A tragédia em curso nos bairros de Maceió afetou a vida dos moradores da cidade alagoana trazendo incertezas quanto ao futuro.
Por Adriana Capretz Manhas
07/12/2021 - Atualizado em 07/12/2021
Entendendo o caso — Foto: Davysson Mendes/Secom Maceió
Maceió, a capital do estado de Alagoas, situada no Nordeste do Brasil, está literalmente afundando. Uma parte grande da área central do município que corresponde a cinco bairros (um deles classificado como Zona Especial de Preservação Rígida pelo Plano Diretor de 2005), foi afetada por um fenômeno que em geologia é chamado de “subsidência”, que consiste no afundamento abrupto da superfície da terra, com pouco ou nenhum movimento horizontal.
É a maior tragédia em curso causada pela mineração no mundo, decorrente da exploração de sal-gema – um sal retirado de rochas que se forma no subsolo, a mil metros de profundidade da superfície – e serve de matéria-prima para a fabricação de plásticos, PVC e soda cáustica.
A empresa Braskem explora 35 minas de sal-gema na região e existe uma dimensão segura para cada uma dessas minas, assim como a distância mínima entre elas, mas as normas de segurança vem sendo descumpridas e várias dessas minas colapsaram, desabando sobre si mesmas, causando um tremor de terra de 2,5 na escala Richter que foi sentido na cidade toda e arredores no dia 3 de março de 2018.
Esse tremor causou fissuras de até um metro de largura em várias ruas e em casas de quatro bairros da capital e, em princípio, o evento foi atribuído a uma falha geológica. Entretanto, logo em seguida, foram aparecendo relatos e comprovações da existência de rachaduras em casas muito antes dessa data, até mesmo décadas. Quando geólogos locais levantaram a possibilidade de o tremor ter sido causado pela extração de sal-gema, a empresa Braskem passou o ano todo se esquivando e atribuindo o ocorrido a uma falha geológica – que de fato há – na região.
Após sondagens feitas pelo Serviço Geológico Brasileiro e uma empresa especializada da Alemanha (a serviço da Braskem), a conclusão foi mais avassaladora do que se imaginava: as 35 minas de sal-gema que a petroquímica Braskem explora há 45 anos – algumas no fundo da Laguna Mundaú, entraram em colapso e o solo de cinco bairros em plena área central da capital será “engolido” para essas cavernas subterrâneas num fenômeno chamado “dolinamento”. Os “sinkholes” (ou buracos) que se formaram no subsolo chegam ao tamanho do estádio do Maracanã.
Entendendo o caso — Foto: Marco Antônio/Secom Maceió
Devido ao risco iminente, a população dos bairros localizados à beira da Laguna Mundaú teve que ser emergencialmente removida, mas logo que os estudos foram sendo feitos, ao longo de 2018 e 2019, concluiu-se que quatro bairros deveriam ser imediatamente evacuados: Mutange, Bom Parto e Bebedouro (este último, uma Zona Especial de Preservação Rígida), que são os três bairros à beira da Laguna Mundaú, com edificações que remontam os primórdios da urbanização de Maceió, quando o acesso era feito exclusivamente por barcos, além do bairro do Pinheiro.
Mais recentemente foi incluída uma parte do bairro do Farol, localizado na parta alta da cidade e, assim como o bairro Pinheiro, possui vista para a laguna e abriga casas e apartamentos de médio e alto padrão, tendo como limite o principal corredor viário no sentido leste-oeste que é a Avenida Fernandes Lima. Além desses cinco bairros, o avanço do fenômeno ameaça outras vizinhanças que está fora dos mapas e tem ainda os bairros que ficaram isolados socialmente, sem comércio e serviços públicos (concentrados nos bairros vizinhos que desapareceram), sem segurança e com a mobilidade bastante comprometida devido ao fechamento das principais vias de acesso.
Portanto, para se evitar uma tragédia, quase 15 mil unidades habitacionais entre casas e apartamentos - alguns recém-inaugurados – que abrigam cerca de 60 mil pessoas foram evacuados. O que não se fala, entretanto, é que a tragédia não foi evitada, ela está acontecendo e afeta muito mais do que as 60 mil pessoas que deixaram suas casas, mas a cidade toda, que já está com o trânsito bastante comprometido.
Entendendo o caso — Foto: Defesa Civil de Maceió
A prefeitura de Maceió trava com a empresa uma disputa bilionária para reconstruir a infraestrutura da cidade afetada pelo afundamento e o Ministério Público Federal criou um Conselho para Gestão dos Danos dos Bens Extrapatrimoniais formado por moradores e representantes da sociedade para decidirem sobre a aplicação de um recurso que será destinado à reconstrução do patrimônio intangível.
Entretanto, as negociações não têm sido de forma transparente e os moradores têm feito atos de protesto, lutando até o limite de suas forças para que sejam indenizados de maneira justa. A falta de comunicação eficaz das ações em defesa dos moradores por parte do poder público tem deixado a população indignada e esgotada, sobretudo porque tudo vem ocorrendo concomitantemente ao isolamento social causado pela pandemia do Coronavírus.
Tragédia anunciada
Entendendo o caso — Foto: Reprodução/historiadealagoas.com.br
Na década de 1960, foram encontradas grandes quantidades de sal-gema no subsolo de Maceió e em 1976 a empresa Salgema se instalou na cidade para explorar este mineral. A Salgema foi comprada pela Braskem em 2002, quando a petroquímica foi criada em uma sociedade entre a construtora Odebrecht e a Petrobrás.
Chama a atenção a forma como a Salgema chegou à Maceió e instalou sua indústria, com anuência das autoridades locais: à beira mar, desvalorizando imediatamente toda a região sul da orla marítima da capital. Cinco anos depois de sua chegada, com ambição de duplicar a fábrica, a antiga indústria Salgema aniquilaria o bairro histórico habitado por pescadores chamado Pontal da Barra, tradicional pela produção da renda “filé”, assim como pela pesca do sururu, molusco tradicional utilizado na culinária, ambos registrados como patrimônio imaterial de Alagoas.
Com intensa mobilização popular, da UFAL e da mídia local, o bairro teve seu tombamento e a duplicação não aconteceu. Mesmo assim, a fábrica à beira mar sempre foi uma verdadeira “bomba-relógio” para a cidade e para populações inteiras dos bairros vizinhos devido à alta periculosidade e risco vazamento de cloro pelo ar. A mobilização popular da década de 1980 obrigou a Salgema a criar um cinturão verde no entorno da fábrica, a fim de proteger a população em caso de vazamento de cloro. Entretanto, nunca se deu a devida atenção aos outros bairros que estariam em risco, não pelo vazamento de cloro, mas pela possibilidade de afundamento – hipótese levantada há mais de uma década pelo engenheiro civil, geotécnico e geólogo Abel Galindo Marques, professor aposentado da UFAL. Na época, o professor foi chamado de “louco” e seus estudos foram ignorados. Hoje, a área próxima à laguna já está dois metros abaixo do nível da laguna.
O que mais chama a atenção em todo o processo é o poder de decisão sobre a vida das pessoas e da cidade que a Braskem – uma das maiores mineradoras do mundo – sempre exerceu sobre o estado e mais agora, diante da tragédia em curso que a empresa divulga como “evitada”, visto que as pessoas foram retiradas do local de risco, desconsiderando que a tragédia está acontecendo na vida de cada um que perdeu seu direito à moradia e à memória de uma hora para outra. A exploração cessou somente em 2019, após a confirmação de sua relação com o tremor de terra.
Sabe-se que uma dezena de pessoas já se suicidou e tantas outras adoecem a cada dia pelas mais diversas doenças causadas pelo impacto que tiveram em suas vidas e cujos números não vem sendo divulgados.
O impacto emocional causado pela perda das referências históricas e dos laços de afetividade com o lugar não é possível ser mensurado e o desrespeito não poupa nem os mortos. Os sepultamentos e visitas ao Cemitério Santo Antônio, um dos mais antigos da cidade, foram proibidos.
No final de 2021, passados três anos do início das remoções, sem ter recebido as indenizações, com os contratos de aluguel vencendo e sem condições para renovação, tem se verificado a volta de muitas famílias para suas antigas residências, as quais encontram-se em ruínas e lacradas com bloco de cimento pela empresa.
O aluguel social pago pela Braskem é de um mil reais e para muitas famílias não é suficiente para o aluguel de casas no mesmo padrão daquelas que habitavam antes (principalmente aquelas do bairro do Pinheiro, que tem um valor de mercado maior do que os demais bairros), considerando ainda a disparada no mercado imobiliário decorrente do evento. Assim, famílias inteiras têm retornado para as áreas de risco que se assemelham a bairros fantasmas, totalmente desamparadas, sem segurança e infraestrutura urbana.
Entendendo o caso — Foto: Raíssa França/BBC News Brasil
A Braskem vem fazendo o preenchimento das minas com areia, mas não se tem a certeza sobre a estabilização do solo, que pode levar cerca de vinte anos, segundo especialistas, com subsidência dos bairros lagunares.
Ministério Público Estadual e Federal, Prefeitura, Defensoria Pública da União e Governo do Estado estão cobrando medidas para a mitigação dos danos materiais aos moradores e à cidade. Ao final de 2020 foi firmado entre a Braskem e o Ministério Público um Acordo Socioambiental na ordem de R$1,2 bilhão, mas que nos levantamentos, não corresponde ao prejuízo que a cidade terá nos próximos anos.
A tragédia não foi evitada, ela está acontecendo e precisa ser mais divulgada, publicizada, para que mais pessoas se envolvam e cobrem da mineradora medidas para mitigação dos danos materiais, mas também afetivos e psicológicos, que são de inúmeras ordens.
A forma como esta tragédia aconteceu e como o poder público está lidando com a empresa e com seus cidadãos, assim como a importância que vem sendo dada ao patrimônio cultural da região, é apenas uma amostra, em menor escala, de como o Brasil sempre lidou com esta constante: empresas de fora esgotam nossas riquezas naturais, enriquecerem às custas do empobrecimento dos moradores de um lugar, e saem impunes e mais poderosas ainda.
Durante a pandemia, enquanto 60 mil pessoas da capital de alagoana têm seus projetos de vida dilacerados e todos os alagoanos arcam com os prejuízos que já vem afetando a mobilidade, o comércio e a imagem deste belo estado que é um dos principais destinos turísticos do país, a empresa Braskem fechou suas ações em alta e muito lucrou com a produção de matéria-prima para a fabricação de seringas.