Estilhaços poéticos
No âmbito da operacionalização do projeto “Vencer os muros e o silêncio” - Ideias com Mérito, realizou-se, no dia 28 de novembro de 2018, a primeira sessão denominada “Estilhaços poéticos”. A convite da professora Isabel Monteiro, responsável pelas sessões desenvolvidas no EPC, o poeta e diretor da Casa da Escrita de Coimbra, João Rasteiro, dinamizou uma oficina de escrita na qual participaram 11 reclusos, que produziram textos poéticos.
Foram, ainda, declamados alguns poemas pelos professores Carlos Duarte, Orlanda Moreira e Isabel Monteiro.
Levaram-se livros de poesia da Biblioteca escolar para empréstimo aos reclusos, que ficaram no Estabelecimento Prisional até à segunda sessão.
No final desta atividade, foram distribuídas caixinhas multicolores, em cartolina, manufaturadas pelas funcionárias da Biblioteca escolar. No seu interior, uma pequena biografia de João Rasteiro e um poema da sua autoria, manuscrito pelo próprio:
Há um sexo dentro das palavras
o erro do desejo,
saberás que o amor
não começou ainda,
às vezes como uma víbora
o corpo só deixa a pele.
Que ele renasça nesse ensejo.
Vencer os muros, a solidão
Na constante procura do tempo
Da mãe natureza, ébria e húmida,
Com orvalhos de trovão
Batendo compassada no rosto enxuto
De um coração de mãos largas
Sobre um alzheimer de promessas
Ardendo no rosto de Deus…
Sobre uma glória distante
De silenciosas promessas
Por haver um partir de luz
Sobre um girassol
Fruto do tempo, numa
Glória distinta
Do silêncio
M. P.
Amor e dor
Corpo fora da glória do tempo
E alvejando o minotauro
Pela dor, amor consumido,
Na infinita planície em cinzas.
De corpo enxuto,
No pomar das ardósias,
Em dias ébrios, do pólen límpido,
O último pranto.
O fragor da face,
Da purificação alquímica da sílaba,
Em nenúfares de fúria,
E um compasso assustado.
Das tâmaras onde purifica
O beijo,
Quando a distância habita
O amor sem idade,
A lágrima nova,
Até à torrente do coração de alegria.
R. A.
Vida
O mar bate na rocha e penso na morte por amar a vida!
Olhos de água regam as minhas tristezas,
Espirais de fogo iluminam as trevas, tal as abelhas que fogem da flor.
E, de rompante, de forma esplêndida e exuberante,
Penso, digo e grito, tolerantemente,
O quanto muito me apraz a vida…
D. S.
Um trovão bate ritmado
Sobre os joelhos por detrás das muralhas da cidade
Infinita planície das cinzas
Onde a vida expirou…
E tudo está escrito!
A luz procura, ainda, a luz,
No rosto de Deus…
Depois, vem o pior
Que não escolhi
Mar inatingível
Exposto ao pesar
Sol quente e flamejante
Inverno gélido e trémulo
Na infinita planície das cinzas, inverno gélido e trémulo…
Um trovão bate ritmado exposto ao pesar
Mas no rosto de Deus, sol quente e flamejante,
A Luz ainda procura a luz
E tudo está escrito!
J. O.
Espelhos
A segunda sessão no EPC realizou-se no dia 30 de janeiro. O convidado e dinamizador foi o professor e pintor Antonino Neves, que conduziu os reclusos numa sessão de pintura denominada “Espelhos”. Cada um deles transmitiu para a tela aquilo que, anteriormente, tinha expressado em poesia.
Foram pintadas onze telas que estiveram, inicialmente, expostas na Biblioteca do EPC e que, posteriormente, foram alvo de uma exposição na Biblioteca da Brotero.
A título de apontamento, refira-se que um dos reclusos desabafou que tinha imensas saudades de observar um campo de trigo salpicado de papoilas. Por isso, e apesar de nunca ter pintado uma tela, em toda a sua vida de 58 anos, reproduziu um ramo de papoilas e de espigas de trigo, numa aguarela tão bela, quanto singela.
Máscaras
No dia 3 de abril de 2019, os poemas elaborados pelos reclusos na primeira sessão foram alvo de dramatização. O ator e encenador João Janicas, da Bonifrates, orientou os trabalhos.
Os reclusos participaram, empenhadamente, nas diferentes atividades, começando por uma apresentação individual, seguindo-se alguns exercícios de domínio da voz e da respiração, passando pelo treino da dicção, com leituras de Mário Henrique Leiria, Bertolt Brecht, José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Sebastião da Gama e Eugénio de Andrade, e finalizando com as leituras dos próprios poemas. Um percurso ascendente que os deixou surpresos com as suas próprias prestações. Uma tarde em que as grades pesaram menos e uma réstia de sol penetrou nos seus olhares.
Citando Carlos de Oliveira, in Terra de Harmonia: “A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra.”
Tertúlia de encerramento de atividades
Na tarde do dia 3 de julho de 2019, decorreu no Estabelecimento Prisional de Coimbra (EPC) a última sessão deste ano letivo.
O poeta João Rasteiro e alguns dos reclusos presentes leram alguns poemas deste autor e de outros autores contemporâneos. Uma tertúlia animada, na qual participaram as professoras Isabel Monteiro e Orlanda Moreira, as técnicas de reeducação Dra. Elsa Gouveia e Dra. Graça Neto, bem como o Diretor e a Diretora Adjunta desta instituição, Dr. Orlando de Carvalho e Dra. Dora Parada.
De seguida, foram distribuídas t-shirts, oferecidas pela Escola Secundária Avelar Brotero (ESAB) e pela Rede de Bibliotecas Escolares (RBE), aos reclusos que participaram nas diferentes sessões, nomeadamente, em “Estilhaços poéticos”. Nestas camisolas, foram impressos excertos dos poemas criados pelos reclusos. Cada um recebeu a sua t-shirt com a respetiva criação poética, vestindo-a, de seguida, num momento emotivo, perante a ovação do restante público.
Para finalizar, o EPC ofereceu um beberete, com direito a bolo de aniversariante, pois o nosso convidado poeta fazia anos. Cantou-se “os parabéns” e foram oferecidas algumas agendas, manufaturadas nas oficinas, aos participantes vindos do exterior.
No final, o Diretor e a Diretora Adjunta do EPC agradeceram o empenho e a performance de todos os intervenientes, realçando a importância da parceria feita com a ESAB, neste projeto, que contribui, de forma incontestável, para o processo de integração e reinserção social de uma comunidade muito particular. A professora Isabel Monteiro agradeceu, também, toda a colaboração, disponibilidade e ótimo acolhimento com que toda a equipa do projeto foi recebida, no estabelecimento prisional, ao longo de todas as sessões. Salientou, ainda, a importância destas iniciativas no processo de “vencer os muros”.