POR BEM


2009

(vídeo | mini-dv transferido para ficheiro digital, ecrã dividido, cor, s/ som, 6 min 43 s)

Este vídeo surge numa linha de pesquisa que Rui Mourão tem vindo a desenvolver, onde usa a sua própria experiência pessoal ao nível de vivências laborais em trabalhos temporários por onde tem passado (ensino, call-centers, arquivos, teatros, museus, etc). Ao apropriar e subverter situações do campo da utilidade, da funcionalidade e da necessidade para criar um trabalho artístico, procura conquistar um espaço de liberdade. Por isso o faz nos próprios locais e horários laborais. Este vídeo foi feito enquanto Rui Mourão trabalhou como assistente no Palácio Nacional de Sintra.


O título deste trabalho –
Por Bem – parte de uma divisa de D. João I pintada repetidamente no tecto de uma das salas do Palácio Nacional de Sintra e em relação à qual estão associadas lendas e narrativas.


Neste trabalho o artista grava-se transportando um retrato tido durante muito tempo como sendo de D. Sebastião. Este é o mesmo quadro ao qual Rui Mourão já havia tirado o pó no vídeo
Do outro lado do quadro (o pó da História). O referido quadro é uma cópia atribuída a Alonso Sanchez Coello, a partir de um original da pintora Sofonisba Anguissola, realizado em Espanha como retrato do Infante D. Carlos (filho de Filipe II de Espanha e de D. Maria de Portugal, que viveu entre 1545 e 1568; e primo de D. Sebastião, com quem era fisicamente parecido).


A pintura foi modificada algures no tempo para incluir legenda e atributos identificativos do monarca desaparecido em Alcácer-Quibir, apresentando um posterior repinte com as armas portuguesas e a seguinte inscrição: “Retrato del Rei D. Sebastião I, décimo sexto de Portugal, feito na era de 1671”. Exames radiológicos revelaram que foram acrescentados outros elementos à pintura original. Particularmente digna de atenção é a descoberta de que pendente do colar ao pescoço do rei, estava primitivamente o “Tosão de Ouro” (alta ordem ligada a Espanha concedida ao Infante D. Carlos). Actualmente tem pintado no seu lugar um medalhão com a cruz da Ordem de Cristo (símbolo ligado a Portugal, usado através dos tempos, tanto nas velas das naus na expansão marítima como em diversas organizações políticas, desportivas e militares actuais).


Ao transportar o quadro de D. Sebastião, ao tocá-lo e mudá-lo de um lugar para outro por um percurso de salas do palácio (aquelas a que se associam lendas e mitos: Sala dos Cisnes, Sala das Pegas, Quarto de D. Sebastião, Sala dos Brasões, Quarto de D. Afonso VI), está-se implicitamente a afirmar a sua transitoriedade: porque é um objecto frágil, porque a sua identificação foi abalada, porque a entidade que simboliza – a de uma consciência nacional construída após 1640 e apropriada com finalidades diversas ao longo da história – é tudo menos eterna, a-histórica e mítica. Tomou-se assim o quadro e as acções desempenhadas pelo artista, para reflectir sobre questões ligadas à identidade nacional, aos seus mitos e a legitimações históricas com base em construções ficcionais.


Contudo, ver neste projecto apenas a desmistificação da identidade portuguesa consubstanciada numa imagem que se revela falsa é restringir-lhe o significado. Há também, no vídeo, o lugar, o cenário majestoso onde tudo se passa: um palácio que já foi residência de reis e é hoje um museu, ou seja, o lugar onde a História se concentra e se expõe vertiginosamente como objecto de consumo. Rui Mourão considera o museu como uma entidade viva, habitada aqui pelo corpo de quem nele trabalha. Arquivo vivo, o museu é também, paradoxalmente, o relicário onde a História se encerra. D. Sebastião está no museu, o seu retrato pode ser falso, mas o artista regressa a ele uma e outra vez para, agora, definir a sua identidade pessoal.



Este texto é em grande parte retirado do catálogo expositivo escrito por Luísa Soares de Oliveira.

Nota: O vídeo ganhou o
Prémio do Público, em 2010, no FUSO - Anual Internacional de Videoarte de Lisboa.