Depois da geração Coca-cola, agora é a vez dos lanches na praça de alimentação do Shopping Center. Tudo muito prático, muito moderno. Um triplo hambúrguer cheddar é entregue ao cliente em menos de cinco minutos. Eu gostaria de saber como isso é possível. Um boi demora anos para ser abatido, até chegar à fábrica para a produção da carne de hambúrguer. Antes de plantar as sementes de trigo, é neces-sário arar e adubar a terra. Em seguida, leva um bom tempo para se iniciar a colheita. Passam as estações do ano, mas o pão não pode fal-tar nas lanchonetes. Nem vou perder mais tempo falando a respeito do processo de produção de outros ingredientes de um fast-food.
Os famintos seres humanos estão sempre com fome. Comem e con-tinuam com fome, comem e sentem mais fome. Uns comem e muitos passam fome. Matam, mas não matam a fome. Pobres famintos seres humanos. Apropriam-se dos recursos naturais, exploram a natureza e industrializam o que conseguem para acumular a maior quantidade de produtos para o consumo. Consomem, jogam o resto fora e, por fim, ainda reclamam de barriga cheia. Outros, de barriga vazia. Mas a fome nunca passa. Nem mesmo a sede...
Fecharam-me com uma tampa de plástico. Meu corpo, quase con-gelado pelo ar condicionado do Shopping, agora está frio de tanto milkshake. Aliás, uma mistura de sorvete com leite, meio sólida e meio liquida. De repente, um gigante assustador abriu suas enormes mãos e me pegou com bastante brutalidade. Eu tentei pedir socorro, mas a tampa abafava meus gritos. Logo, senti uma punhalada... O desgra-çado do canudo, um barulho de... Uma boca de humano sugando a-quele milkshake mentalmente, lentamente. Tentei chorar e não conse-gui... Mas suei por toda a minha superfície plástica.
— Papai! Eu também quero milkshake de chocolate, igual o do Lean-dro! – a bela Sofia não estava satisfeita com o milkshake de morango. Ela me rejeitou, sei lá por que. Ah, sim! Porque meu milkshake é de morango. Desde pequena, ela se mostrou contrária ao comportamento feminino imposto pela sociedade machista.
— Ah, não! Agora que eu já comprei, você vai tomar! – diz o pai.
Ainda se negando de tomar o milkshake de morango, ela se vira pa-ra seu irmão Leandro e diz:
— Você aceita trocar comigo o milkshake?
— É claro que sim, Sofia! Papai sabe que eu gosto de morango e você de chocolate, mas ele sempre nos obriga a algo que não gosta-mos!
Os dois são gêmeos, de quatorze anos, unidos, iguais e diferentes em algumas coisas. O pai não aceita qualquer tipo de inversão; fez questão de não combinar os nomes dos filhos. É que estou acostu-mado a ver gêmeos com nomes parecidos, como por exemplo, José Maria e Maria José. Mas este pai é mesmo ranzinza.
— Largue já esse copo de Milkshake, filho! – eu até fiquei ofendido com o pai. Qual o problema do filho gostar do sabor de morango?
—Por favor! Não faz isso, pai! - gritava Leandro enquanto seu pai agarrava-lhe no braço violentamente.
— Filho meu não tem escolha! Vai ser do jeito que eu quiser! Me obedeça já!
A filha começou a chorar com aquela cena degradante. Leandro soluçava também ao ver seu pai se transformar em um monstro cruel. Aquelas mãos pesadas do pai causavam marcas vermelhas por todo o braço direito do filho. Eu estava assustado também, prestes a ser jo-gado no chão brutalmente. Não podia fazer nada para ajudar as crianças. Sentia-me um inútil, sofrendo de remorso antecipado. Mas o pai continuava castigando o filho por causa do delicioso milkshake de morango!
— Não me bate, meu pai!
— Quem você pensa que é? Se eu falei que você não vai tomar esse milkshake de morango, então por que você não me obedece?
Sofia, coitada, jogou meu parceiro no chão do Shopping, de tão nervosa. O milkshake de chocolate esparramou, fazendo um grude no piso. Algumas pessoas até escorregaram, depois ficaram resmun-gando e nem deram atenção ao choro dos gêmeos.
— Larga, larga, larga! Ou eu...
Uma bofetada. Uma forte bofetada. O rosto. O rosto estremeceu to-dinho. A vibração da bofetada chegou até os olhos. O pobre garoto sentiu uma revolta tão grande, mas só conseguiu derramar algumas lágrimas de raiva. Ele até tentou levantar o braço esquerdo para revidar. Lembrou-se, porém, da voz de sua mãe falecida... E disse o mandamento de Deus: “honrai o vosso pai e a vossa mãe para que se pro-longuem os teus dias na face da Terra”.
— Eu vi tudo! O que o senhor pensa que está fazendo? – enfrenta uma idosa com uma bolsa pendurada no braço. Ela passa a atacá-lo com uma bolsada. Gostei de ver aquela senhora intervindo na situa-ção! Foi a única pessoa que defendeu os gêmeos.
— Não se intromete onde não foi chamada, sua velha! – grita o pai, rude e sem caráter. Ele não respeita criança, nem filho, muito menos uma idosa.
— Velha é sua bunda! Você não tem respeito? Onde se viu ficar agredindo crianças por causa de um milkshake? Não sabe que é proi-bido machucar um filho desse jeito? Dá cadeia, jumento...
— Quem vai pra cadeia é a senhora, me desacatando na frente de todo mundo! Ou melhor, pra um hospício, sua loca desvarrida!
Neste momento, eu já estava passando mal com tanta violência gratuita. As crianças ainda estavam acuadas. Uma multidão se aglo-merava em volta, como se estivessem assistindo a um espetáculo... Aliás, de mau gosto! Ninguém fazia nada, só ficavam espiando.
— Espera só até eu chamar a polícia! – grita o pai violento.
— Chama mesmo, que você vai para o xilindró! Assim, você a-prende a respeitar crianças e idosos!
Leandro e Sofia iam se afastando cada vez mais, temendo o que o pai poderia fazer. Sim, porque talvez saibam que seu pai tem grande tendência ao crime de agressão à família. Nem precisa adivinhar mui-to! Os humanos estão cansados de escutar nos telejornais sobre ho-mens que maltratam suas esposas, pais que matam seus filhos por na-da! O mundo jaz do diabo mesmo! Que a fúria dos deuses se recaia sobre os homo sapiens!
Estou péssimo! Acho que vou derreter. Por fim, estou ao lado do meu amigo Milkshake Cup de chocolate, na lixeira. É melhor estar aqui para não ter que assistir a tantas maldades humanas. Não fiquei lá, correndo o risco de ser pisoteado ou chutado para fora do Shopping. Sabe lá o que me espera além da porta... Imagino que haja um mundo cheio de humanos como estes da praça de alimentação. Alguns co-mendo e bebendo tudo o que vêem pela frente. Outros, violentos co-mo este pai. Muitos como este público de pessoas hipócritas e alheias à maldade humana. Cadáveres, múmias, fantasmas e zumbis ambu-lantes. Eu prefiro ficar com os copos descartáveis, com os guarda-napos, com outros plásticos e papeis. É mais seguro? Penso que não. Mas é a melhor opção no momento. Quem sabe, de repente, eu encon-tre o mundo das crianças. Um lugar encantado, só deles, onde haja paz e amor... Onde crianças como Leandro e Sofia possam tomar milkshake do sabor que escolherem, sem existir pais malvados e nem adultos violentos. Brincaríamos numa praça, numa loja de sorvetes, onde quer que seja.
Já que ainda não encontrei este mundo perfeito, vou ficar aqui na lixeira, sonhando com o mundo das crianças felizes...
[FIM]