Capítulo II

Leia o Capítulo II do livro (publicado anteriormente no blog da agência literária Villas-Boas & Moss):


Caminhavam em grupo, se esbarrando e trocando de lugar conforme falavam. Além de Mauro e Carla, estavam Eulália, Epitácio, Juvenal e Walter. Esses eram os seis inseparáveis. Todos de calças Lee e cabelos compridos, com exceção de Walter. Até Mauro deixara o cabelo crescer um pouco.

Epitácio e Walter polemizavam a respeito da invasão da Tchecoslováquia, ocorrida em agosto.

— Cara, a União Soviética não está com nada — dizia Walter, com voz mansa e buscando convencer o amigo. — Aquilo lá é uma ditadura, tão ruim quanto a nossa, com censura, prisões arbitrárias, o pacote completo.

Epitácio era mais agressivo, ou talvez fosse a barba espessa que lhe conferisse um ar de guerrilheiro cubano. Tinha opiniões na ponta da língua sobre os assuntos que dominava e estava sempre pronto a julgar rapidamente quem era engajado e quem era alienado. Seu desprezo pelos alienados era visceral. Talvez por isso fosse Epitácio quem tinha levado mais tempo para aceitar a presença de Mauro naquela turma. Mesmo depois de algumas semanas Mauro ainda ficava constrangido na presença dele, intimidado com a intensidade sempre presente em seu discurso.

— Não é tão simples. Essa conversa de socialismo com face humana é papo furado. Esse Dubček faz o jogo do imperialismo, é um fantoche do capitalismo internacional. O negócio dele é atrair empresas para a Tchecoslováquia e desfazer as conquistas da classe trabalhadora.

— Cara, invadir um país com tanques faz parte da luta da classe trabalhadora? Não força a barra, meu.

— Espera um pouco — interferiu Mauro. — Eu li que o presidente lá é um tal Svoboda.

— É isso mesmo, Careta.

— E esse Dubček?

— O Svoboda é presidente, mas o Dubček era secretário do partido comunista. Agora não é mais.

Mauro tentava não se importar ao demonstrar ignorância nos assuntos ligados à política, principalmente internacional. Aos poucos, acompanhando as conversas dos novos amigos, ia ficando mais a par das discussões. Estivera procurando se informar sobre o Vietnã nas últimas semanas mas, como todo mundo, fora pego de surpresa quando de repente o foco mudou para a Europa oriental. Epitácio retomou a palavra:

— Vou te repetir o que disse o Dubček há pouco tempo: “A luta de classes deixou de ser um aspecto importante da evolução social no nosso país.” Agora você me diz se isso é coisa que um dirigente socialista que se preza deve dizer, ou se é conversa de quem faz o jogo da direita.

— Sim, mas…

— Não tem mas nem meio mas. A invasão é triste, nós somos pela autodeterminação dos povos, mas não podemos ser hipócritas nem, muito menos, ingênuos. Prefiro ser chamado de cínico do que de ingênuo. Infelizmente, neste momento as tropas foram necessárias em vista da conjuntura, mas temos confiança de que a ocupação da Tchecoslováquia será rápida. Os russos botaram ordem na casa e te garanto que vão sair antes do final do ano.

— Eu quero saber é como vai ser hoje à noite — disse Carla, e Mauro apertou sua mão. Ele gostava de vê-la procurando evitar atritos.

Estavam a caminho do Teatro da Universidade Católica, o TUCA, para assistir aos shows da fase eliminatória do terceiro Festival Internacional da Canção, organizado pela TV Globo para competir com os festivais de música popular brasileira da Record.

— Não importa quem ganhe aqui, o grande vencedor vai ser com certeza o Geraldo Vandré — disse Juvenal. O loiro de cabelo comprido era o menos politizado da turma e era com ele que Mauro mais simpatizava. O forte de Juvenal era a música. Não só tocava lindamente o violão como sabia de cor dezenas de canções e estava sempre por dentro de todas as apresentações imperdíveis, os novos álbuns, as tendências.

— Também acho — opinou Epitácio. — Para mim, “Caminhando” é uma obra-prima. Quem sabe faz a hora, é isso.

— Será que Caetano vai fazer um show parecido com o último? — perguntou Eulália.

— Com certeza. Esse agora é o barato dele. Vai tocar com os Mutantes. Ele e o Gil são dois alienados, querem fazer rock americano, rock inglês, com essas guitarras, essa barulheira, uma coisa totalmente descolada da realidade.

— Esse Caetano é bicha…

— Cala a boca, Epitácio, deixa de ser reacionário. Deixa de ser careta. Sem ofensa, Careta. Como dizem os franceses, é proibido proibir, vamos ouvir as guitarras e as cigarras, vamos ouvir de tudo, bicho.

— Tudo bem, mas não me venha com esse papo de liberação sexual e de usar drogas. Estados alterados da consciência, essa papagaiada de merda. Esse pessoal é alienado, isso sim. Esse tipo de conversa nos afasta das classes populares, acaba fazendo o jogo da direita.

— Eu gosto de “Alegria, alegria” — arriscou Mauro.

Todos gostavam daquela música, que Caetano tocara na versão anterior do festival.

— Sim, eu também, mas não tem como comparar Caetano e Gil com Chico e Vandré, gente. O momento é de protesto, é de falar do povo brasileiro e não de imitar gringo. Você viram o que foi o show do Gil na última fase do festival? Barulho e gritaria. Aquilo não é música. Foi justamente desclassificado. O de Caetano também foi ruim, com um gringo gritando e uma declamação de poema sobre Dom Sebastião, uma palhaçada total que de hoje não passa, pode anotar.

— O poema é de Fernando Pessoa.

— Que se foda. O que Fernando Pessoa sabe do Brasil? Neste momento, só me interessa o Brasil.

O lugar estava cheio. Juvenal acreditou ter visto justamente Gilberto Gil, de passagem. Os outros procuraram, mas ele já tinha sumido na multidão.

Mauro percebeu que Walter, ao seu lado, estava olhando para Eulália disfarçadamente. Vocês dois se davam tão bem, o que aconteceu?, perguntou ao amigo, em voz baixa. Walter ficou nitidamente aborrecido ao ver que seus olhares tinham sido flagrados. Deu de ombros, como se o assunto não tivesse interesse nenhum. Essa menina está com umas ideias muito erradas, precisa amadurecer um pouco. Aquilo intrigou Mauro. Como assim, amadurecer? Ele acreditava ter amadurecido muito nos últimos tempos, justamente por influência daquela turma. Não tinha lhe ocorrido que eles pudessem considerar uns aos outros como imaturos. Mas não conseguiu continuar a conversa.

— Fiquem de olhos abertos — instruiu Epitácio. — Gente muito arrumadinha pode ser do CCC.

O olhar de Mauro buscou o de Carla, que lhe sussurrou: “Comando de Caça aos Comunistas”. Ele entendeu a referência: dois meses antes, uma apresentação da peça Roda Viva, no teatro Ruth Escobar, tinha terminado com a invasão de um grupo de brucutus, armados de cassetetes, que tinham espancado os atores e as atrizes e depredado o espaço. Um dos agressores fora capturado e entregue à polícia, que o deixara escapar. Todos diziam que tinha sido coisa do CCC.

Lá dentro estava quente e era preciso gritar para ser ouvido em meio ao burburinho. Mauro percebeu que algumas pessoas carregavam sacos de papel. Teriam levado lanche ao evento? O fato lhe pareceu estranho, pensou em pedir uma explicação a Carla, mas achou melhor não incomodá-la. Ela já tinha paciência demais com ele.

A profecia de Epitácio de que a música do baiano magrelo não passaria daquele dia se cumpriu com sobra. Mesmo quem já esperava uma performance provocadora foi surpreendido. As vaias já tinham sido grandes para os Mutantes, que se entraram no palco primeiro, com Rita Lee vestida de noiva. Quando Caetano entrou, com uma cabeleira à moda de Jimi Hendrix e usando uma roupa feita de plástico, exibindo colares de fios elétricos com tomadas nas pontas, o teatro quase veio abaixo. Não eram vaias, eram gritos de ódio.

Mauro ficou apreensivo. As pessoas estavam realmente exaltadas e aquilo podia terminar em confusão e gente ferida. Pensou em puxar Carla e irem embora, mas a lotação era total e não conseguiriam abrir caminho. Teriam que esperar.

A música começou, mas a princípio não parecia música, eram ruídos, uma algazarra sem ritmo. Somente aos poucos foi sendo possível discernir a batida da canção e, finalmente, Caetano começou: “A mãe da virgem diz que não…”

A plateia virou de costas para o palco, inclusive seus amigos. Ficou em dúvida se devera se virar também, mas Carla continuou assistindo e dançando e ele permaneceu ao lado dela, formando um microprotesto dentro do protesto. Os outros quatro gritavam suas vaias, até mesmo Juvenal, que defendera a importância de ouvir as guitarras e as cigarras.

Depois de ter cantado a música, esperavam que Caetano declamasse o poema de Fernando Pessoa. Era o que ele tinha feito no show anterior. Mas o cantor perdeu a compostura e começou a gritar também:

— Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?

As vaias continuavam.

— São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem!

A quem ele se referia? Quem era o velhote inimigo? Mauro não sabia. Seria Costa e Silva? Mas ele não tinha morrido ontem.

— Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles!

A afirmação de Caetano lhe pareceu injusta. Pelo menos até ali não tinha havido violência. Boa parte do público, que até então estava de costas, voltou a encarar o palco para acompanhar o discurso. Mauro percebeu que Epitácio estava gritando “alienado!” e “bicha!”, mas era preciso ler seus lábios porque a gritaria era ensurdecedora.

— Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!

O homem sentado ao seu lado pegou algo dentro do saco de papel que tinha levado. Era um tomate. Então era isso que havia ali dentro. Mas por que alguém levaria um tomate ao teatro? Seria algum artista? Iria esmagar aquele tomate e esfregá-lo no rosto, alguma performance desse tipo? Não. O cara simplesmente jogou o tomate em Caetano. Mas ele errou e a fruta caiu aos pés de Gilberto Gil, que subira ao palco. Gil apanhou o tomate e deu uma mordida. Outras pessoas jogaram tomates, bolas de papel e ovos. Tinham vindo preparados. Até um pedaço de madeira foi arremessado e acertou Gil, tirando sangue de sua perna.

— Os automóveis ardem em chamas…

Carla dançava de olhos fechados, parecia estar se divertindo com a confusão.

— E eu digo não ao não… E eu digo: Proibido proibir! É proibido proibir!

***

No dia 3 de outubro, Juvenal e Walter bateram na porta do quarto de Carla, chamando aos gritos. Mauro se levantou assustado e abriu a porta de cueca. Mas o que é que vocês querem, calma que o Brasil é nosso…

— Está tendo uma guerra na Maria Antônia! Vamos!

Vestiram-se às pressas e entraram no carro do Walter, um fusca branco que ele cuidava como um filho. Durante o percurso, os dois rapazes viravam a cabeça para trás freneticamente, procurando colocar Eulália e o casal a par da situação. Explicaram que Epitácio já estava lá, no meio da confusão.

— O pessoal da filosofia fechou a rua, ontem, para cobrar pedágio dos carros que quisessem passar. A ideia era angariar fundos para ajudar na organização do congresso da UNE. O pessoal do Mackenzie, que fica do outro lado da rua, ficou provocando.

— É o CCC, tem muita gente do CCC no Mackenzie.

— Isso. São um bando de reaças. Então, ontem passaram o dia gritando com a nossa turma, querendo briga. O Zé Dirceu mandou recuar o bloqueio para os carros poderem passar, mas o pessoal do Mackenzie continuou enchendo o saco. Hoje de manhã, a confusão recomeçou.

— Eles arrancaram cartazes e jogaram ovos no prédio da filosofia, daí o nosso pessoal começou a jogar pedras neles. Só sei que a coisa foi piorando e agora parece que tá feia mesmo.

Mauro buscou a mão de Carla. A ideia de se meter numa briga de verdade o assustava. Seria capaz de dar um soco em alguém? De jogar uma pedra? Mais importante ainda: estava disposto a levar um soco ou uma pedrada? O que seus pais diriam de uma coisa dessas? Pelo menos o problema não era com a polícia, era só entre estudantes. Talvez nem fosse tudo isso.

Pararam o carro a duas quadras do local e foram a pé. Conforme se aproximavam, ouviam a trilha sonora de uma verdadeira guerra, ou pelo menos era como imaginavam que fosse uma guerra: gritos e explosões. Mauro se deu conta, aflito, de que, na pressa de sair de casa, não fora ao banheiro. Quando viraram a esquina, viram que a coisa não estava só feia e sim feíssima, horrenda. Um garoto passou correndo por eles segurando uma barra de ferro que tirara de um canteiro de obras na vizinhança. Empunhando o objeto como uma lança, ele o arremessou por cima do ombro. Os amigos pararam de andar para olhar enquanto aquilo traçava uma curva no ar e entrava por uma janela do Mackenzie.

De outra janela voou um pano molhado, que caiu no colo de uma moça. Ela deixou-se atingir e pareceu até divertida, afinal desde quando um pano molhado é arma de ataque. Mas logo em seguida começou a gritar desesperada: o pano estava encharcado de ácido sulfúrico. Ela foi rapidamente levada para dentro do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Mauro teve vontade de ir embora. Queria estar sentado na mesa da sala da pensão, queria pedir a dona Matilde um leite com chocolate e assistir à televisão. Estudar um pouco. Ou mesmo voltar para casa, dar um abraço em sua mãe. Qualquer lugar seria melhor do que ali. Que desculpa poderia dar para desaparecer?

Na sequência, uma garrafa passou voando por cima da rua. Preso a ela, um tecido em chamas. Coquetel molotov. Explodiu na parede do prédio da Filosofia, formado uma língua de fogo azul e amarelo que queimou por vários minutos.

Mauro e seus amigos correram para dentro do prédio. Pessoas passavam por eles com pedras na mão, para atirá-las contra o inimigo. Impossível sair dali. O jeito era ficar e lutar. Queria perguntar a alguém onde é que ficava o banheiro, mas teve vergonha. Vamos jogar pedras também!, chamou Eulália, já a caminho com passo decidido e seios balançando.

Havia muitas pedras, que tinham sido trazidas da construção para serem usadas como munição. Iam até o depósito, vinham com uma em cada mão, atiravam com toda a força, voltavam para pegar mais duas, e assim por diante até ficarem suados. Uma vez, enquanto voltava para recarregar, Mauro desviou-se do caminho e buscou o banheiro até encontrar. Tinha dois motivos para pressa: estava prestes a se aliviar nas calças e não queria que dessem por sua falta.

Entrou nas cabines, uma por uma, procurando onde houvesse papel higiênico. Não havia nada. Pensou em se virar com papel toalha, mas esse também estava em falta. Bem, limparia-se com as meias então, paciência. Entrou em uma das cabines e encostou a porta, mas não havia trinco para fechá-la. Abaixou as calças e se sentou, mantendo uma perna esticada para segurar a porta com o pé. Torcendo para que não aparecesse ninguém, relaxou os músculos do abdome. O que saiu dele foi um estrondoso pum, que reverberou pelo banheiro e lhe trouxe alívio imediato. Estivera sofrendo de gases. As meias estavam a salvo, afinal. Subiu as calças e voltou correndo para a frente de batalha para jogar mais umas quantas pedras, com força redobrada.

A certa altura, pararam para descansar e Walter perguntou por Epitácio, que alguém disse estar no andar de cima. Foram para lá. Mal chegaram, alguém colocou um rojão na mão de cada um. Façam boa pontaria!. Sem responder nada, chegaram perto da janela, os rojões foram acesos e disparados na direção do Mackenzie. Ouviram os estouros, mas não puderam ver o que tinham acertado. Saiam logo daí!. Não era seguro ficar exposto. Afinal, o outro lado também tinha os seus rojões. Ademais, precisavam dar espaço aos próximos atiradores.

— Pessoal, aqui tem gasolina para fazer os molotov.

Quando se viraram para ver quem estava falando, a surpresa: era o próprio Epitácio. Abraçaram-se em meio à confusão.

— Que bom que vocês vieram.

O encontro foi interrompido por uma sequência de estampidos secos.

— O que é isso? — perguntou Mauro.

— São tiros. Eles estão atirando contra o nosso prédio. Fiquem longe das janelas. Luís, Luís!

Epitácio chamou um colega que ia passando e o fez se juntar a eles.

— Pessoal, esse é o Luís Travassos. Ele está no comando aqui. Luís, eles vieram ajudar.

O tal Luís mostrou onde estavam as garrafas para fazer os molotov e cada um deles pegou uma. Nova sequência de tiros atingiu a parede pelo lado de fora, e uma janela se estilhaçou.

— Filhos da puta! Estão querendo nos matar!

Correram para encher suas garrafas de gasolina. Quando estendeu o braço, Mauro percebeu que sua mão tremia. Tentou disfarçar segurando com as duas mãos. Epitácio colocou um funil na garrafa e verteu a gasolina dentro. Alguns rapazes tinham tirado e rasgado suas camisetas para produzir pavios. Com tudo preparado, desceram as escadas. Na rua, encontraram voluntários com isqueiros a postos para acender as bombas, uma de cada vez, antes que as jogassem com força contra o Mackenzie.

Mauro estava achando aquilo uma loucura. O que estavam querendo alcançar ali? Os adversários ocupavam a porção mais alta do terreno e atiravam com armas de fogo. Eles se expunham a levar tiros para jogar aqueles coquetéis, que se espatifavam na parede de forma inofensiva. Ver a bola de fogo subindo era tão bonito quanto inútil.

Enxugou o suor da testa com a mão, e se esforçou para achar uma maneira de formular a sugestão de que fossem embora. Não queria parecer covarde, nem derrotista, apenas sensato. Enquanto pensava, viu um garoto parado ao seu lado, com uma bolsa nas costas.

— Ei, garoto, como se chama?

— José.

— José do quê?

— José Guimarães.

— Você é muito novo para estudar na USP…

— Não, eu estudo aqui perto, no Colégio Marina Cintra. Fica ali ó, na Consolação.

Era um secundarista.

— Vai pra casa, menino. Aqui é muito perigoso.

— Eu não tenho medo, não.

— Pois devia ter. Eu mesmo…

Antes que Mauro acabasse de falar, o garoto foi atingido na cabeça por um tiro e desabou.

Primeiro, Mauro ficou paralisado, olhando para o corpo. O mundo ficou em animação suspensa por alguns segundos. Depois, recuou, assustado e balbuciante.

— Gente… o menino… o menino…

Puxou Juvenal pela camisa e apontou a cena. As moças se voltaram para ver o que era e começaram a gritar. O amigo imediatamente tomou o garoto nos braços e levou para dentro do prédio da Filosofia. De lá, foi levado à Santa Casa.

Carla se abraçava a Mauro, chorando muito. Ele queria ser forte para lhe dar apoio, mas estava também muito abalado. Caminharam até um canto mais tranquilo, sentaram-se no chão e choraram os dois. Além da tristeza, Mauro sentia raiva. Raiva do atirador. Sobretudo do atirador, mas não só. Tinha raiva da polícia, que não aparecia para resolver aquela loucura. Raiva dos amigos, que o tinham levado até ali. Raiva de si mesmo, por ter aceitado ser levado até ali. Tinha raiva até do menino. Secundarista ainda, se colocara na frente do perigo. Para quê? Por uma vaga noção de coragem, de sacrifício? Que burrice. Onde estaria sua coragem agora, depois de morto? Aquilo tudo era um pesadelo.

A luta continuava, levada a cabo pelos que ainda não tinham ficado sabendo do que acontecera. Aos poucos, a notícia da morte de José se espalhou e mudou a disposição dos uspianos. Desistiram de defender o prédio e saíram em passeata. Mauro e seus amigos foram também.

Quando o pessoal do Mackenzie viu o prédio inimigo sendo abandonado, correram para ocupá-lo e incendiá-lo, celebrando a vitória.

A passeata ainda não tinha se afastado muito quando alguém começou a discursar aos gritos, empoleirado na janela de uma casa. Tinha nas mãos a camiseta ensanguentada de José Guimarães. Carla sussurrou em seu ouvido: “Aquele é o José Dirceu.” Mauro não ouvia direito o que o orador estava dizendo, mas percebeu o espírito da fala: a culpa era da ditadura.

Recomeçaram a andar e a ideia fazia cada vez mais sentido. A culpa direta era de quem atirou, mas a razão de tudo aquilo estar acontecendo era a ditadura. Não era o ditador — Costa e Silva estava em Brasília e nem sabia que naquele dia alguém chamado José tinha levado um tiro na cabeça em São Paulo, na rua Maria Antônia. Era o sistema, o regime. Os militares queriam se impor pela força, continuariam se impondo pela força. Não entregariam o poder pacificamente. Tinham que ser derrubados ou continuariam produzindo outros Josés.

A turba estava vandalizando um carro da polícia. Os policiais não pareciam estar por ali. Mesmo que estivessem, não estariam em posição de fazer muita coisa. Eram o braço armado do regime, viviam a seu serviço e portanto aquele carro representava a repressão e por isso eles queriam destruí-lo e tinham toda a razão. Mauro viu que um colega levava na mão um molotov.

— Me dá isso!

Tomou a bomba da mão do outro, encontrou alguém que a acendesse e arremessou-a contra o vidro do carro da polícia. O fogo subiu. Os que estavam em torno bateram palmas e assistiram ao carro ser consumido.

— Muito bem, Careta! — gritou Juvenal.

— Mauro — corrigiu Carla. — O nome dele é Mauro.

As chamas crepitavam, hipnóticas. Queimavam junto com elas o seu apelido. Não seria mais o Careta. Mas ele queria mais, queria que elas queimassem sua ingenuidade, sua passividade. Sua alienação. Queria jogar lá dentro seus cadernos, seus livros de cálculo, suas roupas. Queria entrar ele mesmo numa pira funerária e sair renovado.

Sentiu que Carla lhe puxava o braço. Gostou de sentir aquele puxão. Era o puxão da vida. Ele queria ser puxado. Desejava ir com ela, ir com aqueles que ali estavam, que o puxassem o quanto antes e saíssem todos correndo, para qualquer lugar.