Naná Vasconcelos, Baden Powell, Sérgio Mendes, João Donato, Airto Moreira e a cantora Flora Purim.

Gravado num momento em que o compositor já atingira a maturidade, o álbum Coisas (1965), considerado um marco na música instrumental brasileira, sintetiza as principais características da obra de Moacir Santos. A começar pela valorização da cultura negra, perceptível tanto na atenção dispensada pelo compositor à percussão, com a incorporação de instrumentos pouco usuais (como berimbau, kalimba, atabaque, agogô e afoxé), como na invenção de uma base rítmica original, ligada a matrizes africanas. Nesse sentido, o uso de deslocamentos rítmicos e métricos, hemíolas1 e polirritmias2 constitui um gesto deliberado para que sua música "soe negra", efeito igualmente obtido no plano melódico-harmônico por meio do emprego de escalas modais e da ambiguidade no uso das terças - ora maiores, ora menores3. Vale destacar que, ao "africanizar" a música brasileira, Santos age em sintonia com iniciativas semelhantes ocorridas na época: no mesmo ano do lançamento de Coisas, Elizeth Cardoso grava um disco só com sambas de morro (Elizeth sobe o morro), pondo em evidência a negritude da música brasileira; no ano anterior, são lançados Samba Esquema Novo, de Jorge Ben, e Tem "Algo Mais", de Wilson Simonal, e Hermínio Bello de Carvalho revela Clementina de Jesus, com seu repertório repleto de cantos de escravos e pontos de macumba; no ano seguinte, Baden Powell e Vinícius de Moraes gravam seus Afro-sambas, inspirados no candomblé e na capoeira. Vinícius de Moraes, aliás, é um dos precursores da valorização musical da cultura afro-brasileira, ao conceber, em 1956, a "tragédia negra carioca" Orfeu da Conceição.

Além da valorização da cultura afro-brasileira, a obra de Moacir Santos se caracteriza ainda por certo hibridismo, em que ritmos regionais cariocas ou nordestinos (como o samba, o xaxado, o coco, o baião e o maracatu) são reelaborados de maneira singular, por meio de levadas oriundas do jazz, dos gêneros latino-americanos e da música de concerto brasileira ou internacional. Embora Coisas seja comumente classificado como um álbum de samba-jazz, suas músicas dificilmente se enquadram nesse gênero, pois não seguem sua estrutura padrão - tema(s)-improviso-tema(s) - nem se atêm a seus cânones rítmicos (também chamados de "levadas"). Segundo Zuza Homem de Mello, o disco "não se encaixa em nenhum estilo da música popular brasileira de sua época"4, dialogando com diferentes tradições.

Nesse sentido, é preciso destacar ainda a presença de certo "eruditismo" no disco, reflexo do anseio de Moacir Santos em produzir música de concerto. O próprio nome dado às suas composições, Coisas, bem como sua numeração de 1 a 10, é um "correspondente brasileiro, popular e negro"5 do índice catalográfico opus, usado na música erudita europeia. Ao empregar esse termo, o autor entende suas composições não como temas ou melodias que podem ser reelaborados e rearranjados (a exemplo do que ocorre comumente na música popular), mas como obras acabadas. Outro elemento erudito do disco é a anotação rigorosa, por meio da grafia musical tradicional, das partes da seção rítmica (piano, bateria, baixo, guitarra), que trazem levadas originais - prática incomum nos conjuntos de música brasileira, que geralmente improvisam sobre levadas conhecidas.

Nos discos seguintes, as características composicionais de Coisas são mantidas, mas Moacir Santos dá novos saltos como orquestrador. Enquanto no primeiro disco prevalece a formação tradicional de big band, as inovações restringindo-se à seção de percussão, em Maestro a instrumentação se diversifica, com o uso do contrabaixo elétrico, do piano elétrico e do órgão. Além de tocar saxofone barítono em duas faixas do disco, Moacir assume os vocais em outras cinco, realizando vocalizes que se destacam do conjunto instrumental. A influência do jazz norte-americano, especialmente em sua vertente fusion, também se faz mais presente, com uma abertura maior para os improvisos. Em The mirror's mirror, por exemplo, faixa que encerra o disco, contrabaixo, piano elétrico e trombone improvisam livremente sobre uma base percussiva. Essas características, que também se notam em Saudade, Canrinal of the spirits e Opus 3 n° 1, revelam a maior aproximação de Moacir Santos com o jazz, mas sem afastar-se de suas raízes brasileiras.


Notas

1 Variação rítmica em que um compasso ternário é articulado como se fosse binário, provocando a sensação de deslocamento rítmico.
2 Sobreposição de divisões rítmicas diferentes.
3 Foi Guerra-Peixe quem sugeriu a Moacir Santos o uso da terça menor como elemento de "negritude". "O negro nunca alcançou a terça maior", teria lhe dito o autor de Maracatus do Recife. Daí o surgimento, entre os negros norte-americanos, da chamada escala blue - escala maior com a terça e a sétima abemoladas.
4 MELO, Zuza de Homem. In: Cancioneiro Moacir Santos: Coisas. Rio de Janeiro: Jobim Music, 2005, p.13.
5 GOMES, João Marcelo Zanoni. 'Coisas' de Moacir Santos. Dissertação (Mestrado em Música). Curitiba, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR, 2008, p. 41-2.

MOACIR Santos. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.
Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa16236/moacir-santos.
Acesso em: 05 de janeiro de 2023. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

SERGEI RACHMANINOFF

Foto: Sergei Rachmaninoff [Reprodução]

Sergei Rachmaninov nasceu em Semyonovo, noroeste da Rússia, no dia 1º de abril de 1873. De família nobre, os pais eram proprietários de terras e músicos amadores, e foi com a mãe que ele teve as primeiras aulas de piano. Com dificuldades econômicas, a família mudou-se para São Petersburgo, onde o jovem ingressou no Conservatório. Mais tarde, seguiu os estudos no Conservatório de Moscou, no qual recebeu uma sólida formação musical – aulas de piano com o rigoroso Nikolai Zverev e com Alexander Siloti (primo dele, que havia estudado com Liszt), contraponto com Sergei Taneyev e harmonia com Anton Arensky. Durante o tempo no Conservatório, ainda jovem, Rachmaninov participava dos domingos musicais promovidos por Zverev, o que lhe deu a oportunidade de fazer contatos importantes e ouvir uma grande variedade de música.

Em seus estudos, Rachmaninov demonstrava grande talento para a composição, sendo estimulado pessoalmente por Tchaikovsky. Um ano após se formar em piano, recebeu a medalha de ouro do Conservatório pela ópera em um ato Aleko, de 1892. E em 1891, com apenas 18 anos, ele terminou o primeiro concerto para piano, além de diversas outras peças para o instrumento, incluindo o Prelúdio em dó sustenido menor, que logo se tornou bastante popular.

Sua carreira parecia prosseguir sem dificuldades, até que em 1897 sofreu um abalo, quando sua Sinfonia nº 1 recebeu duras críticas em sua estreia. A rejeição levou Rachmaninov a um longo período de depressão e insegurança, que ele superou com ajuda de terapia e hipnose.

Após um período de reclusão, Rachmaninov voltou aos holofotes com o estrondoso sucesso de seu Concerto para piano nº 2 (1900-01), que lhe assegurou definitivamente grande fama como compositor. A primeira década do século XX foi bastante produtiva e feliz para o artista, que escreveu algumas de suas obras mais importantes: a Sinfonia nº 2 (1906-07), o poema sinfônico A ilha dos mortos (1907) e o Concerto para piano nº 3 (1909). Foi também nessa época que ele passou a atuar como regente e que finalmente conseguiu vencer as imposições da Igreja Ortodoxa russa para se casar com a prima Natalia, em 1902.

Ao final da década de 1910, Rachmaninov fez sua primeira turnê aos Estados Unidos, e o grande sucesso lhe rendeu fama e popularidade. Embora ausentando-se em frequentes viagens, o músico residiu na Rússia até 1917, quando deixou o país, com a esposa e as filhas, por conta da Revolução. Ele nunca mais retornaria à terra natal, seguindo para Suécia, Suíça, Dinamarca e finalmente Estados Unidos, para onde embarcou em 1918. Após a partida, sua música foi banida da União Soviética por muitos anos.

Ainda que suas turnês envolvessem compromissos como regente – ele rejeitou por duas vezes o posto de maestro na Sinfônica de Boston –, foi sua incrível habilidade pianística que lhe deu o maior prestígio. Sua técnica distinguia-se pela precisão, pela clareza e por um singular sentido de legato (ligaduras entre as notas). O tamanho de suas mãos se tornou uma lenda – parece que com a mão esquerda era capaz de tocar o acorde Dó-Mi bemol-Sol-Dó-Sol, ou seja, um intervalo de 13ª no teclado.

Por outro lado, suas composições diminuíram drasticamente – comparando com as 39 obras que havia escrito na Rússia entre 1892 e 1917, ele compôs apenas seis entre 1918 e sua morte, em 1943. É desse período aquela que talvez seja sua obra mais amada, a Rapsódia sobre um tema de Paganini (1934), além da Sinfonia nº 3 (1936) e das Danças sinfônicas (1940), seu último trabalho completo. Alguns estudiosos alegam que o motivo da redução da produção foi a melancolia que o compositor sentiu ao perceber que não voltaria mais a sua terra natal. Ele se tornou cidadão norte-americano semanas antes de sua morte, em Beverly Hills, no dia 28 de março de 1943 – a poucos dias, portanto, de completar 70 anos.

Rachmaninov deixou três sinfonias, quatro concertos para piano orquestra (além da Rapsódia), três óperas, diversas obras vocais e de câmara, além de peças para piano solo. Se ninguém contestava seu talento incrível como pianista, a mesma unanimidade não ocorreu com suas obras. A edição de 1954 do Grove Dictionary chegou a afirmar que sua música era “monótona em textura... consistindo principalmente de melodias artificiais e feias” e previu seu sucesso como “não duradouro”. Em suas obras se nota a influência de Tchaikovsky, além de grandes pianistas compositores, como Chopin e Liszt. Uma parte das críticas dirigidas ao compositor se referia justamente a esse Romantismo tardio, já sem lugar no intenso e acelerado século XX, que antes mesmo de chegar à metade viu florescer duas guerras mundiais.

De qualquer forma, os quatro concertos para piano formam o cerne do legado dele como compositor. O primeiro, obra de um ainda estudante do Conservatório de Moscou, foi totalmente revisado por Rachmaninov em 1917 (quando ele já havia escrito outros dois concertos), deixando-o da forma que o conhecemos hoje – uma versão destilada da paixão juvenil, acrescida da turbulência que o fez abandonar a Rússia naquele mesmo ano. O segundo concerto, de 1901, é um renascimento após o sério período de depressão e alcoolismo que se seguiu à malfadada estreia de sua sinfonia e o estabeleceu definitivamente como compositor. Compacto, melodioso e solidamente estruturado, esse segundo concerto foi por décadas o preferido dos pianistas e do público. Aos poucos, porém, o Concerto nº 3, de 1909, passou a agradar tanto quanto. Este é certamente um trabalho mais profundo, cheio de obstáculos de virtuosismo e de longas cadências, mas que foi prejudicado no início pelos cortes que Rachmaninov foi obrigado a fazer, para torná-lo mais facilmente programável em apresentações. Desde as últimas décadas do século XX, no entanto, a maioria das apresentações têm resgatado a versão original, que dura cerca de 45 minutos e que preserva todo seu valor artístico. Finalmente, o quarto concerto data de 1926 e é a primeira grande obra que ele completou após deixar a Rússia. Estreada em 1927 com a Orquestra da Filadélfia sob regência de Leopold Stokowski e o próprio compositor como solista, a obra nunca conheceu o mesmo êxito dos dois concertos anteriores, talvez pelo tom mais distante e menos melodioso, de um compositor que se encontrava exilado.

Felizmente para a posteridade, Rachmaninov gravou boa parte de sua música, incluindo os concertos para piano e a Rapsódia sobre um tema de Paganini. Uma rápida busca na internet revela aos ouvidos curiosos algumas dessas preciosas interpretações.

Texto de Camila Fresca na Revista CONCERTO de abril de 2014, disponível em:
https://www.concerto.com.br/noticias/arquivo/acervo-concerto-vida-de-sergei-rachmaninov