CONSTRUÇÃO DA LÍRICA HORACIANA: ENTRE A FILOSOFIA E A RAZÃO
O berço da literatura clássica é, com certeza, a Grécia. A própria evolução da poesia oral para a forma escrita ocorreu em territórios gregos, lugar de ascensão da cultura que vai além das fronteiras. Mas o que tais informações têm a ver com os poetas romanos? Entre 27 a.C. a 14 d.C., Roma era liderada pelo imperador Augusto, exatamente no período em que grandes nomes apareciam no cenário poético romano: Virgílio e Horácio. Para explicar essa relação entre a Grécia e os poetas romanos, o foco de estudo será o poeta Horácio, cujas obras trazem certas referências à Grécia, como veremos na análise de suas odes. A proposta é evidenciar o pensamento horaciano que se transporta para sua poesia, oscilando entre a filosofia e a razão.
Os primeiros elementos que constroem a lírica horaciana estão relacionados diretamente com a cultura grega: na ode 5 do livro I aparece uma musa com nome grego carregado de significação, Pyrrha derivado de pyr, que faz alusão ao temperamento do fogo. O mesmo ocorre com outros personagens como Thaliarchus (“chefe dos banquetes”), Phidyle (“a moderada”) e Leuconoe (“espírito cândido”). O que chama atenção é exatamente o uso de nomes quem soam diferentes, despertando no leitor a curiosidade de saber o significado por trás das palavras. O texto, nesse caso, está carregado de sentidos. Além disso, Horácio menciona fatos que ocorreram em Troia (ode 8 do livro I). Ele também adapta a métrica grega para o latim por meio da separação das sequências métricas.
O tema astrologia é recorrente nas obras de Horácio pelo fato de ser uma prática esotérica muito comum na Roma antiga, tanto que o próprio imperador Augusto mostrou-se preocupado com a disseminação de tais crenças. O autor, por sua vez, teve a sensibilidade de fazer uma abordagem diferenciada a respeito dessa crença. Ele procurou valorizar o presente sem a necessidade de uma intervenção do futuro. É assim que ele produz suas odes de carpe diem com a ideia de aceitação da natureza e do aproveitamento correto da vida.
Embora a luz do sol
ele supere, e tu, leve cortiça,
tenhas a fúria do Ádria,
contigo eu ame a vida – e aceite a morte.
(Ode 9 do livro III – Trad. Lucas dos Passos)
Afinal, não há nenhuma razão para se desvendar o futuro. Saber do que lhes aguardam no amanhã poderia gerar a sensação de que qualquer esforço que se faça no presente seria inútil. Então qual seria o sentido da vida? Certamente, não cabe aqui o julgamento sobre a credulidade de Horácio a respeito da astrologia. Sua proposta é trazer tal assunto para dentro de suas odes como reflexão, confrontando com o conceito carpe diem.
Que a Libra ou o Escorpião formidoloso,
o mais violento para o nascituro,
me tenha, submetido ao seu poder,
ou me domine mesmo Capricórnio,
do mar da Hespéria rei, os nossos astros,
embora incrivelmente, são concordes.
(Ode 17 do livro II – Trad. Bento Prado de Almeida Ferraz)
Horácio usufrui de seu repertório filosófico para celebrar a vida, sob uma perspectiva estoico-hedonista racional. Na ode 28 do livro III, por exemplo, o poeta evoca a urgência em aproveitar o dia de Netuno: “Sentes que é meio-dia e, como se parasse o dia alado (...)”. Nos versos posteriores sugestiona: “(...) e cantaremos Noite em justa nênia”. A ode 11 é a que mais representa o conceito carpe diem:
Tu não indagues (é ímpio saber) qual o fim que a mim e a ti os deuses
tenham dado, Leuconoé, nem recorras aos números babilônicos. Tão
melhor é suportar o que será! Quer Júpiter te haja concedido muitos
invernos, quer seja o último o que agora debilita o mar Tirreno nas
rochas contrapostas, que sejas sábia, coes os vinhos e, no espaço
breve, cortes a longa esperança. Enquanto estamos falando, terá
fugido o tempo invejoso; colhe o dia, quanto menos confiada no de amanhã.
(tradução de Achcar, 1994, p.88)
Observamos nesses versos o emprego do tu como sujeito enunciador, do convite ao prazer, ao próprio carpe diem. Na expressão “é ímpio saber”, há uma menção direta a Leuconoé pedindo que seja prudente e aproveite a vida. A expressão “coes os vinhos” pode induzir ao consumo imediato da bebida.
Nas odes horacianas é notável a sensação de leveza, serenidade e equilíbrio a partir da composição dos versos. Esses artifícios vão ao encontro da proposta filosófica de Horácio. O sentido do verbo carpere, em seu sentido de “fruir” e de “gozar”, endossa a estrutura ideológica de sua obra. Um símbolo de moral que nos alude à ideia de que diante da velocidade com que a vida passa, devemos aproveitar o instante, tudo o que a vida nos proporciona. Antes que chegue a velhice e com ela a solidão e o arrependimento.
Então os jovens arrogantes, velha,
os chorarás em solitário beco
com o bacante vento trácio sob
um céu sem lua.
(Ode 25 do livro 1 – trad. Lucas dos Passos)
Segundo Tavares (1996), literatura é sinfronismo. Não é de hoje que o mesmo conceito carpe diem permanece em nossa sociedade futurista como espécie de fuga. O Clube do Nadismo, por exemplo, “é um movimento criado pelo designer brasileiro Marcelo Bohrer cuja filosofia é reunir indivíduos em locais públicos, geralmente parques e praças, para que façam nada durante um determinado período de tempo” (Wikipédia). Trata-se, pois, de uma maneira de se apoderar do seu próprio tempo e fazer dele o que melhor lhe agradar. Finalmente, por que não ler os clássicos? (CALVINO, 1991). Pois não há dúvidas de que todo poeta vate consegue ver as nuanças do futuro que estão acortinadas para certos expectadores.
Referências:
ACHCAR, Francisco. Variações horacianas: carpe diem. Lírica e lugar-comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1944, p. 87-126.
ALLAN, Willian. History, genre, text. Classical Literature. A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 1-16. Tradução de Adriane Duarte.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia de Letras, 1993.
CARDOSO, Zélia de Almeida. A poesia lírica. A literatura latina. 3ª Ed. São Paulo: Martins Pontes, 2001, p. 49-89.
HORÁCIO. Odes e epodos. Tradução de Bento Prado de Almeida Ferraz. São Paulo: Martins Pontes, 2003.
TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 11ª Ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1996.
©Jéssica Mauro dos Santos e Rafael Teixeira de Souza