«É necessário deixar a vida como Ulisses deixou Nausicaa, mais com reconhecimento do que com amor»
Nietzsche, «Para Além do Bem e do Mal», IV, 96
A TRAVESSIA
Chegou a hora
da partida
a viagem é
sem volta
só de ida
Chegou a hora
da partida
a melancolia
é sem choro
só dorida
Chegou a hora
da partida
o aceno é
sem amargura
só despedida
«Como Ulisses
deixou Nausicaa»
Promessa de Alzheimer 1
O primeiro nome que esquecerás
será o do teu último
professor de matemática
Ou até isso quem sabe
o da única senhora de inglês
Mas guardarás sempre
na tua memória
o de Margarida Jorge
a menina de quatro anos
olhos azuis
e tranças louras
que amaste na tua infância
perdidamente
sem que ela de nada soubesse
até ao fim dos teus tempos
Promessa de Alzheimer 2
Ler pela segunda vez
como se fosse
a primeira?
Talvez
Viver pela segunda vez
como se fosse
a primeira?
Talvez
Mas morrer?
Isso
que seja
de vez
Promessa de Alzheimer 3
Vai-se a memória
fica o corpo
O corpo
não espera
a memória
A memória
não espera
o corpo
«Consummatum est»
gemeu Jesus
orando
por todos nós
Nevermore 1
Também tu
terás de tomar
o último
autocarro
Mas não transportarás
as cinzas
de ninguém
Serás
então
apenas
as tuas cinzas
Nevermore 2
À beira do Tamisa
à beira do Sena
à beira do Tejo
Never
Nevermore
Nevermore 3
Releu a primeira
Epístola aos Coríntios
Quando fechou
o Livro
terá comentado
para si
Never
Nevermore
Nevermore 4
Que descoberta
ó mestre Dante!
Cristo
não pode rimar
senão
com Cristo
Mas de facto rima
com isto
com quisto
com uma vez visto
e nunca mais visto
Never. Never. Nevermore
Avenida Almirante Reis
Esta
já não é
a minha cidade
Nem
o cemitério
dos
meus fantasmas
se salvou
do tsunami
de mau senso
e mau gosto
de meu sem senso
e meu desgosto
La Vieillesse
Non ce n’est pas
drôle
d’être un vieux
mon vieux
Ce n’est pas drôle
du tout
du tout
On s’en va
pour toujours
et c’est tout
c’est tout
Como se fosses
Despede-te
agora
da vida
Da vida
que tanto tanto
te doou
da vida
que tanto tanto
te roubou
Despede-te
sem lágrimas
Como se fosses
Cavafy
o único
deus grego
Pascoaes
Ser velho
é cobardia?
Pois sim
claro que sim
velho meu
meu velho
Pascoaes
Por isso
morreste tão tarde
e estamos todos
a morrer tão tarde
em modo cantante
como em Amarante
Sonho adiado
Partir
Mas partir
para onde?
Talvez
para dentro
bem dentro
Bem dentro de um país
bem dentro de uma casa
bem dentro
do que resta
de mim
E
nunca
nunca
chegar
Adieu
Adeus meus livros queridos
sempre lidos
adeus meus livros queridos
nunca lidos
Foi curta
a vida
curta também
a hora da partida
Enfim
não deu para mais
Adeus
até nunca mais
Salutation matinale
Bonjour
mes amis
morts
Je suis
enfin
avec vous
tous
Bonjour
pour toujours
Pour toujours
bonjour
O canto
Vivi aí
monsieur de Chateaubriand
vivi aí
monsieur Victor Hugo
Vivi aí
Baudelaire du mal
vivi aí
Rimbaud en enfer
vivi aí
Lautréamont maldoror
Vivi aí
Sartre nausée
Aron si raisonnable
Camus sisyphe
Vivi convosco
Breton nadja
Éluard liberté
Aragon paysan
Foi só depois
sem Brassens nem Brel nem Ferré
nem Aznavour nem Piaf nem Bécaud
talvez à sombra de Sand e Musset
(mas sem que já nem eles
me pudessem valer)
que deixei
escapar
o meu
rouco
e quase
resignado
canto
final
de homem
desencantado
e desolado.
Os octogenários
São os octogenários
de todo o mundo.
Atropelados
ignorados
aniquilados
quase.
São os octogenários
de todo o mundo.
Só estão
à espera
de mais um dia
de vida.
São os octogenários
de todo mundo.
Somos os octogenários
de todo
o mundo.
Unidos morreremos.
O último jogo
Foi o teu
último jogo.
Claro
que perdeste
claro que sabias
que ias perder.
De facto
todos perdem
o seu último jogo.
Mas só
um semi-deus
sabe escolher
o dia e a hora
exactos
do seu último jogo.
Nihil amplius
Agora
pela
última vez
vais partir
Fica-te
apenas
a funda tristeza
de nunca mais
regressares
E
é tudo.
Nihil
amplius.
jdpré
Sentias
que ias
partir
E uma vez mais
quiseste
chamar
invocar
Dvorak
Mas a corda
do violoncelo
partiu-se partiu
de vez
Tu não
decerto que não
jamais
em tempo algum
partirás
Claudel, Journal
Morreu
sem saber
escrever
Nietzsche
com todas as suas
nove letras
Esquecia-se
por norma
do «s» de sageza
depois do «z» de Zaratustra
e antes do «c»
de Claudel
Bolçava
«Nietzche»
com apenas
oito letras
Será
que os erros
de palmatória
se pagam
na eternidade?
pessoas
TRAKL (1)
Olhas-me
do abismo
de água gelada
dos teus
vinte anos
vinte mil anos
de silêncios
e ruínas.
Olhas-me
meu anjo
sem norte
à espera
da morte
meu intruso
a suicidar
agora mesmo
na cidade temida
escura apodrecida.
Olhas-me
sem dar
esperança
de fuga
ao menino azul
que em ti morrerá
no fim desta noite
do mundo.
Desta noite
sem deuses
ainda vivos
e capazes
de amar.
TRAKL (2)
Procuras o meu olhar
uma vez e outra vez.
Sei que me vais levar
e sem apelo. De vez.
Ainda não, agora.
Mas talvez um dia
um dia quem diria
eu vá sem demora.
Talvez sim talvez.
Mas, hoje, espera.
Está frio. Não era
a hora exacta, vês?
Um dia dir-te-ei:
cumpre a tua lei.
Então sim,
pega-me
e leva-me
contigo,
Melancolia.
PANERO, LOWRY, FITZGERALD
Passava eu
junto do
eleva-a-dor
de Santa Justa.
Chegou o poeta
Juan Luis Panero
e disse:
Lowry. Cuernavaca.
Álcool.
Tudo isto
mesmo na base
do eleva-a-dor
de Santa Justa.
Garantia Panero
que Zelda dançava
por Scott:
«Apanha uma estrela
para mim.»
(Que magia
viver uma vertigem
de 40 anos tão
apavorados
e regressar sem dor
à secreta caverna
dos mitos maiores).
Depois
chegou a vez
de descer
ao metropolitano.
Sem nunca enterrar
as sublimes oh sim sublimes
bebedeiras escatológicas
de Malcolm e Fitzgerald.
ANTONIO COLINAS
Junto ao Restaurante
Primeiro de Maio
esquina da Rua da Atalaia
com a das Salgadeiras
e sobre o tejadilho
encapotado
de um carro
deveras estacionado
leio e releio
Antonio Colinas.
Colinas
de amor, filhos e mortes.
Túmulos negros.
Depois
a luminosa
Primavera
e uma voz
doutra era
soletra, apaziguada, diurna
et-caetera:
ó pombas, ó meninos, ó avós
que mansidão, que azul,
que harmonia, que luz
que órgão tocado por Bach
que música, que melodia
que xaropada de Brandeburgo
que cantata do lar
que hino que raio de colinas
que castelos de cartas foste inventar
com franqueza, Antonio,
á, bê, cê, dê, é, éfe, gê, agá, i , jóta
ai não diz a góta com a perdigóta!
ALFONSO COSTAFREDA
Tu es pressé d’écrire
Comme si tu étais en retard sur la vie.
René Char
No dia em que fez
mil anos de medo
disse, basto solene:
sabendo o que sei
sobre a esperança
de viver mais dias
considero que vou não existir como o senhor meu pai
e que chegou a hora de me salvar apenas pela palavra.
A plateia entediada ouviu.
E, como sempre cruel, riu.
Então o enorme alquimista Alfonso Costafreda
ficou ainda mais distante do inferno de sua filha
o das crianças assadas por um deus de pacotilha.
Dormiu finalmente só com seus fantasmas.
Finou-se em paz e não enviou mais notícias.
BERGMAN
Eram
cinzentos
como
os de um lobo
indefeso
os olhos
do cordeiro
aterrorizado?
Verdes
verdes
os seus cabelos?
Que importa
mestre Ingmar
sem dúvida
chorarás
para sempre
aquele rosto
recém-saído
de um ventre
de mulher
aquele rosto
de menino
condenado
abandonado
brutalizado
injustiçado
profanado
imolado
pelas melhores
intenções
sempre cristãs.
O teu rosto.
DREYER
A urna
negra
fechada
sobre
o mármore
branco.
O cadáver
chegado
no navio
do passado.
A megera
estendendo
a mão.
Dinheiro.
A urna
negra
aberta
sobre
o mármore
branco.
Lençol.
Branca negra branca
a tua sala, Dreyer.
Frio.
Dedos de pai tocando leves
os olhos já ausentes do filho.
Silêncio. Não há Verbo?
UNAMUNO
Gritavam eles a plenos pulmões
(eram muitos e muitos milhões)
pelas nuvens, em manifestação:
Ressurreição, já, Ressurreição!
Então foi aquele crime perfeito:
o carrasco da Ponte dos Suspiros
disparou sabe-se lá quantos tiros
rumo aos Céus a torto e a direito.
Caiu logo um baleado
o judeu já crucificado
que ao escapar da cruz
deixara de ser só Jesus.
Zangou-se e suspirou no chão:
Basta. Agora a Ressurreição.
Senão é mentira eu não existo
era Jesus mas não serei Cristo.
Foi depois que um tal Unamuno
se mostrou o seu mais fiel aluno
gritou até ficar rouco até se fartar
mato-o se Ele não me ressuscitar!
PROJECTO DE NOTÍCIA
Obituário com poucas conversas:
nasceu sofreu q.b. e bateu a bota.
Cresceu sessenta e tal sem batota
nem se passear por tapetes persas.
Escreveu umas linhas sapienciais
mas nos últimos dias queria mais.
Achava que tinha verdades a dizer
depressa agora já antes de morrer.
Encontrado foi somente um papel
folha A(i) quatro para computador
em que se lia chega basta desta dor
deste raiodemundo idiota deste fel.
P.S. - Por expressa vontade do proprietário, a sua alma não será autopsiada.
rupturas
GÉLIDOS AMANTES
Meia de tinto
do Douro
e uma de Luso
para dois.
Ela vai-te fugir
sabe-se lá
por alma de quem.
Depois?
Só mesmo o Além.
(Grita, grita
pela tua mãe).
O AFOGADO DE SUA MÃE
Era uma rua longa e muito inclinada.
Pela tua mão via tudo e não via nada.
Contemplava o teu rosto e dizia é belo
só ele me liga ao mundo é o único elo.
Perto não havia senão aquele senhor
que não entendia meu grande temor.
Depois saíste à procura de porto seguro
esqueceste teu filho num beco obscuro.
Não chorei. Não seria capaz de chorar.
Só vi a minha pequena alma a emigrar.
Ela pôs-se a nadar como quem nada tem
e morreu afogada em plena viagem, mãe.
OS ASSASSINOS
Disseram-se:
«O nosso
amor
morreu.
Matámo-lo!»
Certo.
Era assim
de facto
nada mais
exacto.
Só depois
muito abraçados
choraram
em uníssono
o cadáver
inadiado.
Verdadeiramente
actualizado.
introdução à teologia
ALFABETO
Nas estantes por assuntos
impera a ordem alfabética.
Após o esoterismo com «e»
gastronomia com o seu «g».
Será que comeremos deuses?
CREDO
Um corpo estragado
rachado deteriorado
um velho espatifado
e no meio essa de Deus
do Deus mais que Zeus
esperança só para ateus.
CÍRCULO QUADRADO
O responsável por todo o sofrimento está perto. Rezam-lhe com respeito, amam-no, adoram-no em templos onde o Supremo Mal passa por Sumo Bem e à infinita crueldade se chama Deus Pai. Deus Pai, coisa nunca vista, como Círculo Quadrado.
o filho
MONÓLOGO
Caminhas pela minha mão. Quantas vezes mais?
CONSELHO
Não me ames muito, nunca: sei de um filho trucidado pelo último silêncio do pai.
PERGUNTAS
A que deus rezei eu para que não morresses?
A que deus rezaria eu se me tivesses morrido?
job
A MEMÓRIA
Catorze mil ovelhas
seis mil camelos
mil juntas de bois
mil jumentas
sete filhos e três filhas.
Tudo isto
em paga da tua
infinita dor.
Lembras-te, Job
dos teus outros
sete filhos
mortos
e das tuas outras
três filhas
mortas?
Lembras-te, Job
daquele que era o primeiro
a abraçar-te ao raiar do dia
das suas súbitas carícias
do seu rosto de ternura
das suas tão sedosas mãos ?
Um a um, Job
lembras-te oh se te lembras
de como os amavas.
Como poderias
esquecer os teus
dez filhos
por Ele perdidos
num jogo de dados
e logo assassinados?
Como poderias
perdoar ao Senhor
teu Deus?
O CRUCIFICADO
Onde estás agora?
Algures decepado
algures decapitado
algures humilhado
por um triste fado?
Onde estás agora?
Frio, doido de frio
deitado à beira-rio
olhos de quem viu
a vida por um fio?
Onde estás agora?
No ventre de tua mãe
temendo o que aí vem
qual parido em Belém
por decisão do Além?
Onde estás agora?
Sem dúvida em qualquer lado
acabarás morto e crucificado.
A SOLUÇÃO
Absolutamente nada, eu?
Por que diabo assim não?
Seria uma óptima solução
todo o mundo só de Deus
nada de místicos e ateus.
Um mundo liberto do Grande Espectador
no Coliseu das esperanças e da última dor.
Um mundo todo despovoado de palhaços
que olham para Cima esticando os braços.
Um mundo em que dar alguém à luz do dia
nem pesadelo fosse, nem ideia, nem fantasia.
Absolutamente nada, eu?
Por que diabo assim não?
Seria uma óptima solução
a Terra sem vida só morte
Deus entregue à sua sorte.
E eu simples projecto nunca parido
absolutamente nada, nem concebido.
A-b-so-lu-ta-men-te-na-da.