THE STALIN'S BOOTS


2012 - 2013

(videoinstalação | HD vídeo, 4 projeções em loop, cor, som)

Quando Rui Mourão (Lisboa, 1977) iniciou a sua residência já sabia o que queria fazer em Budapeste: filmar o Memento Park, peculiar parque temático criado no início da década
de 1990, logo após a queda do regime comunista na Hungria. Trata-se de um museu a
céu aberto que alberga, entre outras coisas, efígies de Karl Marx e Friedrich Engels, estátuas que idealizam o trabalhador comunista e, num pedestal, uma reprodução do que restou da monumental estátua de Estaline derrubada na Revolução de 1956: os pés do ditador.


Neste espaço de óbvias ressonâncias políticas, recolheu imagens de uma visita guiada. Há turistas que viajam num autocarro, que posam para um retrato, que passeiam à volta de estatuária. E, também, pormenores de edifícios e planos de estátuas recortadas no céu azul. Mas o artista não nos trouxe um documentário, e sim uma instalação vídeo, composta de quatro projeções, intitulada “As Botas de Estaline”.





Note-se que Rui Mourão tem privilegiado no seu percurso uma certa documentação visual de situações quotidianas reais, dando-lhes novos sentidos, via edição, a fim de interrogar diferentes realidades pessoais e coletivas. Foi o que aconteceu em “O Carnaval é um palco, A Ilha é uma festa” (2012), sobre as Danças de Carnaval da Terceira, nos Açores, ou nos vídeos que problematizam tipologias e quotidianos do trabalho
[1]. Sempre a fim de curto-circuitar as imagens, para que estas destilem outras reflexões, representações e construções. Neste caso, interessou-lhe uma realidade coletiva e o modo como esta se recria enquanto narrativa através das releituras e apropriações da História.


“Em ‘As Botas de Estaline’ optei por filmar o espaço de Memento Park por ser extraordinariamente marcada a apropriação política, social, cultural e económica que um dado sistema de poder vigente – autointitulado como democrático – fez em relação aos símbolos de um sistema de poder anterior – totalitário, comunista e estalinista – ao qual se opôs. Mais do que uma reflexão sobre o comunismo ou o capitalismo, este trabalho pretende ser uma reflexão mais alargada em relação ao destino efémero de todos os impérios e sistemas de poder e à sua releitura histórica em função da visão de cada época. No caso único de Memento Park, chegou-se a situações tão idiossincráticas como usar estatuária de uma ditadura para falar de democracia ou turistificar iconografia comunista para obter lucros.


Rui Mourão não pretende denunciar em tom panfletário ou moralista as ironias da História, mas propor uma reflexão visual sobre a História enquanto construção humana. Reflexão que nos implica enquanto espectadores e cidadãos. “Acredita-se na História quase como uma voz de Deus escrita na pedra para a posteridade. A História é apenas – o que não é pouco – uma criação intelectual do Homem que, baseada em marcas de uma realidade anterior, estuda o Homem pretérito. É, portanto, uma criação de pessoas, sobre pessoas, para pessoas. É interpretada por homens, escrita por homens, aprendida por homens, difundida por homens. Não é o passado, é uma representação do passado feita em cada presente. Como tal, é uma coisa extremamente política, sempre dependente do ponto de vista dominante no presente, ou seja, dos vencedores da História”.


Não se confunda esta perspetiva atenta e indagadora com uma apologia de um relativismo difuso. Diante de “As Botas de Estaline”, o espectador não se perde na contingência dos processos históricos, mas confronta-se com as suas leituras, imagens e sentidos. A sua perceção é soberana e a opção do artista por uma instalação multicanal enfatiza esse aspeto. “Não me interessava mostrar tudo num único plano-sequência ou mesmo em imagem monocanal. Procurei operacionalizar os sentidos numa articulação polissémica e inter-relacional das imagens”.



[1] “Tróia (Call Center)” e “Reflexos”, ambos de 2007, “Do Outro Lado do Vidro (Os Pássaros)”, de 2009 ou “As Restauradoras”, de 2012.




Na instalação, os jogos duplos das imagens recolhidas no Memento Park contrastam com a projeção, noutra parede,
de imagens de arquivo relativas à destruição da estátua de Estaline. À coreografia dos movimentos dos turistas sobre a imobilidade das estátuas, Rui Mourão contrapôs, num plano afastado, a intromissão fantasmática e violenta do passado. Como se quisesse dizer ao espectador: “eu não vou ser o único produtor de imagens, nem o guardião dos seus sentidos, mas não deixo de te lembrar os falhanços das promessas e utopias da História”.


Diz-nos o artista: “cada projeção expõe uma representação de imagens e sentidos que visa dar uma múltipla perceção de um fenómeno que pode ter diversas leituras e que é também ele múltiplo na sua estrutura cultural, artística, histórica, económica, social, política, antropológica e, no fundo, identitária”. Para o processo de trabalho, Rui Mourão ressalta a importância do cruzamento entre a vídeo arte e os métodos antropológicos: “fiz uma série de entrevistas a diferentes visitantes no parque que acabei por não mostrar na obra apresentada, mas que me serviram
para compreender melhor aquele espaço, o tipo de pessoas que o visitavam e quais as suas motivações. Não usei essas entrevistas no resultado final, mas foram essenciais
para a obtenção da articulação polissémica conceptual que deu corpo ao trabalho”.


Quase invisível nas imagens em movimento de “As Botas de Estaline”, a experiência e a investigação documental a que durante um mês se entregou permitiram-lhe construir um olhar distanciado e definido sobre certas questões. “Interessam-me a identidade, o poder, a construção do conhecimento e do significado. Ao nível dos objetos criados pelo Homem (neste caso, estátuas do período comunista na Hungria), da linguagem (recorri a uma voz em off da guia turística a comunicar aos visitantes no autocarro o que poderão ver e comprar no Memento Park), da performance (os turistas na sua ação, no seu movimento à volta das estátuas, frequentemente mediados através das câmaras fotográficas, no que acaba por se constituir quase como uma coreografia destes em torno das estátuas do passado) ou da memória (aquela que o próprio parque temático evoca e pretende transmitir)”.


Objetos, linguagem, performance, memória. A presença destes elementos no quotidiano do parque traduz afinal o mote de “As Botas de Estaline”. Presença que é legitimada pelas (atuais) circunstâncias políticas e simbolicamente ameaçada pelos conteúdos das imagens documentais da Revolução Húngara de 1956. A História persegue a História.

Texto escrito por José Marmeleira para o catálogo da exposição As botas de Estaline na Galeria Quadrum.

Nota: Este trabalho de videoarte dividiu-se em dois. Apesar de ambos terem as mesmas imagens, têm edições e formatos distintos. Há a versão monocanal em split screen e há a versão de videoinstalação com múltiplas projeções. No caso da videoinstalação, com as projeções de vídeo busquei romper a linearidade das imagens desdobrando-as por ângulos arquitetónicos de cada espaço expositivo por onde passou. A videoinstalação esteve patente na MMG - Magyar Mühely Galéria (Budapeste, Hungria) e na Galeria Quadrum (Lisboa, Portugal).