A Universidade Estadual do Piauí/Campus de Parnaíba realizará o II Encontro de SocioAntropologia Política da Saúde, cuja temática será a educação em tempos de cultura do ódio. O evento debaterá o fenômeno da violência às escolas. Esta proposta parte do relatório “Ataques às escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental”, publicado em 2023, pelo Ministério da Educação e com relatoria de Daniel Cara, da Universidade de São Paulo; da obra de Hannah Arendt, especialmente, “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (1999), “Origens do totalitarismo” (2012), “Pensar sem corrimão – compreender 1953-1975” (2021) e “Sobre a violência” (2022); e dos livros “Tudo sobre o amor – novas perspectivas” (2021) e “O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras” (2023), de bell hooks.
Arendt discute o método da familiarização das pessoas com a ideia acerca do extermínio, mediante a rotinização da violência, da tortura, da morte e do mal, abordando o aprendizado da resistência ao “não-matar”, fazendo com que o mal perdesse sua qualidade de tentação sobrenatural, sendo transformado em mal banal. Na sociedade ocidental, há muitas pessoas, nem pervertidas, nem sádicas, mas terrível e assustadoramente normais. Uma normalidade extremamente apavorante, que fez surgir um tipo novo de criminoso, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. Nesse contexto, origina-se uma estranha possessão ideológica que faz com que uma ideia seja “sentida” e “posta” em prática; torna o homem em deus, governado por uma ideia e pelo autoengano. Dessa forma, o verdadeiro oposto do bem não é o mal ou o crime; é a indiferença.
A sociedade massificada, politicamente indiferente e incapaz de refutar argumentos contrários, prefere métodos mortais a persuasivos, terror à convicção; interpreta o sofrimento como “instrumento de progresso histórico”; louva a violência, o poder e a crueldade como aptidões supremas do homem; e promove a crueldade à categoria de virtude maior. Ao adotar o terrorismo como filosofia, possibilita a expressão da frustração, do ressentimento e do ódio, através de algo imprevisto, cuja publicidade é observada com prazer por impingir às camadas normais da sociedade o reconhecimento da existência de alguém. Nisso reside o perigo da completa solidão: os imensos sacríficos de vida humana, devido ao uso da violência para dar realidade às doutrinas e às mentiras.
bell hooks fala acerca da cultura de dominação patriarcal capitalista individualista materialista consumista de supremacia branca, que recorre à violência para impor a exploração e a desumanização. Culturas de dominação apoiam-se no cultivo do medo como forma de garantir a obediência. O pavor individual e coletivo foi tornado parte do cotidiano, tornando, por sua vez, as pessoas obcecadas pela ideia de segurança. Mas, não há o questionamento do porquê de vivermos em estados de extrema ansiedade e terror. A ausência desse questionamento, dentre seus fatores, atrela-se à manipulação produzida pelos meios de comunicação patriarcal de massa que insistem na perpetuação da ética da dominação e da violência. Nisso, a violência patriarcal é direcionada às crianças e aos adolescentes e é também aprendida, primeiramente, nas experiências de desamor na infância. A violência é reafirmada na recusa de encará-la na realidade. Tanto que a masculinidade patriarcal, que é violenta, se caracteriza pela inabilidade para assumir a responsabilidade por causar dor a si e aos outros. Isso se explicita, especialmente, quando os homens, em particular, justificam a violência e a extrema violência contra quem tem menos poder, sugerindo que eles são as verdadeiras vítimas.
Posto isso, a socioantropologia política da saúde permite entender que há canalizadores políticos, como o projeto político e ideológico do extremismo de direita nazifascista, que promovem a banalização dos mais diversos tipos de violências e da morte. Sobremodo, em um contexto de disparidades socioeconômicas, educacionais, de gênero, de raça e de saúde. Por isso, é urgente o debate de estratégias voltadas para a atenção às condições sociais, políticas, econômicas, educacionais e culturais que tornam determinados grupos mais vulneráveis às violências, cujas consequências atingem diretamente a qualidade de vida.
Ainda mais, conforme o relatório “Ataques às escolas no Brasil” (2023), em um contexto de aprofundamento da cultura do ódio, difundida pelos meios digitais e promovida pelo extremismo, este considerado o elemento central dos ataques às escolas. Escolas e ambientes escolares brasileiros foram tornados alvos e lócus de violência, com 36 ataques a escolas que vitimaram 37 comunidades escolares e 164 pessoas, das quais 49 foram vítimas fatais, entre os anos de 2002 a outubro de 2023. A propósito, a partir de 2017, com exceção de 2020 devido ao contexto pandêmico covidiano, houve um aumento significativo do fenômeno no Brasil. Os ataques às escolas ou ataques de violência extrema contra as escolas são um fenômeno contemporâneo, compondo o universo das violências nas escolas. Adolescentes e jovens são cooptados mediante grupos e discursos de ódio, em interações na internet, pautados na ideologia supremacista branca, masculina e heterossexual, fomentando misoginia, capacitismo, racismo e homofobia.
Segundo o relatório acima citado, os ataques às escolas são, em sua maioria, praticados por alunos e ex-alunos, como reação a ressentimentos, fracassos e violências experienciadas tanto na vida quanto na comunidade escolar. O bullying é inerente ao fenômeno, mas, como um dos fatores, não explica sozinho a problemática dos ataques às escolas. Pois, o fenômeno é multicausal. Dentre as causas, são citadas: a falta de controle sobre discursos e práticas de ódio disseminadas facilmente por meios digitais; a cultura armamentista e de glorificação da violência na sociedade; as desigualdades sociais e políticas educacionais inadequadas e ambientes não acolhedores, relacional e fisicamente falando; violências institucionais e micro violências e a exacerbação do extremismo no Brasil.
Outro ponto importante é sobre a motivação dos ataques, a qual não pode ser reduzida a questões de saúde mental dos perpetradores, apesar desta ser um aspecto relevante. Esses ataques, no âmbito de suas especificidades, são crimes por imitação, baseados ou inspirados em um crime anterior, favorecendo e explicando o “efeito de onda”, estabelecido no Brasil desde 2017 e piorado nos últimos três anos. Um dos crimes “inspiradores” mais famoso é o de Columbine, que ocorreu em 1999, nos EUA. Em linhas gerais, os adeptos das ideologias extremistas têm a violência, o poder e a crueldade como as supremas aptidões masculinas e usam a violência para realização das doutrinas supremacistas, espelhando irrefletidamente uma educação para a morte. Isso numa estrutura que simplifica a realidade e ativa afetos como medo e ódio, reforçando senso de pertencimento e estigma aos diferentes.
A educação não sendo um ente em separado da sociedade, reflete as consequências do moralismo beligerante inspirado em ideologias extremistas, como a nazifascista, e de repressão e destruição da diferença. A urgência do exame desse fenômeno no Brasil e o impacto dele na qualidade de vida e bem-estar da população nos traz à segunda edição do Encontro de SocioAntropologia Política da Saúde: a educação em tempos de cultura do ódio – pensar caminhos possíveis, cujo objetivo é debater e analisar as relações entre cultura e discurso de ódio, autoritarismo, ideologias extremistas e violência na esfera educacional e contra as escolas.
Em 2020, entre os dias 14 a 16 de janeiro, no Campus Professor Alexandre Alves de Oliveira da Universidade Estadual do Piauí, foi realizado o evento local “Atividade de Extensão Socioantropologia política do corpo, da saúde e da doença: debates interdisciplinares”. Esse evento foi cadastrado como projeto de extensão na Pró-Reitoria de Extensão da UESPI, com carga horária de 30 horas. Contou com 82 inscritos, 2 oficinas, 5 mesas-redondas, 1 palestra, apresentação de trabalhos, tela sociológica – exibição e discussão de um filme e apresentações culturais.
A partir dessa experiência, foi criado o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Sociologia da Saúde – NIPESS, iniciado em 2021 e pertencente ao Programa Institucional de Bolsas de Extensão Universitária – PIBEU/UESPI (editais nº 018/2020; 024/2021; 031/2022 e 057/2023).
Em 2022, o II Encontro de socioantropologia política do corpo, da saúde, da doença e da morte: reflexos e reflexões da pandemia foi realizado gratuitamente como evento PIBEU (edital PREX/PIBEU/UESPI nº 018/2020), com carga horária de 60 horas, nos dias 11 a 14 de janeiro de 2022, em modalidade remota, pelos aplicativos Google Meet e YouTube. Teve 195 inscritos que participaram efetivamente. Contou com 4 oficinas; 9 palestras; 4 mesas-redondas e apresentações de trabalhos em 5 Grupos de Trabalhos, os quais receberam trabalhos de instituições de ensino superior de outras regiões do país. Durante o evento, foram realizados dois lançamentos de livros. Desse evento, resultou o livro intitulado Encontro de Socioantropologia Política do corpo, da saúde, da doença e da morte – reflexos e reflexões da pandemia, em versão digital, publicado neste ano de 2024 pela Editora da UESPI, com o ISBN 978-65-89616-67-2.
Em 2023, o nome do evento mudou para I Encontro de SocioAntropologia Política da Saúde (ENSAPS). Com a temática “a política como questão de vida e de morte”, foi realizado, gratuitamente, pelo Google Meet e transmitido pelo YouTube, nos dias 25 a 27 de janeiro, com carga horária de 40h. Promoveu 4 oficinas; 5 minicursos e cinco GTs, 4 mesas-redondas, 6 palestras e 1 feira de artesanato. As palestras e as mesas-redondas dos eventos de 2022 e 2023 estão disponíveis gratuitamente no canal do NIPESS no YouTube ((2) NIPESS - YouTube). No momento, o NIPESS está organizando a publicação referente ao evento de 2023.
Editais PREX/PIBEU/UESPI nº 031/2022 e 057/2023