PENAS DE MORTE                                                                                 

 

 

 

 


pessoas 

 

 

 

 

 

TRAKL (1)

 

 

Olhas-me

do abismo

de água gelada

dos teus

vinte anos

vinte mil anos

de silêncios

e ruínas.

 

Olhas-me

meu anjo

sem norte

à espera

da morte

meu intruso

a suicidar

agora mesmo

na cidade temida

escura apodrecida.

 

Olhas-me

sem dar

esperança

de fuga

ao menino azul

que em ti morrerá 

no fim desta noite

do mundo.

 

Desta noite

sem deuses

ainda vivos

e capazes

de amar.

  

 



TRAKL (2)

 

 

Procuras o meu olhar

uma vez e outra vez. 

Sei que me vais levar

e sem apelo. De vez.

 

 

Ainda não, agora.

Mas talvez um dia

um dia quem diria 

eu vá sem demora.

 

 

Talvez sim talvez.

Mas, hoje, espera. 

Está frio. Não era

a hora exacta, vês?

 

Um dia dir-te-ei:

cumpre a tua lei.

 

Então sim,

pega-me

e leva-me 

contigo,

Melancolia.

 

 

 

 

PANERO, LOWRY, FITZGERALD 

 

 

Passava eu 

junto do

eleva-a-dor

de Santa Justa.

 

Chegou o poeta

Juan Luis Panero

e disse: 

Lowry. Cuernavaca.

Álcool.

 

Tudo isto 

mesmo na base

do eleva-a-dor

de Santa Justa.

 

Garantia Panero

que Zelda dançava

por Scott:

«Apanha uma estrela

para mim.»

 

(Que magia 

viver uma vertigem

de 40 anos tão

apavorados

e regressar sem dor

à secreta caverna

dos mitos maiores).

 

Depois

chegou a vez

de descer

ao metropolitano.

Sem nunca enterrar

as sublimes oh sim sublimes

bebedeiras escatológicas

de Malcolm e Fitzgerald.




 

ANTONIO COLINAS

 

 

Junto ao Restaurante

Primeiro de Maio 

esquina da Rua da Atalaia

com a das Salgadeiras

e sobre o tejadilho

encapotado 

de um carro

deveras estacionado

leio e releio  

Antonio Colinas.

 

 

Colinas

de amor, filhos e mortes.

Túmulos negros.

 

 

Depois 

a  luminosa

Primavera

e uma voz

doutra era

soletra, apaziguada, diurna 

et-caetera:

ó pombas, ó meninos, ó avós

que mansidão, que azul,

que harmonia, que luz

que órgão tocado por Bach

que música, que melodia

que xaropada de Brandemburgo

que cantata do lar

que hino que raio de colinas

que castelos de cartas foste inventar

com franqueza, Antonio,

á, bê, cê, dê, é, éfe, gê, agá, i , jóta

ai não diz a góta com a perdigóta!

 

 

 


ALFONSO COSTAFREDA

 

 

                                    Tu es pressé d’écrire

                                    Comme si tu étais en retard sur la vie.

                                                                             René Char

 

 

 

No dia em que fez 

mil anos de medo

disse, basto solene:

sabendo o que sei

sobre a esperança

de viver mais dias

considero que vou não existir como o senhor meu pai

e que chegou a hora de me salvar apenas pela palavra.

 

 

A plateia entediada ouviu.

E, como sempre cruel, riu.

 

 

Então o enorme alquimista Alfonso Costafreda

ficou ainda mais distante do inferno de sua filha

o das crianças assadas  por um deus de pacotilha.

 

 

 

Dormiu finalmente só com seus fantasmas.

Finou-se em paz e não enviou mais notícias. 

 

 

 

 

BERGMAN

 

 

Eram

cinzentos

como

os de um lobo

indefeso

os olhos

do cordeiro

aterrorizado?

 

Verdes

verdes

os seus cabelos?

 

Que importa

mestre Ingmar

sem dúvida

chorarás

para sempre

aquele rosto

recém-saído

de um ventre

de mulher

 

aquele rosto

de menino

condenado

abandonado

brutalizado

injustiçado

profanado

imolado

pelas melhores

intenções

sempre cristãs. 

 

O teu rosto.

 

 



DREYER

 

 

A urna

negra

fechada 

sobre 

o mármore

branco.

 

O cadáver

chegado

no navio

do passado.

 

A megera

estendendo

a mão.

 

Dinheiro.

 

A urna 

negra

aberta 

sobre 

o mármore

branco.

 

Lençol.

 

Branca negra branca

a tua sala, Dreyer.

 

Frio.

 

Dedos de pai tocando leves

os olhos já ausentes do filho.

 

Silêncio. Não há Verbo?

 

 

 


UNAMUNO

 

 

Gritavam eles a plenos pulmões

(eram muitos e muitos milhões)

pelas nuvens, em manifestação:

Ressurreição, já, Ressurreição!

 

 

Então foi aquele crime perfeito:

o carrasco da Ponte dos Suspiros

disparou sabe-se lá quantos tiros

rumo aos Céus a torto e a direito.

 

 

Caiu logo um baleado

o judeu já crucificado

que ao escapar da cruz

deixara de ser só Jesus.

 

 

Zangou-se e suspirou no chão:

Basta. Agora a Ressurreição.

Senão é mentira eu não existo 

era Jesus mas não serei Cristo.

 

 

Foi depois que um tal Unamuno

se mostrou o seu mais fiel aluno

gritou até ficar rouco até se fartar

mato-o se Ele não me ressuscitar! 

 

 

 

 

PROJECTO DE NOTÍCIA

 

 

Obituário com poucas conversas:

nasceu sofreu q.b. e bateu a bota. 

Cresceu sessenta e tal sem batota

nem se passear por tapetes persas.

 

Escreveu umas linhas sapienciais

mas nos últimos dias queria mais.

Achava que tinha verdades a dizer

depressa agora já antes de morrer.

 

Encontrado foi somente um papel

folha A(i) quatro para computador

em que se lia chega basta desta dor

deste raiodemundo idiota deste fel.

 

 

P.S. - Por expressa vontade do proprietário, a sua alma não será autopsiada.

 

 

 

 

 


 

rupturas 

 

 

 

 

 

 

GÉLIDOS AMANTES

 

 

 

Meia de tinto

do Douro

e uma de Luso

para dois.

 

Ela vai-te fugir

sabe-se lá

por alma de quem. 

 

Depois?

Só mesmo o Além.

 

(Grita, grita

pela tua mãe). 

 

 

 

 

O AFOGADO DE SUA MÃE 

 

 

Era uma rua longa e muito inclinada.

Pela tua mão via tudo e não via nada.

 

 

Contemplava o teu rosto e dizia é belo

só ele me liga ao mundo é o único elo.

 

 

Perto não havia senão aquele senhor

que não entendia meu grande temor.

 

 

Depois saíste à procura de porto seguro

esqueceste teu filho num beco obscuro.

 

 

Não chorei. Não seria capaz de chorar.

Só vi a minha pequena alma a emigrar.

 

 

Ela pôs-se a nadar como quem nada tem

e morreu afogada em plena viagem, mãe.




 

OS ASSASSINOS

 

 

Disseram-se:

«O nosso

amor

morreu.

Matámo-lo!»

 

 

Certo.

Era assim

de facto

nada mais 

exacto.

 

 

Só depois

muito abraçados

choraram

em uníssono

o cadáver

inadiado.

Verdadeiramente

actualizado. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

introdução à teologia

 

 

 

 

 

 

 

ALFABETO

 

 

 

Nas estantes por assuntos 

impera a ordem alfabética.

 

Após o esoterismo com «e»

gastronomia com o seu «g».

 

 

Será que comeremos deuses? 

 

 

 

 

CREDO

 

 

Um corpo estragado

rachado  deteriorado

um velho espatifado

 

 

e no meio essa de Deus

do Deus mais que Zeus

esperança só para ateus. 

 

 

 

 

CÍRCULO QUADRADO

 

 

O responsável por todo o sofrimento está perto. Rezam-lhe com respeito, amam-no, adoram-no em templos onde o Supremo Mal passa por Sumo Bem e à infinita crueldade se chama Deus Pai. Deus Pai, coisa nunca vista, como Círculo Quadrado. 

 

 

 

 

 

 

 

 o filho 

 

 

 

MONÓLOGO

 

 

Caminhas pela minha mão. Quantas vezes mais?

 

 

 


CONSELHO

 

 

Não me ames muito, nunca: sei de um filho trucidado pelo último silêncio do pai. 

 

 

 

 

PERGUNTAS

 

 

A que deus rezei eu para que não morresses?

A que deus rezaria eu se me tivesses morrido?

 







job

 

 

 

 

Catorze mil ovelhas

seis mil camelos

mil juntas de bois 

mil jumentas

sete filhos e três filhas.

Tudo isto  

em paga da tua

infinita dor.

 

Lembras-te, Job

dos teus outros 

sete filhos

mortos

e das tuas outras

três filhas

mortas?

 

Lembras-te, Job 

daquele que era o primeiro

a abraçar-te ao raiar do dia

das suas súbitas carícias 

do seu rosto de ternura

das suas tão sedosas mãos ? 

 

Um a um, Job

lembras-te oh se te lembras 

de como os amavas.

 

Como poderias

esquecer os teus

dez filhos

por Ele perdidos 

num jogo de dados

e logo assassinados?

Como poderias

perdoar ao Senhor

teu Deus?

 

   






o crucificado

 

 

Onde estás agora?

 

Algures decepado

algures decapitado

algures humilhado

por um triste fado?

 

Onde estás agora?

 

Frio, doido de frio

deitado à beira-rio

olhos de quem viu

a vida por um fio?

 

Onde estás agora?

 

No ventre de tua mãe

temendo o que aí vem

qual parido em Belém

por decisão do Além?

 

Onde estás agora?

 

Sem dúvida em qualquer lado

acabarás morto e crucificado.




 

 

 

 

a solução

 

 

Absolutamente nada, eu?

 

Por que diabo assim não?

Seria uma óptima solução

todo o mundo só de Deus

nada de místicos e  ateus.

 

 

Um mundo liberto do Grande Espectador

no Coliseu das esperanças e da última dor.

 

Um mundo todo despovoado de palhaços 

que olham para Cima esticando os braços.

 

Um mundo em que dar alguém à luz do dia

nem pesadelo fosse, nem ideia, nem fantasia.

 

Absolutamente nada, eu?

 

Por que diabo assim não?

Seria uma óptima solução

a Terra sem vida só morte

Deus entregue à sua sorte.

 

E eu simples projecto nunca parido

absolutamente nada, nem concebido.

 

A-b-so-lu-ta-men-te-na-da.