Luís de Camões, Os Lusíadas e Rimas
⮚ Figuras humanas
Ser humano = Bicho da terra
Os Lusíadas, Canto I, 106
106
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
Lírica/Rimas
Canção IX
[..]
Não tinha parte donde se deitasse,
nem esperança algũa onde a cabeça
um pouco reclinasse, por descanso.
Todo lhe é dor e causa que padeça,
mas que pereça não, por que passasse
o que quis o Destino nunca manso.
Oh! que este irado mar, gritando, amanso!
Estes ventos da voz importunados,
parece que se enfreiam!
Somente o Céu severo,
as Estrelas e o Fado sempre fero
com meu perpétuo dano se recreiam,
mostrando-se potentes e indignados
contra um corpo terreno,
bicho da terra vil e tão pequeno.
[…]
Figura feminina – Leonor e Bárbara
Mote
Descalça vai pera a fonte
Leonor, pela verdura;
vai fermosa e não segura.
Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
saínho de chamelote;
traz a vasquinha de cote,
mais branca que a neve pura;
vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro o trançado,
fita de cor de encarnado…
Tão linda que o mundo espanta!
Chove nela graça tanta
Que dá graça à fermosura;
vai fermosa e não segura.
Aquela cativa
Endechas a ũa cativa com quem andava de amores
na Índia, chamada Bárbora.
Aquela cativa
que me tem cativo,
porque nela vivo,
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que pera meus olhos
fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
U~a graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
Mas bárbora não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela, enfim, descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo.
E pois nela vivo,
é força que viva.
Soneto - figura feminina
De quantas graças tinha, a Natureza
fez um belo e riquíssimo tesouro;
e com rubins e rosas, neve e ouro,
formou sublime e angélica beleza.
Pôs na boca os rubins, e na pureza
do belo rosto as rosas, por quem mouro;
no cabelo o valor do metal louro;
no peito a neve em que a alma tenho acesa.
Mas nos olhos mostrou quanto podia,
e fez deles um sol, onde se apura
a luz mais clara que a do claro dia.
Enfim, Senhora, em vossa compostura
ela a apurar chegou quanto sabia
de ouro, rosas, rubins, neve e luz pura.