RECURSOS NARRATIVOS EM TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA DE NELSON RODRIGUES
Referência: RODRIGUES, Nelson. Toda nudez será castigada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014. (Saraiva de bolso)
O próprio título da obra trágica de Nelson Rodrigues evoca o tom de farsa, sob a construção do humor, em torno de um tema ainda bastante questionado na sociedade brasileira: a nudez, associada à ideia de devassidão que causa a desgraça. Toda Nudez Será Castigada conta a história de uma família pautada no conservadorismo, no preconceito, na mentira e nas falsas aparências. Aos poucos os personagens mostram quem são de verdade, através de seus comportamentos espontâneos. Em certo momento chegam ao extremo do cômico.
O primeiro recurso criativo que o autor carioca utilizou em sua obra para romper com os padrões literários foi uma mistura sutil e inesperada de dois planos narrativos: a cena da fita e a cena do telefone, ambas conduzidas pela voz da personagem Geni. O primeiro ato inicia-se no tempo presente, com a entrega da fita a Herculano (o protagonista) pela Nazaré (a criada negra). No momento em que a fita toca ocorre um flashback evocado pela narração póstuma e melodramática de Geni. Nelson Rodrigues opta pela narrativa sob a ótica de um personagem específico: nesse caso, a prostituta Geni. Sendo assim, não se pode considerar os fatos como verdade concreta, já que são traduzidos na mente do protagonista e ali se misturam a fragmentos de memória. Afinal, os acontecimentos não seguem uma ordem cronológica. No caso do telefone, a rubrica do autor sugere que Herculano volta a escutar a gravação da fita: “Na metade da fala acima ilumina-se a cena. Geni presente. Quando termina a evocação gravada, bate o telefone e Geni atende.” A maneira como a narrativa foi construída nos dá a impressão de que ocorre uma mistura entre diálogo e pensamento dos personagens.
Segundo Neves (2010), “um bom diálogo é cheio de significados, de combinações sonoras, de emoções e intenções ocultas, de imagens verbais.” A construção do discurso poético é, portanto, outro recurso narrativo utilizado por Nelson Rodrigues. Aplicou-se uma linguagem coloquial e exagerada com várias interrupções, que nos sugere a passagem do conservadorismo à perversão. É o que Bogatyrev disse acerca dos signos do teatro: “A fala cotidiana é um sistema de inúmeros e diferentes signos.” Até mesmo Herculano, o protagonista comedido, não consegue sustentar seu discurso formal por muito tempo. As tias e o padre incorporam o discurso falocêntrico, puritano e moral que a sociedade impõe. Por outro lado, a fala do médico é de cunho progressista e serve como ponto de apoio a Herculano. O silêncio dos personagens é a tentativa de se esconder fatos cruciais, como é o caso de Serginho. No entanto, esses assuntos são postos a limpo verbalmente por outro personagem, contrariando a impressão de que nada aconteceu.
Considerando as estratégias textuais, verifica-se a repetição de palavras nos diálogos e as rubricas do autor que realçam ainda mais o exagero cênico em personagens caricatos. Aliás, a repetição é um recurso de retórica que resulta em efeitos positivos como a ênfase, a ironia, o ritmo e a atmosfera. Também pode gerar efeitos negativos, como a sensação de obsessividade, monotonia, tipicidade ou negação. O dramaturgo e o ator muitas das vezes se apropriam das repetições, reproduzindo-as prosodicamente como recurso criativo de encenação.
Observa-se no início da peça que o autor introduz outro elemento importante para todo o enredo: o clima fúnebre. O falecimento da esposa de Herculano influencia totalmente a vida dos personagens. Esse acontecimento trágico obriga os personagens a viverem em luto, cada um a sua maneira. A morte não pode ser evitada e isso a torna um grande evento, que se precede durante toda a narração. O mesmo acontece em outras obras de Nelson Rodrigues, reforçando a ideia de que não podemos esperar por “finais felizes”, tanto no teatro trágico quanto na realidade concreta, pois a morte faz parte de um futuro inevitável muito mais que verossímil. Enfim, representa a decepção e a desesperança de uma sociedade que se apoia em sentimentos de ambição, preconceitos e hipocrisia.
Outras referências:
BOGATYREV, Petr. Os signos do Teatro. In: GUINSBURG, Jacó; COELHO NETTO, José Teixeira; CARDOSO, Reni Chaves (Orgs.). Semiologia do teatro. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 71-92.
MANOSSO, Radamés. Palavras sobre palavras: Repetição. Disponível em http://radames.manosso.nom.br/linguagem/retorica/recursos-retorica/repeticao/
NEVES, João das. Um pouco de definições não faz mal a ninguém. A análise do texto teatral. Rio de Janeiro: Funarte, 2010, p. 76-88.
©Jéssica Mauro dos Santos e Rafael Teixeira de Souza