O SISTEMA


Introdução

As obras “Art an Enemy of the People” (1978), de Roger Taylor, e “The Invention of Art” (2001), de Larry Shiner, têm um intervalo de duas décadas. Ambas as propostas são parecidas. O ponto de partida vem de um trabalho que Paul Kristellar (1905-1999) publicou no ”Journal of the History of Ideas", cujo título era:The Modern System of the Arts". A partir deste autor, juntou-se outros dois: Wladyslaw Tatarkiewicz (1886 –1980) e Raymond Williams (1921-1988). Ambos trabalharam no campo das ideias da história durante os anos cinquenta e sessenta do século XX. O resultado desta investigação foi a descoberta do conceito de arte como actualmente o conhecemos, que apenas surgiu durante o século XVIII.

Esta «invenção da arte» foi criada pela sociedade europeia burguesa, não havia semelhante percepção do que se designava de «arte» anteriormente. Nem as outras culturas partilhavam esta noção de arte, nem mesmo empregavam esta palavra para conotá-la. Há que salientar também, que o conceito de arte nunca foi e não é universal. Mas sim, um modo de vida específico que surge num momento particular da história europeia, satisfazendo uma gama muito particular de necessidades sociais. Esta é a tese desenvolvida por ambos os livros.

Assim, Roger Taylor qualifica a arte como uma ideologia burguesa, que promove uma ordem social nefasta para a população, enquanto Larry Shiner apresenta o processo social que permitiu que algo surgisse e se tornasse valioso. Todavia, a invenção da arte nasce de um conceito mais antigo de arte.

I

Os vínculos etimológicos entre os usos da palavra «arte» em várias línguas a partir dos séculos XVII e XVIII, bem como nos seus usos antecessores, não equivalem a uma identidade conceptual.

Na noção grega de actividades cuja prática obedece à regra, encontramos uma distinção entre habilidades liberais e miméticas. As artes liberais consistia na gramática, retórica, dialéctica, aritmética, geometria, astronomia, medicina e arquitectura. As artes miméticas eram a poesia, escultura, música e magia. Neste mundo de outrora, a arte era qualquer actividade que se regia por um conjunto de regras. Existiam muitas artes, muitas disciplinas com regras que podiam ser aprendidas. As actividades que requeriam perícia e habilidade na qual exigia um alto grau de destreza manual era referido como «artes». Na Idade Média, o conceito moderno de arte era inexistente, a arte era vista como um ofício. No Renascimento, não havia real distinção entre poesia, música, pintura e andar a cavalo, ou mesmo coleccionar curiosidades naturais. Estas sociedades não realizavam distinção de espécie alguma.

A divisão vai acontecer a partir do século XVII e XVIII, quando emerge o sistema moderno das artes, que é instituído pelo domínio da burguesia contra a aristocracia, perante a emergência da ciência, e de um novo sistema económico. Um dos primeiros centros deste novo modo científico foi também um centro de actividade mercantil, esse centro foi a Holanda. Estas actividades burguesas receberam repúdio dos aristocratas. Devido ao surgimento de uma nova classe, a burguesia, culta e endinheirada, a aristocracia transformou-se a si própria para enfrentar este desafio. A velha forma de vida aristocrática estava a ser alterada pela burguesia, assim, estes voltaram-se para algo ainda não alterado da velha ordem de vida, algo que não tinha sido mudado. Tornaram-na, assim, distintas das novas formas de vida, na medida em que foram contra à forma de vida e ao estilo burguês. “A arte foi uma invenção da aristocracia”. (Arnold Hauser, 1892-1978)

Mediante estas premissas o conceito de arte mudou radicalmente, passou a ser um refúgio exclusivo da aristocracia. Significa, desta forma, a espiritualidade, a expressão de alguém tocado pela graça divina, mediante a superioridade desta pequena elite. Foi uma alternativa encontrada pela aristocracia contra o mercantilismo, a uniformidade e vulgaridade da vida económica burguesa. O significado do novo conceito de arte elevou parte da velha forma de vida num objecto de reverência irracional. Um novo vocabulário surgiu para falar de uma coisa chamada arte. Estes jogos de palavras foram desenvolvidos para servir a vida aristocrática como algo distintivo, como sendo de um estatuto superior. As primeiras teorias da arte, no sentido moderno, combinavam arte com a verdade. A arte foi inventada, instruída a celebrar para sustentar o saber, a antiga ordem cosmológica e social, a aristocracia. Esta que o crescente domínio das tendências burguesas estava a ameaçar e logo a derrubaria.

O avanço científico e económico, em oposição à vida artística, como foi concebida, contestavam pelo estatuto de uma forma de conhecimento. A vida artística era vista como a mais alta forma de actividade e a mais absoluta forma de aspiração social e individual. A partir desta ideologia formada pela aristocracia, a burguesia vai contra-atacar, assimilando o desejo da arte da classe aristocrática. Tornando-a num projecto concreto de elevar as práticas burguesas. Ao assimilar o status da arte, transformando-a através da actividade teórica as instâncias aristocráticas da arte, a burguesia passa a administrar as actividades económicas do mundo artístico.

Este movimento reflecte as mudanças vividas na teoria estética durante os séculos XVII e XVIII. A insistência que a arte é uma questão de gosto, em vez de uma representação de um certo grupo social, é o movimento necessário para conceder na categoria da arte, o grau de flexibilidade, onde a burguesia como classe dominante pode assimilar. Esta não conta com a arte como critério aristocrático, transforma-a e assimila-a como modo de vida aristocrático na cultura burguesa. É a partir daqui que a arte fica para sempre ligada ao desenvolvimento da burguesia. A arte é experimentada socialmente e desenvolvida dentro deste movimento complexo. O que é subsequentemente necessário são as teorias que irão dar autoridade ao particular, envolvendo um set mental desta nova classe dominante, a insistência na forma, no conhecimento e no individualismo. A burguesia necessitava fazer algo com a vida cultural, não como algo mítico e supra-humano concebido pela aristocracia, mas sim como uma expressão cultural condicionada, expressa no nevoeiro de desumanização do capital. A Arte como a conhecemos é o resultado destes variados processos.

II

Durante os séculos XVII e XVIII, devido à nova vida económica e ao surgimento da ciência, instigada pela burguesia, os modos de vida mudaram. Se os negócios das artes tinham sempre existido, mas localizados, como um mercado especializado, tornou-se um mercado de massa de produtos especializados. Foi esta transformação que inicialmente se tornou, em negócio da arte, incluído na indústria do lazer, aparecendo como um logótipo de qualidade. Testemunhamos, assim, a individualidade que o mercado cria, os grupos que produz, e, por extensão, um mercado com milhares de seguidores de tendências opostas. Arte tornou-se uma marca registada de qualidade universal. A partir deste tempo, estes bens cumprem o seu objectivo na sua compra. O resto tornou-se secundário, o que interessa é a economia e os mecanismos do sistema. A própria vida pode ser reduzida ao trabalho e ao consumo, mas pelo menos se consome arte. Como estilo de vida, arte passa a ser um vírus, assumindo outras formas e as coloniza a tal ponto que se apresenta difícil diferenciá-las umas da outras.

“Agora a única coisa que todas as obras de arte têm em comum é que elas são consideradas obras de arte” segundo Roger Taylor. Na realidade, o único objectivo da arte é ser comercializada. O que aconteceu na arte foi a sua conversão em «mercadoria». As noções de autonomia, na sua possibilidade infinita e na autenticidade de alternativas comprometem-se por um conteúdo formado, de acordo com os preceitos das forças de mercado. A mercadoria projecta-se especificamente para o consumidor.

Na sociedade ocidental, existem assumpções acerca de quais objectos serão «arte» e quais as pessoas apontadas como artistas de renome. Estas assumpções tradicionais constituem um saber comum. Isto é, são formas de educação social que garantem este saber. As pessoas são instruídas dentro destas tradições, que são ensinadas e passadas às subsequentes gerações, como parte da contínua tradição que é realizada. O processo social envolvido na sociedade contemporânea, constitui um dos negócios dessa mesma sociedade. Podemos comparar aqui, o modo como algo se torna um estabelecido objecto de arte, ou como alguém fica um artista de renome, ou critico, tal como um produto comercial se estabelece com sucesso. A partir deste momento, a sustentação da tradição da arte e o seu crescimento vem do processo social dentro da sociedade capitalista.

Na educação, os valores culturais ensinados não são aqueles da maioria dos estudantes ou do seu meio social. A experiência cultural ensinada é a burguesa, esta que é algo aceite como parte integrante da vida. Poderemos então dizer que o conjunto mental da classe predominante que constrói a área artística impõe o que designa como verdadeiro valor. A linguagem utilizada no qual o mundo da arte é discutido é uma cortina de fumo, conferindo uma aura acerca deste aspecto da vida da classe dominante. “Parece que a arte da nossa sociedade é unicamente aquela a que é designada pelas classes altas. Devíamos menosprezar esta arte e fazer uma distinção entre ela e a arte real, aquela que não é aceite pela sociedade.” (Leo Tolstoy, 1828-1910)

III

Marx e Engels em “A Ideologia Alemã” (1932) referem que é o espírito humano e não a actividade humana, o sujeito da história. São as ideias que adquirem autonomia e passam a subjugar o mundo, devendo o pensador, transformar a realidade substituir as ideias reinantes por outras que considere libertadoras e verdadeiras.

Na sociedade contemporânea, a arte é uma forma de vida, um sistema conceptual vivido dentro da configuração burguesa. É desta configuração que o processo de arte emana e o seu élan melhora a vida, mas não vai muito além dos interesses da sua classe social. Este conceito de arte acaba por emergir e estruturar o julgamento na área social, no qual esta categoria é fixa, conferindo o estatuto da arte. Uma vez adquirida e estabelecida qualquer coisa fica como uma categoria da arte, porque assim foi definida, pois constitui parte das tradições da categoria. O julgamento, que qualquer coisa é arte, assinala o seu valor. O valor é oferecido pela prática burguesa e determinada objectivamente. A constante procura por teorias que a definem foi o modo para racionalizar o julgamento. Estas teorias constroem reverências irracionais para actividades que a burguesia necessita. Assim, a mistificação torna-se parte do conceito da arte.

A categoria de arte emerge primeiro do que tudo, como uma tentativa da aristocracia de fazer a sua vida engajada em algo como um conhecimento superior, para posteriormente a burguesia transformá-la em negócio de massa. Hoje podemos dizer que a arte é uma forma específica de vida superior, que está identificada somente em singulares condições históricas e não é, como é óbvio, distribuída universalmente. Se aqueles que acreditam e foram doutrinados que a arte é uma forma universal de religião, no qual todos os seres sensitivos podem entrar. Enganem-se, pois é meramente um culto, imaginado por uma classe convencida que pressupõem ser superior.

As obras de arte são identificáveis simplesmente, porque entram no processo social, na forma da vida que a arte é fixou nelas a marca arte. Este é o único facto para qualquer coisa ser arte é demonstrar que é aceite na área social apropriada, para garantir que qualquer coisa é arte. As razões e explicações ao longo dos séculos foram tão diversas que a sua aceitação só pode ser meramente arbitrária. Agora, é unicamente o que a classe dominante, o grupo que manufactura a ideologia da classe, chama de arte, por isso a classe que chama qualquer coisa de arte é simplesmente fixo em sistemas de valor, estes que não podem ser justificados através dos rótulos impostos.

IV

Um engodo abarca o mundo de falsidade, a mentira surpreendente está contida na ideologia da arte. Não existe nenhum ideal superior, existe somente o estilo de vida dos grupos que detém os recursos financeiros dentro da sociedade. Ao pertencer a este grupo significa assumir esta forma de vida, independentemente de ter ou não talento, inteligência ou sensibilidade, no fundo, é irrelevante. A superioridade cultural é uma decepção praticada por uma classe contra as outras. Só conseguimos observar esta mentira, quando nos afastamos da actividade e vemos com os nossos próprios olhos a proliferação geral desta falácia.

A nossa sociedade tem um sistema educacional que nos administra conteúdos que influenciam as vidas de todos nós. Este sistema educacional é a mais directa área de coerção praticada sobre os indivíduos. Sucesso ou insucesso neste sistema correlaciona perto com a hierarquia social. Aqueles que tem uma posição de classe dominante na hierarquia tendem na maior parte, ter sucesso no sistema, enquanto outros são relegados para uma classe de servidores do culto da arte. A divergência entre a vida vivida e a vida recomendada, leva na maior parte dos casos à auto-decepção.

Para a maioria das pessoas a arte é desinteressante, é rejeitada pela generalidade do público. A ideia que um trabalho de arte é algo produzido através de uma luta pessoal e solitária, através de considerável sofrimento, é uma ideia romântica muito reproduzida na arte e na sua prática artística. A arte é aquilo que é chamado de arte. O objecto produzido é largamente uma consideração irrelevante. Se a prática social diz que é arte, então deve ser arte. Assim, qualquer coisa torna-se arte através de uma conspiração colectiva, para segurar o seu estatuto, um artista é meramente alguém que orquestra e gerência o palco da conspiração. “O artista aliando-se ao poder financeiro e orientando o seu trabalho por essa espécie de influencers como os directores de fundações e coleccionadores, este artista-homem de negócios submete-se ao mecanismo da alienação. Tendo, habitualmente, jogado o jogo da ideologia dominante, obteve capital simbólico, este autêntico activo financeiro transforma o trabalho que se produz a si mesmo e ao próprio artista como mercadoria.” (Eduarda Neves)

A arte e a sua ideologia, quando afirma que é universal, apropria-se das actividades dos povos indígenas e das inúmeras culturas tradicionais, regionais de diversas zonas do planeta, colocando, desta forma, os seus trabalhos dentro da categoria de arte. O significado social foi a ascensão do status social destas práticas. A arte é pensada como sendo universal, é este o seu apelo, mas a arte é uma actividade para uma pequena coterie e não tem nenhum apelo universal. Quando o capital torna-se interessado em certas actividades, então essas actividades são introduzidas no conceito de arte, porque esta classe dominante não tem interesse nenhum para além da arte, assim, o que é interessante tende de ser arte. Quando existe interesse em aspectos da cultura popular, esta então é também classificada como arte, satisfazendo desta forma a sua ideologia. Mudando-as mediante o processo, a invasão de cultura popular é decorrente do impulso da arte pretender ser universal, como uma atracção deceptiva para aqueles cujas actividades são saqueadas. A divisa l´art pour l´art tornou-se em the art system for the art system. A cultura está morta, o predomínio concedido aos mercados financeiros designou quais são as forças económicas que controlam a civilização ocidental. A arte contemporânea é definida pelo sistema económico, está submissa às condições sociais de produção.

Actualmente ser um artista é querer dizer algo significativo para todos os homens, mas atacar a arte contemporânea é cair na sua ideologia. As diversas tentativas para atacar a arte, ao expo-la e desmistificá-la não tem a ver com objectivo de acabar com a arte, visto ser impossível terminar com uma indústria. As formas organizacionais à volta destas actividades e o que é dito acerca da arte, é socialmente nocivo. Apresentar temas ditos fracturantes e vendendo-os como objectos de luxo é representativo do verdadeiro artista, aquele que tem «espírito livre» é um caso de sucesso. Pertencendo à pequena coterie, procura sempre conservar os seus privilégios, tal como toda a sua classe, prostrando-se continuadamente ao serviço do patronato. A arte é um distintivo de sucesso dentro da sociedade, a sua importância social no processo de galardoar, na sociedade é discriminatório contra o resto da população. Esta é parte ideológica da arte. O facto que um grupo de indivíduos segundo um interesse pessoal não cessarem de elogiar alguém ou alguma coisa, diz tudo sobre a arte.

“Hoje em dia aquele que deseja tornar-se artista, é para poder ser burguês. Ao contrário dos rebeldes burgueses que são do contra, falam de subversão e deliram com o futuro. O atleta, a dimensão física da sua arte é mais próximo da animalidade do que do burguês civilizado, está mais próximo duma dimensão extra-humana.” (Peter Sloterdijk)