OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS


2014

(performance | em colaboração com dezenas de artistas, artivistas e apoiantes da arte e cultura)



Na exposição OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS, no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, o inesperado sucedeu quando uma das convidadas parou no meio da inauguração e interpretou "Acordai" de Lopes-Graça, uma canção de resistência dos tempos da ditadura. Era a mesma cantora lírica e ativista – Ana Maria Pinto – que, tal como outros artivistas, surgia nas imagens da videoinstalação e no texto do livro, o que deu ao conjunto uma dimensão semiológica.


Seguida de vasto cortejo de convidados, a cantora desceu uma escadaria até se aproximar de Antígona, personagem símbolo de luta transgressora pelo Justo, princesa adormecida que os convidados tentavam despertar atirando ervilhas (colaboração ao nível dramático do Colectivo Negativo, que inclusive concebeu figurinos e adereços).


De seguida li o manifesto, declarando: "Estamos aqui em ocupação artivista do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado. Estamos a ocupar o museu em defesa do museu e não contra o museu. (...) Isto não é teatro, nem encenação, nem nós somos personagens, embora o que estamos a fazer seja uma grande performance. Performance para a qual, a partir de agora, estão todos convocados. Os que a apoiarem e os que a ela se opuserem".


Entretanto havia no local dezenas de artivistas com quem previamente tinha combinado ocuparmos o museu como protesto artístico, os quais estavam no museu como suposto público misturado com o público normal da inauguração. Esses "espectatores" (como lhes chamaria Boal) e outros que entre o público no calor da emoção espontaneamente se lhes juntaram, como planeado abriram a
chaise-longue da Antígona – autêntico cavalo de Tróia – e do seu interior tiraram uma série de sacos-cama que neles escondemos para que pudéssemos tirar no momento e passar a noite em ocupação artivista do museu. Foram também retirados cartazes escondidos com mensagens como + CULTURA = + EDUCAÇÃO = + DEMOCRACIA. Dentro da chaise-longue havia ainda 2 blocos A2 de papel em branco e marcadores para as pessoas escreverem cartazes com as suas próprias mensagens.


Foto: Jairo Marcos



No espírito da arte relacional e da participação cidadã, fizémos assembleias cívicas como performances no museu, onde foram discutidas questões artísticas, culturais, sociais e políticas. Acabámos por passar toda a noite no museu e só saímos depois das 10h da manhã, hora a que foi convocada uma conferência de imprensa com as nossas reivindicações. De forma irónica, desde o princípio da noite foi sempre exigida uma reunião oficial com o ministro da Cultura (numa altura — entre 2011 e 2015 — em que o país tinha deixado de ter ministério da Cultura).


Cerca de um mês depois (17/08/2014) a performance saiu do MNAC - Museu do Chiado, onde decorreu o primeiro acto, e passou sobre outra forma para o Museu Nacional de Arte Antiga, onde teve lugar o segundo acto. Aí, 73 pessoas (evocando o art. 73.º da Constituição da República Portuguesa, sobre o direito à cultura e à democratização do seu acesso) todas vestidas de negro, imóveis, num
happening poético de dezenas de estátuas vivas, reproduziram ao vivo as poses de diferentes figuras humanas de quadros e estatuária do museu emtableaux-vivants. Simultaneamente iam repetindo, como um mantra polifónico: "Somos arte, diante da arte, de luto pela arte, em luta pela arte". Nesse momento inscreveram-se naquele local como arte.


De seguida, após um gélido silêncio com corpos dramatizando serem estátuas artísticas, as pessoas desmancharam as suas poses e foram todas para a bilheteira pedir o livro de reclamações até esgotarem todas as folhas a protestarem devido a terem pago bilhete de acesso a um museu público num domingo, quando antes todos os domingos eram gratuitos (e como depois voltaram a ser), o que violava claramente a obrigação pública de democratização do acesso à Cultura referida no art. 73.º da Constituição da República Portuguesa.


No mês seguinte (15/09/2014), depois do Acto I (MNAC) – OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS e do Acto II (MNAA) – OS VOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS NOSSAS URNAS, deu-se o Acto III – MORREM LENTAS AS URNAS ONDE NÃO CABEM OS SONHOS, que apontou diretamente para o topo da hierarquia do setor cultural público. Foi um
happening que começou com dezenas de pessoas a ler poesia em voz alta, ocupando o pátio central do Palácio Nacional da Ajuda com uma cacofonia de sentidos poéticos. Pouco depois sobrepôs-se outra dimensão mais subversiva: um grupo de engravatados porcos antropomorfizados destruiu a poesia e um ruidoso drone andou a sobrevoar a porta do secretário de estado da Cultura, tendo sido então feita toda uma coreografia pelos performers expressamente para a câmara de vídeo acoplada ao drone, que filmou tudo de cima.



Apenas da perspetiva aérea gravada em vídeo se percebeu que as dezenas de chapéus-de-chuva abertos, no seu conjunto, formavam um grande €, símbolo de dinheiro, metáfora do único critério a que víamos sujeitar-se a Cultura. Esse ato de contrapoder foi simbolicamente realizado no centro do poder público da Cultura em Portugal. À volta daquele pátio estão as entradas para a DGPC - Direção-Geral do Património Cultural e para o ministério da Cultura (na altura, mera secretaria de estado).


Como sem público não há performance, foi sempre feito um esforço no sentido de criar uma comunicação mediática que funcionasse como palco para o nosso artivismo. As performances artivistas no twitter chegaram a ser
trend topic nas cidades de Lisboa e Porto. Houve igualmente milhares de visualizações, partilhas, gostos e comentários no facebook e no youtube. Chegámos mesmo a transmitir vídeos em direto (em live stream) do MNAC para a internet, tendo havido polémica em alguns bloques e sido amplamente noticiado em jornais e canais de televisão.


Foto: Madalena Ávila



No seu todo, os 3 “actos” performativos desenvolvidos em articulação com a exposição que continuou patente durante 3 meses no MNAC - Museu do Chiado, revelaram claramente ser possível criar formas artísticas que permitam obter uma voz na esfera pública, com impacto suficiente para constituírem os seus participantes em reais atores políticos. Com os nossos corpos, a nossa energia, a nossa ação, os nossos sonhos, demonstrámos que as performances artivistas podem operar representações de cariz subversivo que funcionem como formas de contrapoder e contestação pública.


As 3 performances artivistas consubstanciaram na prática aquilo que a videoinstalação representa e o livro que escrevi (
Ensaio de Artivismo - Vídeo e Performance), na sua reflexão, ensaiou: que a arte, de facto, pode empoderar as pessoas e que o corpo é o medium mais democrático e universal para o executar – todos temos um.


O facto de tudo isso ser produzido a partir da ação do corpo, remete-nos para o conceito de
afeção. Tendo aplicação em contextos psicológicos e filosóficos, o conceito foi criado por Espinosa e desde então foi amplamente abordado a posteriori (por autores como Deleuze, Guattari ou Massumi). Numa abordagem muito sucinta, a afeção prende-se com a capacidade dos corpos afetarem ou serem afetados através das energias das suas ações e atitudes, tocando as emoções. Uma performance de contrapoder bem sucedida é precisamente aquela que de alguma maneira exerce afeção a quem a presencia. As tradicionais manifestações de coletivos na rua, como demonstração de poder, necessitam da presença do maior número possível de pessoas para ganhar afeção e adquirirem uma legitimidade que lhes confira representatividade. Pelo contrário, a força das performances artivistas no espaço público é mais qualitativa que quantitativa, assumindo em pleno a sua vocação de contrapoder. Como tal, o mais importante não é a quantidade de participantes, mas a sua capacidade de impacto no questionamento das relações de poder estabelecidas na sociedade.


Photo: Ricardo Castelo-Branco



Nos protestos políticos mais convencionais e institucionalizados o arrastar repetitivo de fórmulas e dinâmicas emotivamente pouco entusiasmantes, de certa forma tem diminuído a força desses movimentos. Há portanto o risco de tal alimentar um esvaziamento de emoção política. Note-se que corpo que perde emoção é corpo que perde ânimo (basta pensar na própria origem etimológica da palavra
anima) e um processo prolongado de existência desanimada resulta numa perda de crença, de motivação e, em última instância, pode levar à perda de vida. A um nível coletivo é o próprio espírito da Polis que perde fôlego, isto é, perde-se o emotivo e vivo exercício da Democracia para além da rigidez institucional. Ora o que fizemos nos 3 “actos” artivistas apresentados foi o oposto. Levámos, provocadoramente e sem falsos pudores, o político para o espaço museológico e ainda fizemos disso arte. Uma arte relacional e participativa onde procurei que a arte entrasse pela vida adentro e transformasse as nossas existências. Pode-se interpretar nesse sentido este excerto do manifesto que li na inauguração da exposição:


"Ao realizarmos esta ação podemos mudar algo na sociedade – ou não! – no entanto, com o exemplo desta ação de certo modo somos nós próprios que nos podemos transformar. É uma mudança que vem da expressão de uma consciência cívica mais crítica, audaz, criativa, interventiva, sentida e livre, que não se esgota nas normas institucionais, nem no mero voto de 4 em 4 anos e que pretende levar-nos a viver uma experiência política com maior intensidade. A viver uma maior intensidade pela emoção na crença em valores em que acreditamos, podendo ser igualmente inspiradores para outros. (...) Toda e qualquer performance artivista, só por existir, afirma na esfera pública o próprio ideal de Democracia. E enquanto nós, cidadãos ativos para além da norma e da estrita regra, estivermos vivos, esse ideal não morre. Nem dentro de nós, nem nas ruas, nas praças ou nos museus de todos.”


Photo: Madalena Ávila