Sobre o primeiro número da revista co_vid@ | Eis o primeiro número a revista co_vid@, criada para tentar pensar a crise e seus entornos. A revista se propõe a dar um canal a textos de intervenção, ou seja, peças breves e incertas, mas com a inegável virtude crítica da urgência, sobre o momento que vivemos.
Nesta edição temos poemas, narrativas, crônicas, ensaios e uma imagem. Todas as formas se relacionam de alguma maneira à pandemia, como, infelizmente, uma boa parte das nossas vidas nos últimos meses e nos que vêm. Os editores contamos que estes exercícios possam aliviar, comover, fazer pensar ou meramente distrair aqueles que acaso os leiam. Comecemos então...
Sumário Inspira, conspira_Manuel Duarte João Pires| Pelos corpos que cuidam_Ana Luíza D. B. Drummond | À PANDEMIA_Gláucia Maria Ribeiro de Souza | Ciclos: pandemia._ Jorge de Freitas | A MASCARADA _Bruno Anselmi Matangrano | NECRO_ Rozemberg Guimarães Silva |
Eu escrevo da China e hoje quando olho para trás, para essa longínqua antiguidade perdida de há três meses, eu não posso deixar de esboçar um sorriso por pensar que nessa altura eu estava a viver dias tão ruinosos e inusitados que a maioria da humanidade não iria sequer sonhar, talvez nunca viria a perceber. Naqueles meados de Janeiro em que a quarentena foi decretada aqui na China por entre os dias ociosos do ano novo chinês, a incerteza, a opressão e o receio eram de tal forma que se podiam sentir num nível corpóreo. Tudo se anunciava tão extremo e imprevisível que eu aliviava as minhas noites de caneta na mão despejando as memórias de uma guerra caseira num pequeno caderno que iria resultar no livro que ninguém nunca jamais lera ou experimentara. No entanto, alguns meses volvidos, todo o ser humano se tornou especializado no tema, possuindo vários volumes de comuns vivências para contar. Millôr Fernandes dizia que especialista é um sujeito que só não ignora uma coisa. Podemos dizer agora com alguma certeza que quase toda a gente à face da Terra partilha a designorância sobre um mesmo assunto. O meu livro não saiu, mas passei a ser compreendido. Ninguém mais fez pouco dos meus dias repetidos de clausura franciscana nem do meu septicismo crônico ou planeamento pormenorizado quando a tarefa mais quotidiana virara missão em cenário de guerra. Este vírus é inclusivo, incluiu a humanidade, obrigou a humanidade a isolar-se juntinha e a experimentar a mesmas emoções, as mesmas incertezas, a ter semelhantes angústias para partilhar. Em muitos lados a vida vai começando a tentar ser o que era, mas não é, em lado nenhum, um regresso à normalidade como quando passa uma tempestade e na manhã seguinte a vida volta a ser igual apesar de mais ou menos árvores caídas. É um regresso à normalidade em que nos próximos tempos viveremos com o inimigo contra o qual o respeito e as precaução não podem esmorecer. Por entre este vírus que nos engoliu desprevenidos com uma onda gigante e dentro da qual andamos aos trambolhões, esperando que ela nos atire de uma vez para o areal minimamente vivos, gostaria de abordar dois temas: um sobre o facto de nos prestarmos ao papel de peões ao serviço das propagandas deste jogo de xadrez à la Guerra Fria e outro sobre aquilo a que chamamos globalização.
É preciso ter presente que toda a suposição e conspiração que muito se levanta à volta deste vírus, até certo ponto recomendável em democracia, apesar de cansativa e desgastante quando em excesso, oferece matéria fértil de propaganda absolutamente gratuita para todos os lados da barricada que dela se querem e precisam de se servir. Creio que já somos peões que chegue nesta história para andarmos a trocar galhardetes que apenas servem os propósitos e as debilidades de alguns líderes mundiais. Como alguns estudos sociais já salientaram, o problema de nos darmos a todo este teor conspiratório é que se contribui para reforçar ou alimentar a desresponsabilização ou o passa a outro e não ao mesmo da responsabilização, fazendo com que o desleixo se instale e que daqui uns tempos nos possamos encontrar novamente em aflições semelhantes por inércia de todas as partes. Embora as verdades e teorias alternativas possuam por norma argumentos mais criativos, atraentes e cinematográficos, prefiro centrar-me nas razões da comunidade científica e assim destacar medidas como as das cidades de Zhuhai, Shenzhen e outras que endureceram as leis de comercialização de animais, proibindo a compra e venda de várias espécies. Já tinha havido medidas na altura do SARS, que começou na província de Cantão, e que por isso possui regras mais apertadas em relação a esta matéria, mas agora decidiram ir ainda mais mais longe. O caminho é este, cada um fazer a sua parte e tomar as medidas que tem de tomar. Mais um aspecto em que apesar das circunstâncias temos de fazer por manter o equilíbrio e a qualidade de expressão evitando alinhar em teorias que tomem a posição de uma parte e assim contribuam para sacudir as responsabilidades do capote de outra. Não se trata de procurar culpas, que se diluem num mundo curto, mas de se estar ciente da responsabilização que todos devemos retirar deste episódio e destes tempos. Caso contrário, todo esse ruído de “inspira, conspira” pouco mais faz do que acentuar divergências e reforçar narrativas que interessam apenas ao reforço de propagandas. Por exemplo, aqui na segunda vaga do vírus por alturas do mês de Março, depois de estar relativamente controlado dentro de portas, muitos cidadãos regressaram à China (20% deles estrangeiros) até as fronteiras terem sido fechadas no final desse mês. Nesse período em que se deu uma reincidência de casos, algumas pessoas passaram a assumir que era essencialmente um problema vindo de fora, evitando e fugindo de estrangeiros, mesmo apesar de se usarem máscaras obrigatoriamente. Situações como pessoas impedidas de entrar em diversos tipos de estabelecimento só por serem estrangeiras foram recorrentes, assim como problemas com a maior comunidade africana no Extremo-Oriente na cidade de Cantão que passou por situações ainda mais complicadas. Por todo o mundo, todas as mil e uma noites de conspiração e suposição contribuem para memórias curtas e memórias alternativas. Este vírus juntou-nos individualmente separados a fim de nos protegermos e contribuirmos para uma causa comum. Este vírus reuniu-nos a distância para percebermos os caminhos que devemos seguir e o que temos a melhorar enquanto humanidade. Este vírus não nos agregou para espalharmos ainda mais segregação ou para andarmos a reproduzir cegamente os desígnios vácuos dos desgovernados corifeus que nos governam.
A segunda questão é esta globalização. É uma coisa bonita porque nos faz ficar globalmente mais apertadinhos e quentinhos. Mas quando dizemos globalmente, dizemos um par de países e pessoas do mundo, uma coisa muito restrita e exclusiva. A globalização tem cartão de cliente e reveste-se de muitas divisões como no futebol. O que acontece nas divisões inferiores não tem audiência nenhuma, aparece sobretudo para ser referência num mundo que se quer inclusivo. É de bom tom andarmos informados e sabermos de cor os valores da mais actual e exemplar cidadania, mas na verdade ninguém passa o mínimo cartucho ao que acontece na China, nem às portas da Europa nem em lado nenhum onde seres humanos supostamente se debatem com os problemas vulgares do amadorismo das divisões inferiores. São outras realidades que pouco interessam. É uma globalização faz o que eu digo, façamos o que dizemos, muito agradável ao ouvido, mas enganosa quanto ao conteúdo. Uma globalização muito nossa, sob o ponto de vista de um pequeno mundo que crê falar em nome de todos os outros quanto aos seus problemas e abordagens à contemporaneidade, mas que se move dentro de um condomínio fechado de portas relativamente abertas, nem se importando que para além dele as suas mensagens pouco ou nenhum efeito tenham. Um clube selecto e privado de povos convencidos que o mundo se deve fazer à sua imagem e que talvez por isso tende a esquecer-se da esmagadora minoria que representa em termos de população mundial. Por vezes nem nos apercebemos que, só assim por alto, Ásia e África contêm 75% da totalidade de seres humanos, sendo que a maioria das pessoas por entre estes continentes vive realidades e se debate com prioridades diametralmente diferentes. Um mundo virado do avesso pela Covid mas que não faz questão de se virar para a malária ou para a fome que ceifam mais vidas e não estão apenas de passagem. Um mundo que não vê os 209.815 seres humanos cujo corpo se apagou no presente ano por não terem nada para comer.1 Um mundo onde a indiferença seca a fonte da fraternidade entre os homens. Vivemos uma globalização superficial em que gostamos de sublinhar os elos que nos ligam e onde não faltam meios para comunicarmos, mas onde não existe de facto comunicação ou diálogo entre estes mundos e suas gentes. Por entre este descaso a realidade do mundo despertou-nos com inesperada urgência com um banho gelado de globalização verdadeiramente global que foi chegando aos poucos anunciado lá do fundo de onde nós não reparamos nem queremos reparar. Fala-se do que não foi dito ou se omitiu logo no começo desta história em Wuhan, quando pouco ou nada se sabia, e tanto continua por se saber, mas é necessário reflectir também à cerca do que não se quis ver nem ouvir embora a informação há muito chegasse, as dúvidas que só agora se levantam desde então se discutiam e noticiavam, penosas semanas se iam arrastando com um quinto da população quarentenada e nenhuma atenção se prestava, nada se fazia, porque tudo era apenas coisa do outro mundo, do longínquo, do terceiro. Problemas próprios de quem é deixado para o final do noticiário e do qual ironicamente pouco mais parecia importar além de garantir que as encomendas dos nossos indispensáveis produtozinhos continuassem a chegar tão impolutas como sempre às mãos de cada um. Seria bom que a partir de agora se passasse a olhar com outros olhos para o que acontece ao redor deste permeável primeiro mundo e se trabalhassem outros valores, novas interações e novos diálogos. Mas na verdade não estou certo de nada. Basta olhar para o que foi a Europa e o mundo há tão poucas décadas, o que tanto se lutou e se jurou ser para sempre e para nunca mais e tão pouco tempo volvido aqui estamos nós, a conjurar sem proveito, incapazes contra a desconfiança e com o ódio e a segregação a despontar sem pudor por todos os cantos. Enfim, ficam estes tópicos para quem sobre eles quiser refletir. As melhoras para o mundo. As melhoras para cada um de nós. Um sentido abraço!
A pandemia fez circular em algumas redes sociais a estória contada por Ira Byock (2012) de que um aluno teria perguntado à antropóloga Margaret Mead qual seria, para ela, o primeiro sinal de civilização em uma cultura, esperando que a resposta fosse algo como pedras de amolar, panelas de barro, anzóis. Mead teria respondido que seria um fêmur cicatrizado há 15.000 anos, pois nenhum outro animal sobreviveria a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar, evidenciando que alguém dedicou tempo e cuidado àquele ferido, abrigando-o, protegendo-o e alimentando-o até que ele se recuperasse.
Essa breve narrativa expõe de modo otimista a inserção do tempo e da ficção no corpo. Ou, inversamente, expõe como o tempo e a ficção, como irmãos gêmeos, são impostos pelo corpo adoecido. Está na etimologia da palavra: cuidar é cogitar, imaginar. Cuidar da perna quebrada de um outro exige o esforço ficcional de construir a imagem desse corpo após a cicatrização, após a cura, portanto, em um outro tempo-estado. Exige também empatia, o colocar-se em uma situação vivida por outra pessoa e, assim, de algum modo, perceber-se no outro e como um outro. Exige mais do que isso ainda: exige um querer estar ali com aquele que padece, mesmo que, em grande medida, em detrimento de si.
Há uma versão menos otimista da estória do aluno de Mead. Ela está em Ó, de Nuno Ramos (2013), onde o corpo adoecido aparece contaminado por um outro corpo, um corpo sem-corpo, um duplo espectral – a linguagem, que
só poderia nascer e adquirir eficácia numa situação em que todos, ou uma grande maioria, estivessem doentes ou muito enfraquecidos, tornando-se então uma moeda de troca, uma comunhão na doença, e aí sim, se entre eles houvesse alguém sadio que fizesse ouvidos moucos àqueles gritos, alguém desatento à estranha ladainha, então os doentes, em grande maioria, teriam reunido forças para matá-lo ou expulsá-lo. E uma vez curados já não saberiam competir sem este estranho mecanismo, que foram aperfeiçoando cada vez mais. (Ramos, 2013)
O corpo ali é duplamente atacado: pela doença e pela linguagem – esta, filha daquela. A doença se impõe ao corpo mostrando-o a si mesmo, em sua fatalidade tópica, insere-o no mesmo espaço dos demais animais: pode sofrer. A linguagem, por sua vez, essa “estranha ferramenta” “que me põe para fora do corpo” (Ramos, 2013), assumirá a ordem desse corpo descolado, instaurando a cisão entre ele e ela, isto é, entre corpo e linguagem, entre a carne e o que se diz sobre ela, entre real e ficção, entre ser e tempo.
Ela é a moeda de troca do adoecido, pois abre a possibilidade de dizer sobre a dor, expressá-la, fazê-la sair do âmbito daquele que a sente para atingir o do outro, que apenas a percebe. Nesse dizer, a linguagem – o Verbo, esse espectro desejoso de ser carne, esse duplo vingativo e ambicioso que reside no além lugar-nenhum –, por meio de sua própria incomunicabilidade, age perpetuando a perda do próprio corpo, pois é próprio dela “parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é seu verdadeiro fundamento, sua, digamos, astúcia – a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia” (Ramos, 2013).
Um corpo doente insere no ritmo cotidiano, com a densidade de uma rocha, uma realidade absurda construída pelo entrecruzamento do que em dias sãos caminha, intersubjetivamente, lado a lado: corpo e ficção. Por isso há um espaço reservado para o corpo doente, isto é, para que sua absurda realidade, sem lugar neste mundo para assim o ser, se camufle na ordem do dia. A pandemia é a dilatação dessa realidade-rocha ao ponto de imposição da inversão: o ritmo cotidiano é suspenso e aquilo que era habitual, comum, familiar, transforma-se, de repente e crescentemente, em absurdo.
Quem seria o antepassado primitivo capaz de colocar em risco seu próprio corpo e sobrevivência para não existir sem esse que padece – ou para só existir com esse outro que, no momento, padece? Se a morte do adoentado não significasse para quem dele decide cuidar uma insuficiência orgânica de sua própria realidade, como se entre cuidador e doente não existisse dualismo, separação, cisão, corte, quem se arriscaria? Que seres entre nossos primitivos estariam dispostos a tal sacrifício se ele não fosse, de algum modo, da ordem de um desejo imperativo?
Quem seria esse antepassado primitivo adoecido capaz de despertar em um outro corpo esse desejo de estar consigo, de colocar sua vida em prol de si? O que ele tem a oferecer a quem cuida além de seu próprio corpo fragilizado entregue ao cuidado?
Que afetos estão em circulação entre aquele que necessita de cuidados e aquele que necessita dele cuidar?
Se houvesse saída, a pandemia colocaria a linguagem em suspensão e forçaria a percepção do corpo abandonado. Não o corpo figurativizado, mas o corpo em sua topia implacável (Foucault, 2013) – pode sofrer, pode morrer. A doença nos devolve ao corpo, este corpo que continuará impondo-se de modo absoluto, aquém de quaisquer noções de tempo e linguagem.
Qual a potência disso que a linguagem tratou de combater? Se vivenciássemos a pandemia, poderíamos derreter nossas ilusões de autonomia e in-divíduo e estaria em suspensão, ou crise, a ficção motora de nossas vidas – o estado pleno de felicidade e imortalidade. Se vivenciássemos a pandemia (ela está lá fora, nos hospitais, aqui me chega pela TV, ofuscada por outras emergências de forças virais), estaríamos, no limite do que nos é possível, cara a cara com esse corpo real e com a fatalidade do isso ocultada por séculos pelos luminosos eufemismos criados pelo desejo de plenitude – alma, espírito, consciência –, desejo que é apenas a face polida do desejo de apagamento (senão de morte) dos corpos que cuidam. Mas como vivenciar uma pandemia sem expandi-la?
O primeiro sinal de civilização aparece quando a fragilidade de um corpo encontra um corpo cuidador e criador de ficções. Mas essas ficções, essas utopias “nascem do próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele” (Foucault, 2013). Porque elas enganam. A ficção mais sedutora, aquela que nos chama a viver num estado de felicidade e imortalidade infinito, a que nos promete o paraíso, a autonomia, a identidade, essa mesmíssima que cria deuses e heróis, ela camufla a vulnerabilidade, o desamparo, a doença e a precariedade intrínsecos ao estar aqui do humano.
A manutenção da promessa do amparo eterno e da felicidade absoluta exige que essas sedutoras ficções combatam feroz e insistentemente um inimigo que insiste em se perpetuar, em se reconstruir, em se fazer presente: o corpo que cuida. O corpo que cuida – o materno, em primeiro lugar, por ser também o inimigo primeiro, mas acompanhado por outras potências de nutrir1 não exclusivas das que parem – é o grande inimigo da metafísica, das ficções e dos deuses. Mas foi ele quem os pariu. Ele é o elo com o natural, com o aquém-ficção que nos assombra e inquieta com a certeza camuflada de que não há nada além-corpo. Não há paraíso. Há corpo. E todos os corpos humanos, todos eles, todos, por sua prematuração específica, exigiram, em algum momento, o cuidado do corpo que cuida. Todos!
Um outro modo de vida neste único mundo disponível só será possível quando enterrarmos as ficções que apagam os corpos que cuidam e camuflam a precariedade da vida e seu desamparo intrínseco.
A pandemia pode nos restituir à posição de ainda podermos ser afetados pela implacável topia do corpo que buscamos vorazmente apagar. Ela pode abrir uma pequena fresta nas nossas “mínimas janelas de conexão”, desobstruir um pouco o caminho abarrotado de artefatos e nos devolver a respiração e o ar fresco. Ela pode, não quer dizer que ela vai.
As três telas no meu entorno no momento em que escrevo este texto conflitam entre me mostrar a tragédia-rocha cada dia maior e mais perto e me dizer que tudo voltará ao normal, que eu posso contar com os bancos, pois juntos (todos eles insistem nessa palavra) vamos superar esse momento. Dizem também que eu posso reinventar o futuro, que as entregas continuam e agora com frete grátis, que os shows e as aulas serão em minha casa, que o espetáculo agora é o próprio viver, a live. Sem teatro, sem palco, sem picadeiro. A casa capitalizada.
Freud (2010) alertou-nos que o “programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de – abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização”. Por que não somos? O que é isso que nos impele a aceitar a instalação, em nós, desse drive, desse programa, desse sistema de ficções “pelas quais apagamos a triste topologia do corpo” para vivermos em “um corpo sem corpo” (Foucault, 2013)? A quê ou a quem evitamos tanto encarar? Que olhar de Medusa nos petrifica?
Há uma brecha, uma greta, um único portal que permanece aberto para o caminho de retorno ao corpo emudecido pela linguagem. Esse portal sempre esteve entre nós e é o pesadelo dos fascistas, dos românticos e dos iluministas, dos heróis e dos que pregam que se deve amar o Verbo sobre todas as coisas. Nós sempre o soubemos, posto que a linguagem sempre foi insuficiente perante ele.
É o amor que pode cortar ou desfazer nossos nós de servidão imaginária (Lacan, 1996). Amar é cuidar de si, de seu corpo real. É cuidar dos seus e de onde se vive. É o nascimento e a garantia da civilização. É espalhar-se.
E só se ama com o corpo – o resto é linguagem.
REFERÊNCIAS
BYOCK, Ira. The best care possible. Thorndike Press, 2012.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias e outros textos (1930-1936). Cia. das Letras, 2010. Obras Completas v. 18.
LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do Eu. In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
NJERI, Aza; RIBEIRO, Katiúscia. Mulherismo africana: práticas na diáspora brasileira. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 2, mai.-ago 2019.
RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2013.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª ed. revista. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.
2020
Não foi o que planejamos
Não era pra ser assim
O querer, o devir
Caos, incertezas
Crises, dilemas
Existência humana
A vida
O ato vida
Sociedade tecnológica
A conexão de vidas
Interação cibernética
A globalização
Mundo moderno
Mundo conectado
Mundo acelerado
De leste a oeste
De norte a sul
Do oriente ao Ocidente
O humano, nós humanos
Nunca foi tão rápido
Na história da humanidade
Conexões aéreas
Interação humana
Redes sociais
Corpo a corpo
Subestimamos o vírus?
Ele veio!
Ligeiro
Hospedeiro veloz
Subestimamos?
Onde falhamos?
Quais políticas públicas?
Políticas sociais?
Deveriam e não foram
Executadas!
Qual plano internacional?
A globalização falhou?
A mais rápida disseminação
Na história da humanidade!
Nosso mundo veloz
I
Exaurindo-me em
versos cinza-rubros
deito a cabeça no teu colo;
rósea noite de fantasmas e
sussurros na melodia de quarentena.
Timóteo/MG (?)
II
O assombro no pelo da pele
de roer o osso no dente de pedra,
somos monges enclausurados por telas e telhas.
Timóteo/MG (14/05/20)
III
Sibilava o vento na asa do pássaro e
tremia o tempo no entremeio de teus dedos –
o tempo, a ternura e a doçura da
canjica fervida
nas margens-de-fora-do-tempo.
Timóteo/MG (02/05/20)
IV
A palavra de ouro-puro dada como que por sorteio
envelhece em vento-frio e reclama,
dia-a-dia,
a virilidade que habita tal qual
galho seco,
tempo-a-tempo,
as máscaras no vazio
da nostalgia de si mesmo.
Timóteo/MG (06/06/20)
I
Não tenho dificuldade para lavar as mãos nesses dias de contágio. Nunca tive problema em lavar as mãos. Não me assusta sentir dissolver-se a película de gordura que envolve as palmas. Deixar ir embora partículas microscópicas da camada mais superficial da pele. Não me assusta o dorso vermelho, o padrão de linhas brancas que o excesso de sabão deixa nas mãos ressecadas. Não me assusta o isolamento. A contenção dos toques. Passar tantos dias largada no sofá. Não me assusta, tanto assim, a possibilidade de não ver pessoa alguma. A substituição irrevogável do diálogo pela dissonância interna das minhas próprias vozes. Não me assusta o silêncio. Mas tenho acordado no meio da noite sentindo os braços pesarem, como se o sangue estivesse cansado demais para circular. Tenho despertado, de repente, com uma lúcida percepção da morte. Não com a santidade da iluminação divina. Não com a sofisticada coerência da especulação filosófica. Apenas a clareza da materialidade da morte. Bem aqui, ao meu lado. A clareza da falência dos órgãos. Do retorno à terra. O apaziguar no sepultamento que oculta no solo a desordem do cadáver. Que dissimula o fervilhar de vida existente na decomposição: o convulsionar da carne em uma proliferação de bactérias, vermes, larvas, até restar o silêncio dos ossos. Até restar a impessoalidade do crânio. A máscara final, que já não porta os traços inconfundíveis de nosso rosto. Que já não grava na matéria as linhas vincadas na testa. Já não transmite a expressão de espanto. Face final, reconhecível apenas pelos dentes que, em um breve lampejo, remetem ainda ao sorriso na fotografia.
II
Tenho lembrado muito da solidão da infância, das tardes perdidas a girar em torno do meu próprio eixo. Tenho pensado na angústia com que me punha do lado de cá da janela, observando a correria dos meninos do lado de lá da rua, enquanto os caderninhos amontoavam-se na cabeceira da cama, contrapondo-se a avareza com que eu regulava as palavras ditas em voz alta. Tenho me espantado com a existência solitária das crianças. As tentativas falhas de elaborar a razão do medo, porque a razão exige acesso às abstrações de uma língua estranha. Língua dos homens e não da infância. Língua dos homens e não da mulher.
Tenho pensado na fala. E pensando ainda mais na escrita. Nos momentos em que a realidade escapa a toda tentativa teimosa de traduzi-la em palavras. Descolando-se a coisa dita, da coisa vivida.
II
Evito pensar no meu rosto em dias como esse. Evito pensar naquilo que, nele, confirma o mutável da vida. Aquilo que se revela em descobertas diárias: linhas intrusas na testa, manchas de sol largadas sobre a pele, olheiras deixadas pela noite insone. Evito pensar nas lições que o movimento guarda ao contrapor o meu reflexo à imagem gravada em meus olhos. Ainda que não haja figura alguma fixada na memória. Apenas a cópia disforme, decalcada naquela última vez que estive ali, na superfície do espelho. Ainda que a lembrança seja apenas um delírio dos sentidos. Um extrapolar da visão, que desfigura traços. Um extrapolar dos ouvidos, que recordam o não dito. Um extrapolar das narinas, que creem guardar na mucosa o registro de odores, quando se sabe que a memória do perfume se evoca apenas na presença do próprio perfume. Que a recordação do aroma do café só se dá diante do vapor que escapa do filtro.
Evito pensar no que há de excessivo no meu rosto. Nas expressões que sabem se fazer duras demais, cansadas demais. Nos olhos que sabem odiar mais do que qualquer parte do corpo. Odiar as notícias que chegam instante após instante sobre a luz da tela. Odiar a aglomeração na sala, conspirando não aos sussurros, mas em vozes histéricas. Sob o pretexto das rezas que sustentam o céu a uma distância segura. Sob o pretexto de adiarem o fim do mundo. Distendendo os nossos contornos até o limite do informe. Experimentando a flexibilidade do limite, até que o limite exploda e, mediante nossa monstruosa dissolução, já não reste mãos erguidas a proteger nossos olhos dos estilhaços.
Evito pensar naquilo que evidencia a dissidência de um rosto. Mas evito, sobretudo, aquilo que se faz excessivamente reconhecível. Os traços dominantes da genética, perpetuados em combinações mal planejadas, atando a minha boca a uma linhagem de antepassados e descendentes que um dia gritaram e um dia gritarão com os mesmos lábios que eu. Que cuspiram e cuspirão esse gosto amargo com a mesma repulsa que toma conta dos meus lábios.
Eu queria ser uma pedra. Parada aqui, ao sol, até que o sol se vá. Parada aqui, na geada da noite, até que a noite se vá. Acreditar-me rígida, estável, fixa. Embora saiba que a abrasão do vento altera o formato da pedra. Acreditar-me imune à dissolução, embora saiba que a chuva leva minúsculos sedimentos da rocha, até que no lugar só reste areia.
A Mascarada
Três anos depois tanto transformados
Nada voltou como antes ao normal
Trens travados de rostos mascarados
A vida de antes não era ideal
Esperanças, houve por um momento
Revivia sozinha a Natureza
Vida vinha improvável em pouco tempo
Em véu poluído surgiu beleza
Javalis e veados vadeando
Viram vindo famintos caçadores
Em canais cismamos cisnes singrando
Mas logo lhes espantaram motores
Tantos túmulos, tumbas tumultuam
As tristes pedras frias de agonias
Rostos rotos recobertos retratam
Registros sombrios daqueles dias
Três anos depois em nós confinados
Não em nossas casas, mas pelos panos
Em silêncio dançando mascarados
Todos sós sigamos sofrendo os danos
Bruno Anselmi Matangrano é escritor, pesquisador, editor e tradutor. Publicou os livros Contos para uma noite fria (2014) e Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo (2018), com Enéias Tavares. Bacharel, Mestre e Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisa as literaturas fantástica, simbolista e decadentista, escritas em português e francês.
Tiros de COVID, calibre 19
Estado de exceção na cara do povo pobre
O presidente disse que somos imunes. Que sorte!
Balas perdidas para crianças negras
Com sabor amargo em vermelho sangue
Dedos coloniais que chamam o elevador da morte
Para crianças negras da NECROSOCIEDADE!
Crianças sem sorte. Piedade!
Responsabilidade? Não! Sem responsabilidades
E mesmo em quarentena, o povo negro é assassinado, dentro de casa,
Pelo Necrosistema
O peso de um joelho do Estado asfixiando a nossa voz no país hegemônico
É o peso do calibre que mata João em casa, nas zonas periferizadas
Icônico!
As balas, aqui, têm GPS de cor
Amor?! Não. Não nos dão tempo de pensar no amor
Apenas no peso das nossas estatísticas
Sejam elas por morte pandêmica
Num SUS adoecido
Encarceramento em massa
Ou morte sistêmica: 70%
Periferia ou centro?
Não nos dão direito de escolher
Apenas escolhem quem deve morrer
Senta enquanto pode, mas não acende o teu cigarro
A Necropolítica, amigo, é o prenúncio do estrago
De um Estado Narcisista
Desse pacto de branquitude RACISTA.
Rozemberg Guimarães Silva é Músico, Agitador Cultural e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER), pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)