PÓS-ARTISTA
“Would it not be enough if I simply went away?”
Samuel Beckett (1906-1989)
Na cultura contemporânea para um artista ser notado no mundo profissionalizado de arte, tem de aparecer, isto é, estar continuamente presente em inaugurações, jantares, festas, after party´s, etc. Realizando este trabalho persistente, irá com certeza ser registado sistematicamente nos instagram´s, facebook´s, web sites, revistas de arte digitais e mesmo em revistas especializadas do sector. Ao construir a sua carreira, é obrigatória a constante presença nos eventos onde o circo artístico surge no seu esplendor. Ser visto entre artistas, coleccionadores, galeristas, curadores, designer´s, enfim todos aqueles que fazem mover o sistema, é meio caminho andado para um suposto sucesso.
Dentro deste contexto frenético e viciado, o retiro voluntário de um artista, parece aparentemente ser um acto suicida. O artista que esteve dentro do meio e sabe como funciona, ganhou o direito de se afastar. Posicionando-se na ausência, constrói deste modo um caminho de resistência e integridade, perante um sistema inautêntico. No fundo, sabe que as necessidades do artista e as exigências do mundo da arte divergem. Quando se perde a fé, a ruptura é inevitável e quando já não se acredita no poder transformador da arte, ao artista só resta o retiro. Tornando-se um exilado, o seu trabalho representa a impraticabilidade e a falta de esperança, a busca impossível de conceber um futuro para si.
As tendências artísticas que propuseram uma retirada da arte foram prevalecentes por volta de 1910 e posteriormente depois de 1968, foram tempos de profunda transformação social. A vontade de ser livre e quebrar as barreiras por uma revolução total, de todos os domínios da vida deu lugar ao vazio, perante a vaidade do mundo da arte. O sistema encarcera o artista nos seus códigos, controlando os seus actos, submetendo-o. Entregue a si próprio, o artista abre um novo caminho para ressuscitar o que resta da liberdade da arte. O seu modo de vida inconformista, está para além dos papéis bem ensaiados que o mundo da arte o confina. Os artistas que criticam as condições sociais, que não limitam a sua prática em malabarismos em galerias e museus, vão ao ponto de romper completamente com a arte. A sua renúncia súbita ou gradual a qualquer envolvimento no campo artístico, resume-se à obra, aos documentos e às suas notas que contêm pistas sobre os motivos da sua retirada.
Como sabemos o modelo emancipatório do papel e comportamento de um artista está extinto, agora não passa de um contorcionista amestrado, apresentando os seus truques nos locais designados pelo sistema. A crença de que a prática artística do indivíduo pode ser sustentável e eficaz sob as condições sociais actuais está morta. A perda de um horizonte enfraquece a crença no papel do artista. A forma mais radical de crítica institucional que se pode imaginar, é fechar a porta para sempre à arte.
Encontramos diversos artistas ao longo da história da arte que optaram por virar as costas ao meio. Arthur Cravan (1887-1918) notou que "a primeira condição para um artista é poder nadar". Acabou por desaparecer num pequeno veleiro no Golfo do México. Bas Jan Ader (1942-1975), também zarpou com o intuito de atravessar o Atlântico, como parte do seu projecto "Em Busca do Milagroso", nunca mais voltou a ser visto. Estes finais românticos e trágicos, representam a forma final da obra do artista. A fusão de arte e vida é completa, abarca o sujeito e a realidade em toda a sua dimensão. A imagem da passagem do oceano, de estar à deriva e à mercê dos elementos, de se fazer ao mar e de não chegar a lado nenhum é reflexo disso.
O cepticismo dos artistas sobre as capacidades sociais e políticas da arte, atingiu o seu clímax, as suas dúvidas sobre o seu próprio papel tornaram-se visíveis, tanto nas obras de arte como nos gestos simbólicos. Este modelo enraizado no romantismo, esfumaçou-se. Podemos agora perguntar se pode haver um pós-artista? Que vai até aos limites normativos da vanguarda, com o desejo de empurrar o muro das definições estabelecidas da arte, mesmo que isto signifique sair da visibilidade, produzindo um mito, onde o fim da vida se torna indistinto do acto final artístico?
A arte sempre participou em vários modos de economia, de troca e transacção. Hoje o seu papel no mercado global é de um instrumento financeiro de capital especulativo, com retornos gigantescos de investimento, levando o consumo de arte a níveis monetários estratosféricos. Se assim é, o artista já não é meramente um artista, mas sim um agente cultural empreendedor, um gerente e parte interessada na industrialização da sua arte.
A dissidência artística, é uma forma de resistência ao mercado e às instituições. É quando o artista realiza uma crítica sistemática ao meio, que compreendemos o cenário de censura existente e de exclusão social que este permeia. O artista não desiste, mas é permanentemente ignorado. A sua recusa em jogar um jogo viciado logo à partida, leva-o a ser cancelado. Esta objecção levanta a questão dos critérios sociais que regem o reconhecimento de alguém como artista. Leva-nos às práticas artísticas localizadas, para além das concepções de arte e do artista oficialmente sancionadas. Práticas cujos critérios de inclusão e exclusão são politicamente determinantes.
A exposição “Gestures of Disappearance” comissariada por Alexander Koch, exibida pela primeira vez na Academia de Arte de Leipzig, na Alemanha em 2002, reflecte sobre a inacção humana como uma forma de práxis tão válida como a acção. A ideia é plausível se considerarmos quantos gestos de silêncio empregados no momento certo, podem significar um statement determinante no mundo da arte. A inacção artística pode servir como instrumento de inovação, ao perturbar a comunicação artística. Tais perturbações são particularmente prevalecentes durante os tempos de transformação cultural. É a rejeição deliberada de práticas sociais, institucionais e liberais ou outras expectativas que as práticas artísticas enfrentam, pois, a inacção é representativa da rejeição, que por sua vez se manifesta como um acto artístico. A incapacidade de realizar um acto artístico, persegue intenções comunicativas e críticas.
Para além de renunciar à forma da obra, a inacção implica também a cessação de todas as outras formas de publicação, performance, ou aparência no campo da arte. Em vez de subverter as expectativas que sub-jazem à prática artística, elimina as suas expectativas. Em vez de abordar concepções do trabalho e modelos do papel do artista com a intenção de os reformar, vira as costas ao sistema da arte na sua totalidade. A retirada da arte é, de facto, muitas vezes um processo incremental em que a decisão de abandonar lentamente a arte toma forma. Embora tal separação também possa ocorrer abruptamente, a inacção artística radical, ou o abandono da arte, não é geralmente uma simples recusa ou súbito silêncio; pelo contrário, deve primeiro criar esse silêncio, permitir uma reflexão sobre o seu abandono, assim pode, aparecer como uma prática artística por direito próprio.
O artista à medida que abandona as suas actividades, encena controvérsias sobre o significado e a perspectiva das práticas culturais, sobre a atribuição social de papéis e a sua legitimidade institucional, sobre as ideias utópicas da sociedade e as suas perspectivas de realização. Desistir da arte é fazer “Tabula Rasa” sobre o campo artístico.
A tensão entre o consenso e a divergência, acerca do que constitui a arte, levou a um sistema uniformizado, geral e institucional, se não o sistema colapsa. Quando algo é codificado, definido e validado como arte, serve para que ninguém consiga mudar o seu status. A recusa de participar nos jogos do mundo da arte, não altera as regras do jogo, mas poderá eventualmente alterar o seu curso.