VIA CRUCIS
A TARDE (primeira estação – condenado à morte)
Compras
mais Gide
Thomas Bernhard
e Julien Green.
Tu sabes que é tarde.
Tarde
para gritar que não
ou para crer que sim
tarde
para abrir uma mão
e semear um jardim.
(Gide Thomas Bernhard e Julien Green
que três amuletos que anjos da guarda
que raio de aspirinas caso a ferida arda)
A NOITE (segunda estação – recebendo a cruz)
Há morrer e há também morrer:
morrer do mal e morrer da cura
morrer de doença e de literatura.
(Ai a literatura quando chilreia
que renda de bilros que cefaleia)
.
A MANHÃ (terceira estação – primeira queda)
É lento
o tempo
às quatro da manhã.
Lento
o movimento
o vento
sem aconchego
do desassossego
que te resta.
(Hoje não vai dar
para dormir a sesta).
O TÁXI (quarta estação – (des)encontra a mãe)
Tomas um táxi, não vais a pé
(que bom seria se tivesses fé)
.
PASCAL AGORA (quinta estação – recebe ajuda para carregar a cruz)
- A vida é infernal
ó senhor Pascal
lá de Port-Royal!
- A vida é o que é:
uma nota de rodapé
no Calvário da fé.
(Todos O nomeiam ninguém O vê
como quem nada percebe do que lê)
.
PASCAL SEMPRE (sexta estação – recebe ajuda para enxugar a face)
«Morre-se só» ?
Ora essa, homessa!
E o colchão todo de pregos
dos odiozinhos dos outros
e a terna oh terna almofada
entre tua cabeça e o Nada?
«Morre-se só»?
Ora essa, homessa!
Morre-se é
de medo
sem o dedo
de Deus.
(Se isto não fosse um abecedário
esta seria mesmo de missionário).
A HISTÓRIA (sétima estação – segunda queda)
Não chores.
Alguém guardará
para sempre
na mão
no coração
na memória
a tua história
sem escapatória.
(Oh que melodrama que grande tragédia
nada mais parecido com uma comédia).
O ADEUS (oitava estação – mulheres choram ao vê-lo)
Que fizeste?
Nasceste.
Morreste.
Que valeste?
Este adeus
só a Deus.
(Um dia sabe-se lá haverá quem diga que não
que foste bom ou mau cobardola ou valentão).
O CORREDOR (nona estação – terceira e última queda)
Será longo
o corredor
da dor?
Se não:
viva o Senhor!
E se sim?
Então és só rafeiro a ganir
ao chegar a hora de partir.
(Que mau gosto diz a marquesa
ai ai falar destas coisas à mesa).
A ESPERANÇA (décima estação – despojado das vestes)
Festa é festa
(talvez não te vás
ainda desta).
O HORIZONTE (décima primeira estação – pregado na cruz)
Está a começar
o espectáculo.
Seringas
algálias
vozes ao longe.
- Aonde vais?
- Olhar o cais
o mar
e ver
que não há mais
horizonte.
Só tua dor, teus ais.
(Assim é difícil mudar de ar
«no se puede vivir sin amar»).
O SORO (décima segunda estação – morre na cruz)
Gota a gota de soro a vida sai
gota a gota de soro a vida cai.
Gota a gota de soro aguentas
gota a gota de soro rebentas.
Depois?
Só uma
(a tua)
imensaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
página
em
branco.
(Agora é que perdeste mesmo a partida
teu bilhete não era de volta, só de ida).
O AMOR (décima terceira estação – nos braços da mãe)
Fala-me de Deus.
Só tu
me podes falar
do Deus
da minha infância.
Daquele a quem se pede.
Daquele que te protege.
Diz-me onde Ele está
hoje amanhã depois
se vive aqui ou lá
se não morreu
ou onde jaz, pois.
Anda
fala-me do Deus
que sorri
que pousa a mão
na tua testa
que te ouve
que supera a razão
que me resta.
Fala-me
de
Deus.
Fala-me do Amor.
(Já ninguém te ouve. «A vida continua»
dizem todos logo que põem o pé na rua).
O GRITO (décima quarta estação – sepultado)
Cadáver
gelado.
Um grande grito
mesmo de vivo:
«liguem
o ar
condicionado!»
15.ª ESTAÇÃO DA VIA CRUCIS
(Facultativa, mas com imprimatur do autor)
«Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita do Pai» (Paulo de Tarso, Carta aos Colossenses, 3, 1)
O INSULTO
Tinha 20 anos. Só sabia que nunca iria ser feliz.
Tinha 20 anos. SÓ SABIA QUE NUNCA IRIA SER FELIZ.
TINHA 20ANOS. SÓ SABIA QUE NUNCA IRIA SER FELIZ.
Tinha 20 anos
olá se tinha
e só sabia
que iria morrer.
MORRER. Mas que insulto!