Enamorados
Fotografia: sublimação sobre tecido
120x80 cm (cada imagem)
2022
(Re)vestido de noiva
Fotografia: cianotipia sobre papel
Dimensões variáveis
2022
Varal de afetos familiares
Fotografia: cianotipia sobre tecido
60x50cm (cada imagem)
2022
O Processo
Mirar: Memória e sentimento
Por Dani Remião
Mirar. Apontar para o alvo. Ação do fotógrafo em busca da imagem. Fitar com atenção. Ação prolongada do observador que contempla com encantamento.
Neste trabalho, coloco-me, primeiramente, em uma posição de espectadora, da mesma forma que Barthes ao contar sua experiência fotográfica enquanto observador, como se diante de um diário íntimo.
Como espectador, eu só me interessava pela Fotografia por 'sentimento'; eu queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto, noto, olho e penso (Barthes, 2012: 28).
Assim, deixo minha câmera de lado e me aproprio de imagens feitas por outros olhares. As recrio demoradamente com as mãos, como quem acaricia afetos. O processo de criação tem como materialidade o objeto de investigação no doutoramento na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, as caixas de fotografia de família, entendidas como as coleções de fotografia que retratam memórias familiares.
Há pelo menos um século as câmeras fotográficas vêm instituindo uma íntima relação com a vida em família. Pierre Bourdieu (1965) observa que a fotografia, ao concentrar-se como forma de registro dos momentos familiares, tem função de solenizar e eternizar os grandes momentos da vida em família, reforçar a integração do grupo familiar reafirmando o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade. E compara o ato do retratista como o de um historiógrafo.
Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo de sua infância e preparar-lhes, como um legado, a imagem dos que foram [...] O álbum de família exprime a verdade da recordação social (Bourdieu, 1965: 53).
Dessa forma, cada uma das imagens de nossa coleção familiar representa um momento, um instante, uma fração de segundo eternizada, imortalizada e, contraditoriamente, esquecida. Ao organizar estas imagens permitindo o resgate de histórias familiares, atividade realizada por mulheres na maioria dos lares, a curadora do nosso álbum de família nos oportuniza a aproximação de nós mesmos e de nossos afetos, levando-nos ao encontro da nossa própria história e da nossa verdade. Esse efeito, segundo Barthes atesta que a Fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição.
A foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada: a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou aquela que foi fotografado (Barthes, 2012: 75).
Neste sentido, Silva (1997) reflete sobre o sagrado nas imagens fotográficas, dizendo que o álbum de família pode promover o sentido mais profundo da fotografia. Ver o álbum com as imagens de pessoas que já não estão mais entre nós, dá ao arquivo da família seu sentido mais peculiar e eloqüente. Ele nos transporta para outro tempo, passado, para outro espaço que recordamos, e para outra dimensão imaginária, a sobrenatural, para então nos mostrar o mais sagrado da vida: somos seres mortais e é por isso que recordamos, fazendo com que técnicas e artes de fazer imagens, como a fotografia, trabalhem a serviço de nossa própria natureza imaginária.
Segundo Lima (2016), a partir da década de 1970, as fotografias de família deixaram de ser apenas um meio de registrar e guardar lembranças dos familiares, passando a ser também material para a arte. Da caixa de sapatos para o ateliê do artista, do álbum para a galeria, da intimidade do seio da família para o circuito institucionalizado da arte.
Procurando pensar sobre as potencialidades poéticas das coleções de fotografias de família, meu interesse por essas imagens como materialidade artística surge da minha experiência e das tensões entre passado e presente, ausência e presença, esquecimento e memória, documento e a arte que essas imagens geram. O mote nesta exposição, o casamento, é visto como o enlace que visa a construção de uma família. E a fotografia, presente em todos os momentos. Com o desejo de fazer da fotografia um exercício de experimentações, o processo de criação que se desenvolve transmuta as imagens, originalmente feitas em processo analógico e abrigadas nas caixas de fotografias, ressignificando os registros fotográficos familiares. A busca pela materialidade da superfície fotográfica, em uma solicitação ao toque, à carícia, ao olhar háptico se mostra próprio de quem lida com memórias e afetos familiares.
Na exposição, o visitante percorre três momentos: o namoro, a cerimônia do matrimônio e a nova família construída. Me aproprio de fotografias pessoais, e a partir do encontro dos meus pais, Inês e Gilberto, trago o amor de uma família expresso através de imagens.
1. O namoro: A exposição inicia com o trabalho Enamorados, que traz a fotografia presenteada como prova de amor. A obra é composta por duas fotografias, uma da minha mãe e uma do meu pai, e uma imagem de Santo Antônio, que se entrelaçam em sobreposição. Encontrei estas duas fotografias no início deste ano de 2022 nos pertences da minha mãe, dentro de um pequeno envelope, voltadas uma para a outra, junto a elas, um santinho. São meus pais jovens, ainda solteiros. Na fotografia do meu pai, uma dedicatória à minha mãe. As fotografias foram escaneadas e passaram por um processo de restauração digital. E então, impressas na coloração em que se encontram, sépia. A imagem de Santo António também é impressa em tons de marrom, cor dos trajes dos franciscanos. Expressam o início do enlace e a fé em Santo Antônio, conhecido como casamenteiro, que se tomou o santo mais próximo da minha família, ao qual meus pais sempre foram devotos.
2. A cerimônia: Em (Re)vestido de noiva, uma representação de corpo feminino envolto por longo véu de 7 metros de tule é revestido por várias fotografias de casamento. As imagens foram impressas utilizando a Cianotipia, processo artesanal do século XIX que produz imagens em tons de azul. O casamento entendido como matrimônio, do latim matrimonium, associado aos vocábulos mater, que se refere à mãe e, monium, em alusão a um ato formal ou ritual. O azul simbolizando Maria, representativo das noivas que se preparam para a maternidade. Maria, o primeiro nome da minha mãe. Uma fotografia do casamento dos meus pais, ocorrido em 16 de dezembro de 1967 no Brasil, se une a imagens de noivas de diferentes épocas encontradas na coleção de fotografia do Museu Nacional do Traje. Ao interligar a exposição artística com o acervo do museu, busca-se despertar o observador para a importância da preservação dos acervos familiares.
3. A família: Este último trabalho, Varal de afetos familiares, faz uma analogia ao varal de roupa, sempre presente em uma casa habitada por uma família, e o varal fotográfico, ambiente do processo de criação destas imagens, que é trazido para a exposição. As fotografias dos três filhos do casal quando crianças, foram impressas em Cianotipia sobre tecido e expostas em um varal. As fotografias originais foram feitas nas décadas de 60, 70 e 80, no primeiro ano de cada um dos filhos, João Henrique, Daniela e José Antônio, e amorosamente guardadas pela mãe. Complementando a obra, o pensamento inscrito em uma placa que decora até hoje a parede da sala da estar da casa da família.
Referências
Barthes, Roland (2012) “A câmera clara: nota sobre a fotografia”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Bourdieu, Pierre (1965) “Um Art moyen: essai sur les usager sociaux de la photographie”. Paris, Minuit, 1965.
Lima, Daniel Francisco de (2016). “Fotografia de família: entre objeto de recordação e material para arte contemporânea”. Frutal: Prospectiva.
Silva, Armando (1997) Lo sagrado de la fotografía: en el álbum familiar. In: Bulhões, M. A.; Kern, M. L. B. (org.) “As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina”. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
Dani Remião é fotógrafa. Doutoranda na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), mestre em Artes Visuais (2018) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bacharel em Informática (1994) e mestre em Ciência da Computação (1999) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). As suas principais linhas de investigação são Processos Fotográficos Históricos e Alternativos, As Mulheres na Fotografia e Álbuns de família. Membro do Conselho Científico da Atena Editora. Membro do Comitê de Poéticas Artísticas da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas do Brasil (ANPAP). Membro do CIEBA – Centro de Estudos e de Investigação em Belas-Artes e do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA. Bolsista da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
E-mail: d.macedo@edu.ulisboa.pt
Website: www.daniremiao.com