A ARTE É UMA RELIGIÃO


Introdução

No livro “Against art and artists” (1968), Jean Gimpel reflecte sobre a arte e os artistas contemporâneos, expondo o engodo. Para o autor a arte parece ser uma religião e os artistas párocos da diocese, com os seus acólitos para os assistir no serviço artístico. Estes são seres que possuem uma especial percepção e entendimento sobre a ordem religiosa e a sua vida comunal. Tal como muitos religiosos, estes artistas têm a reputação do desapego dos bens deste mundo, professam o desinteresse no capital e representam temas fracturantes. Este comportamento resulta da sua própria convicção de pertencerem a uma ordem superior de homens, tocados pela mão de deus. Ser um artista é preencher o seu destino, é uma vocação tal como o sacerdócio e não uma profissão. Esta religião foi iniciada por uma minoria de pregadores e apóstolos, posteriormente foi adoptada e professada pela maior parte dos intelectuais ocidentais, espalhando-se globalmente como um vírus.

A cultura é uma regra monástica, ou pelo menos pressupõe uma regra monástica.” (Ludwig Wittgenstein, 1889-1951). Para os modernos, isso significava estarem constantemente perante a missão de se integrarem numa ordem performativa que lhes imprime as regras, apenas com a notável diferença de que não entram para a ordem por sua livre vontade, mas nasceram nela. Queiram ou não, a sua existência está desde logo inserida nos meios disciplinares omnipresentes, contra isso os movimentos marginais e os romantismos não têm grandes hipóteses. Para provar que levam a sério o seu imperativo de performance, a ordem que se esconde sob o manto da “sociedade” burguesa, também é algo que confirma a educação para os jovens: certificados, exames, promoções e prémios.

Como foi possível à civilização contemporânea que contribui em tantas áreas no progresso humano, tornar-se tão apaixonada e interessada em problemas como a arte. Quando o individualismo é levado ao extremo, torna-se em culto do ego.

I

O filósofo Marsílio Ficino (1433-1499) diz-nos do passado: “O Homem cria como Deus, a mente humana concebe através do pensamento tudo o que deus cria no mundo. Visto que o homem percebeu a ordem celestial das esferas, quem pode negar que ele próprio é quase como um génio, tal como o autor das esferas, em certo sentido, se ele conseguisse obter os instrumentos e o matéria celestial. Porque agora ele é capaz de produzi-los de uma forma diferente, mas numa ordem similar, ele faria os céus“. A ideia da inspiração e do génio, como um presente de Deus, está na origem do grande sistema de pensamento renascentista e da filosofia do século XVII. “(…) Nas imagens e nos edifícios a intenção e o julgamento do artista brilha. É a figura da sua alma que podemos ver. A sua alma está representada nestes trabalhos, como a face de um homem olhando-se no espelho, representando-se a ele próprio.” A analogia do espelho deu azo ao nascimento do trabalho de arte. O trabalho do artista a partir de agora, era considerado, um reflexo de um pensamento individual e não mais de uma ideia superior. A ideia da propriedade intelectual acabara de nascer, tornado-se posteriormente um culto, dando á luz uma nova religião, a da arte. A religião da forma, do estilo, da beleza e da estética. A arte era um refúgio, um recinto sagrado, no qual podíamos escapar das fraquezas e desgostos do mundo. A obra artística era agora um fim em si mesmo e não mais um meio de acção. O “nascimento do artista” e do “trabalho artístico”, foram liberdades muito apreciadas, mas iriam produzir dificuldade em avaliar o próprio trabalho. Até esta altura o valor de uma pintura era dado de acordo com a sua dimensão, as horas de trabalho dedicadas e o custo dos materiais. Agora estávamos perante um conjunto de novos critérios. Qual é o preço de uma personalidade, uma expressão e um sentimento?

Em pouco tempo o trabalho artístico passou a ser sujeito à lei da oferta e da procura. A burguesia não perdeu tempo em organizar o mercado. Desde o seu início a religião da arte foi a religião do lucro. Giorgio Vasari (1511-1574) descreve, que enquanto alguns pintores adaptaram-se com sucesso à nova posição do artista na sociedade, tal como Rafael (1483-1520) e Ticiano (1490-1576), houve muitos outros que, como resultado desta mudança, perderam a sua direcção. A transformação de pintores em artistas, realizada pelas ideias neoplatónicas (Séc. III – VI), espalhadas por Marsílio Ficino (1433-1499), foi muitas vezes um processo extremante complicado, que alguns artistas acharam penoso e não se adaptaram à nova realidade em que tinham de viver. A fundação da primeira Academia das Artes (1563) realizada por Vasari foi o culminar dos esforços de Leon Battista Alberti (1404-1472) e Lorenzo Ghiberti (1378-1455). Agora os pintores e escultores encontram-se na Academia, eram seres privilegiados que acabavam por escapar ao controlo das guildas de pintores. Na academia a aprendizagem e a relação mestre-discípulo foi substituída pelo mestre-aluno, o artista era agora um intelectual e não mais um trabalhador manual.

A Contra-Reforma ou a Reforma Católica (1545) tentou novamente integrar os pintores e escultores na sociedade, através de decreto. Produto da controvérsia iconoclasta que agitou o Império Bizantino entre os séculos VIII e IX. Este evento da comunidade religiosa veio afectar a liberdade dos artistas em relação ao seu trabalho, agora tinham de ser doutrinados e supervisionados. Surge uma divisão entre arte religiosa e arte secular. Agora a arte apelava as suas emoções e sentimentos para as massas. Ao mobilizar os artistas para a propagação da fé, a Igreja voltou-os a integrar na sociedade.

II

Um século mais tarde encontramos a Academia de Vasari e o seu modelo propagado no regime de Luís XIV (1638-1715). Charles Le Brun (1619-1690) irá repetir em Versailles o papel que Vasari teve em Florença perante os Medeci (XIV-XVIII). No século XVII os pintores e escultores franceses, queriam ser distinguidos dos trabalhadores manuais e das artes mecânicas, alcançar o estatuto comparável às artes universitárias e portanto às artes liberais. É neste estádio que eles rejeitam o termo artesão. A “Academia Real de Pintura e Escultura”, foi fundada em 1648. A intenção era moldar a personalidade artística dos pintores e escultores a um padrão, tornou-se um centro para os jovens artistas que eram necessitados na construção de Versailles. A ideia era mostrar que para o artista a “mão é o servo da mente”, e a “Pittura est cousa mentale”. As demais guerras e a ostentação da corte arruinou as finanças. No final do século a economia base desta segurança começou a desmoronar-se. A Academia acabou por fechar as suas portas, privando os artistas do seu patrono. Estes tiveram que lidar com o mercado aberto, e a incerteza da luta pela sobrevivência.

No início do século XVII, nos Países-baixos, os artistas já se encontravam à mercê do mercado aberto. Aqui não havia instituições comparáveis à Casa Medeci em Florença ou ao sistema de Luís XIV para acomodá-los. Não havia comissões do estado, como não havia da Igreja, dentro deste contexto, produziu-se para os pintores, condições de trabalho anárquicas. Estes produziam trabalho não solicitado nos seus estúdios, era um novo fenómeno. A consequência económica foi perturbar o balanço entre a oferta e a procura, e introduziu o risco de excesso de produção e depreciação. As pinturas tornaram-se commodities sujeitas às leis do mercado. O negócio e a especulação, associado eram normais, muitos pintores tornaram-se também marchand de tableaux. Esta nova classe, servia para intermediar entre pintores e público, influenciando o seu comportamento e perspectivas de ambos. Alguns comerciantes assinavam contratos exclusivos, no qual o artista entregava a sua produção, para o marchand especular sobre a sua obra. No contrato também ficava escrito o que o artista devia pintar e quais as temáticas a ser abordadas. Devido ao mercado saturado, muitos art dealers voltaram-se para os mestres do passado e também para a venda de cópias das pinturas com mais sucesso.

Em França mediante a influência italiana, as obras de arte não eram consideradas commodities. A comunidade não estava dominada pelo marchand, mas sim por connoisseurs, da classe dominante. Era um mercado para uma elite. “As pinturas são o equivalente a barras de ouro, nunca houve um investimento tão bom. Acabamos sempre por duplicar o dinheiro se queremos vender”, escreveu em 1675 o Marquês de Coulanges a Madame de Sevigné. Descobriu-se a importância das exposições publicas, os Salões tornaram-se respeitados, atraindo a multidão e os colecionadores aumentaram. O surgimento de um guia descrevendo, os trabalhos da exposição, foi um salto para o surgimento de folhetos, artigos nos jornais, comentários e méritos nos trabalhos exibidos. Os artistas começaram a utilizar estas críticas como uma forma de publicidade, falando com escritores para fazer recensões favoráveis. O crítico havia nascido, a partir de agora os homens das letras iriam influenciar as modas do pensamento e do sentimento no mundo das artes plásticas. Surgiram os teóricos da arte, da beleza e da estética. Alexander Gittileb Baumgarten (1714-1762) publicou a “Estética” em 1750, no qual pode ser considerada como o início da disciplina. Seguiram-se um diverso corpo de sistemas estéticos: Sulzer (1751), Lessing (1756), Mendelssohn (1757), Kant (1781), Fichte (1792), Schelling (1792), Hegel (1807). Os grandes colecionadores foram recrutados à burguesia, em particular ao poder financeiro. Para além do seu comércio, também havia a sua possesão. Iniciando-se desta forma o culto do objecto, pois, este foi o culto para o desenvolvimento do gosto. Um importante corolário da educação que tantas pessoas requereram para os seus filhos, era a formação do gosto e distintos hábitos, que continuavam a garantir o prestígio social da burguesia. A marca destes, no nevoeiro de uma cada vez mais sociedade diferenciada, tornar-se-ia bem sucedida e garante a sua posição de vantagem.

III

“L´art pour l´art” encontrou a sua forma final através do Romantismo surgido no final do século XVIII, durou até ao século XIX. É o ressurgimento do artista renascentista, um ser excepcional, um ser superior. A religião da arte volta a reencontrar-se, cristalizando a forma final dos artistas e da sua personalidade. A partir de agora o imaginário é de o artista refugiar-se no seu mundo. Nasce um novo tipo de intelectual, o romântico. Para este a arte era a substituta, a consolação, o refúgio e uma linha de demarcação entre a existência da sua vida privada e da sua vida pública.

“Existirá sempre uma antipatia entre o homem do poder e o homem da arte” Alfred de Vigny (1797-1863). No seu livro “Stello” (1832) disseminou o mito do poeta e do artista incompreendido pela sociedade, vivendo como mártir, condenado a morrer de fome. Reprova todas as forças hostis ao seu ideal: os académicos e a Igreja pelo seu tradicionalismo e autoritarismo, a ciência pelo seu utilitarismo. A burguesia pelo seu realismo e a sua hipocrisia, bem como pela sua continua perseguição do ganho. A antítese para o artista romântico era o, desinteressado, livre de cuidados, cheio de nobreza, está no topo da hierarquia, é um ser ideal.

Victor Cousin (1792-1867) proclamou a autonomia da arte: “A arte não se refere a nada além de si mesma.” A teoria de “l´art pour l´art” foi aceite com entusiasmo por uma nova geração de escritores como: Flaubert, Baudelaire, Théodore de banville. Um culto de um ideal acima da natureza e acima da vida, em que outros depositam na religião, eles apostam na arte, ou a arte é para eles uma religião. “Vamos amar um ao outro na arte tal como os místicos se amam em Deus”, Gustave Flaubert (1821-1880). “Sê religioso acerca da arte…arte não é meramente uma profissão, é um apostolado…os meus elevados gostos são parte de uma religião”. Théophile Gautier (1811-1872) “Tudo é assunto, o assunto és tu próprio, as tuas impressões, as tuas emoções em frente da natureza. Tens de olhar para ti próprio, e não para fora de ti”. Eugène Delacroix (1798-1863). Nestes tempos pintava-se para satisfação pessoal. A pintura deixava de ser uma profissão para se tornar uma vocação. Henri Murger (1822-1861) publicou “Scènes de la vie bohème” (1847) onde idealizou a imagem do artista marginal, levando uma vida de excêntrico e promiscuo. O movimento da arte pela arte, tinha colocado a sua semente na mente dos homens.

O estilo decadente começou a atrair interesse nos circuitos literários Franceses, era a expressão final da palavra. Charles Baudelaire (1821-1867) hostil à democracia e às massas, proclamando que o artificial era superior ao natural. Desejava que a arte fosse independente não só da ciência e da moral, mas também da natureza. Até surgir a invenção da fotografia, desde a Renascença até ao século XIX foi particular a ambição de muitos pintores representarem a realidade o mais verossímil possível. “Uma excelente pintura é aquela que imita a natureza no seu melhor e produz pinturas que estão em conformidade o mais parecido com o objecto pintado”. (Leonardo Da vinci, 1452-1519). É de enfatizar este processo na arte moderna, pois é independente em relação à natureza. A principal consequência desta doutrina foi abrir caminho para toda a deformação da realidade. Esta condena não só a arte tradicional, a pintura de paisagem e da história, mas também a arte social, e a imitação da natureza. Toda a arte consistia em representarmos a nós próprios, evocando estados mentais.

A noção comum para os intelectuais deste período foi a expressão, não de uma imagem do mundo externo, mas o eu do escritor e do artista. Para estes, doravante, o universo era simplesmente uma projecção fora do eu da psique humana, na medida em que participa no ser. A arte era para uma elite no qual devia devotar as suas vidas. A vida devia ser sacrificada à arte. A religião da arte e da estética era para uns eleitos. O divórcio entre arte e público tornou-se completo. Os artistas eram hostis à civilização materialista, muitos escolheram a solidão, a artificialidade e outros, o exílio e o primitivo. A partir deste momento do tempo observamos a uma rápida sucessão de “ismos”. O artista precisa chocar a apatia burguesa. Ao chegarmos ao fim deste processo avassalador de movimentos artísticos destrutivos, o artista já sem se contentar em deformar os seus trabalhos como meio de criação, começou a destruí-los. Yoko Ono (1933) propôs um último trabalho, a autodestruição do artista: “Usem o vosso sangue para pintar. Continuem a pintar até desmaiarem. Continuem a pintar até morrerem.” Chegado a este momento, esgotou-se.

IV

Na contemporaneidade, milhões de pessoas converteram-se à nova religião. Um culto de uma minoria tornou-se uma maioria. Este extraordinário evento só pode ser compreendido olhando para a ligação entre arte e o capitalismo, pois as obras de arte tornaram-se em capital e acções para serem especuladas no mercado.

Desapontado com os seus amigos artistas, Emile Zola (1840-1902) publicou a novela “A Obra” (1886). No seu livro descreve a inumanidade de um artista que devotou a sua vida ao culto da arte. Numa das cenas mais dramáticas, o pintor vai ao cúmulo de utilizar como modelo o seu filho que acabara de morrer. Zola, também apresenta as alterações significativas que o mercado de arte sofreu. As pinturas começaram a ser vistas em termos stock-exchange, banqueiros entreviram nos momentos críticos, o mecanismo de lançar novos pintores e o marchand tornou possível a evolução do mercado. Alguns pintores protestaram com a forma especulativa de venda que os comerciantes faziam às suas obras, segundo eles, tinha-se tornado um negócio degenerado. O marchand Paul Durand-Ruel (1831-1922) monopolizou a produção de grande parte dos pintores que estavam vivos, comprando os trabalhos antigos e futuros através de uma avença ao pintor. Ganhando deste modo o controlo do trabalho, dos preços e do mercado. Como qualquer monopolista protegeu as suas commodities das flutuações de procura e oferta, limitando o número de telas no mercado e promovendo-as através de propaganda inteligente. Esta nova relação entre o artista, art dealer e colecionador, acabou com antiga relação intermediária através das obras expostas nos Salões de Belas-Artes. O marchand é um agiota e ao especular dá nome à obra e ao artista. Os pintores tiveram que apreender com os especuladores e agentes financeiros, a preocupar-se também como eles, com os eventos políticos, eleições, golpes de estado, guerras, pandemias, pois estes eventos podiam afectar imediatamente o comportamento do mercado. O resultado do interesse próprio levou os colecionadores a converteram-se gradualmente à religião da arte, pela activo proselitismo dos seus apóstolos. Afinal uma imagem não é unicamente uma commodity do mercado, é antes demais um objecto de devoção religiosa. Alcançando este novo estatuto de graça, estas pessoas apreenderam a comungar com fé, na adoração dos santuários do mesmo credo estético.

O declínio na religião tradicional na Europa, foi sucedido pelo surgimento das ideologias, a partir do século XIX. O homem substitui a imagem de Deus pela imagem da sociedade ideal. Após o colapso dos sistemas ideológicos no final do século XX, a Europa foi afectada por um processo inexorável de decadência, que destruiu a crença, enfraquecendo e transformando a natureza dos alinhamentos políticos, criando por toda a aparte o vazio e a perca de direção. Delegando todo o sistema ao mercado financeiro e desregulado. Foi precisamente nesta altura que a ideologia da arte floresceu, aqueles que tinham capital foram gradualmente convertidos na relegião da arte e dos seus commodities., supostamente sagrados. Os templos agora são os museus onde estão as obras artísticas, seja qual for a sua natureza, onde um público devoto faz fila para contemplar as maravilhas que o mercado criou. A palavra arte acarreta conotaçoes de uma nova religião, esta que foi buscar o seu vocabulário às religiões tradicionais. Ela está espalhada nas inúmeras revistas de especialidade, periódicas e livros impressos anualmente. A elite distingue-se das supostas pessoas comuns pela valorização de um tipo de objecto, o objecto de arte, que a pessoa comum não reconhece, isto porque não sabe decifrar o código tendencioso. A cultura do capital criou gradualmente uma distinção, na qual o homem comum fica à defesa, transformou a cultura em coisa sagrada e excluio as pessoas que não estão iniciadas no culto e no código da arte contemporânea. A arte ajuda a elite em reconhecer-se a eles próprios na massa anónima da sociedade e seguir a sua missão divina. No fundo, uma minoria aplaude-se a si própria porque possui objectos “sagrados”, que veneram.

“O artista é um dos eleitos, ele é escolhido para encarnar a sensibilidade e os sofrimentos do mundo”. Georges Mathieu (1921-2012)

“Arte é uma relegião para nós artistas, mesmo aqueles de nós que não alcançaram sucesso continuam agarrados à sua fé num ideal, que os torna criativos”. François de Hérain (1877-1961)