A narrativa documentária (em sua enunciação lírica ou assertiva) é constituída pela representação de uma circunstância de mundo em que ações, ou expressões, do sujeito na tomada tornam-se encenação. Encenação é um conceito que, resumidamente, descreve o embate do sujeito-da-câmera com o sujeito-em-cena na tomada. É encontro do maquinismo da câmera com as coisas e seres que habitam o mundo da cena, interagindo. É pela variação das modalidades da encenação que surgem as dimensões do enunciar documentário - seja em asserções ou na figura de sensações. Na disposição dessa comutação, dois veios de raiz se distinguem: a encenação propriamente, em seus modos "direto" e "construído" (já trabalhados anteriormente), e o que chamaremos de a-encenação, objeto inédito deste projeto de pesquisa. A a-encenação pode ser determinada como forma extrema da encenação, proximidade excessiva na qual ela mesma é deglutida no momento em que olha e vê seu abismo. Seria o encontro, pela câmera, com o que já foi chamado de "carne do mundo", aqui tato-câmera. É quando o corpo se aproxima em demasia da flexão do maquinismo sobre o que lhe é exterior. Na tensão da cena se abre uma fissura pela oscilação da subjetividade que passa experimentar a si como outrem - característica contemporânea de uma enunciação impregnada pela lógica da sensação. A expressão mais extrema das sensações colide com a aproximação máxima da câmera no mundo, nas formas do tato, da primeira pessoa ou da fala, nos modos audiovisuais da alteridade. A a-encenação documentária vigora nas experiências abertas e dilaceradas de uma subjetividade cindida. No entanto, ela é sempre flexionada pelo maquinismo da câmera no formato fechado da narrativa fílmica, pela "voz" do megaenunciador.
O Projeto de Pesquisa aborda o Cinema Marginal Brasileiro, definindo-o dentro do perÍodo 1968 e 1973. Busca situar seus primórdios seja na geração cinemanovista, seja no Cinema da Boca. Iremos estudar o desenrolar do Cinema Marginal nos anos 1960/1970 e desenvolvimentos que o ligam e afastam do Cinema Novo. Um dos eixos será a questão da representação do popular e o Tropicalismo. A geração dos Marginais será vista em detalhe, tanto no cinema da Boca do Lixo paulistana, como nos filmes da Belair. Os cineastas mineiros e baianos do grupo também serão estudados, assim como a filmografia no exílio. "O Bandido da Luz Vermelha" será tomado como filme paradigmático, representando a ruptura geracional. O princípio do deboche e da ironia, a fragmentação enunciativa pop, a digestão da narrativa clássica de "A Mulher de Todos", e a figura de Helena Ignez, estão aí incluídos. Simultaneamente, trabalharemos com os primórdios do Cinema Marginal em São Paulo e as duas tendências na produção paulistana: Boca do Lixo e Teatro Oficina (Trevisan, Calasso, Agripino, Ebert). Na Boca, realçamos o Marginal Cafajeste e sua particular proposta estética com Reichembach, Jairo Ferreira, Sganzerla, Andrea Tonacci. As singularidades e anterioridades no cinema de Candeias e Mojica serão aprofundadas. Já o Cinema Marginal carioca, além da Belair, será abordado através dos filmes de Elyseu Visconti, Ivan Cardoso e Luiz Rosemberg. O veio mineiro carioca e a radicalidade escatológica do Marginal terá análise, abrindo espaço para os filmes marginais de Geraldo Veloso, Neville d'Almeida e o discurso minimalista de Sylvio Lanna. Acompanha de perto a produção baiana de André Luiz Oliveira e Álvaro Guimarães com, respectivamente, "Meteorango Kid, o herói intergalático"/1969 e "Caveira My Friend"/1970. A produtora Belair, capitalizando o núcleo da produção marginal, será analisada como "junção das águas" entre Sganzerla e Bressane. Ela traz o Cinema Marginal em plena potência, com produção comunitária em ritmo acelerado. São cinco longas em um semestre de 1970, mais o inacabado "Carnaval na Lama" : "Sem Essa Aranha" e "Copacabana Mon Amour" (Sganzerla); "Cuidado Madame", "Família do Barulho" e "Barão Olavo, o horrível" (Bressane). Ainda em 1970 grande parte dos Marginais é obrigada a deixar o Brasil. A produção no exílio chega ao fim dois anos após, nesta espécie grande horror que significou a radicalização da ditadura militar. Permeando o conjunto da proposta de pesquisa, buscamos especificiar o que foi a "estética marginal" entendida como conjunto de procedimentos de sensibilidade artística que, em seu núcleo, possuem simultaneamente, de um lado, a representação do horror e as imagens da abjeção, e, de outro, o deboche, o grotesco, trazendo representação do que chamamos de "curtição". No choque e na oposição sem solução das tendências, se configura a estética Marginal propriamente. Ela dilacera a representação até o extremo, traz o mergulho numa interioridade em que pulsões se transmutam em vontade por si, propondo a uma experiência interior de "si mesmo", sem articulação de objetividade determinada.