Vou me apresentar, digo eu para o casal sentado no banco desta praça. Meu nome é Bombalagem, mas pode me chamar simplesmente de lixo porque ninguém me valoriza mesmo, nem ouve meus conselhos... Caso contrário, eu pagaria os salários atrasados e faria uma reforma tributária de cima para baixo. Não se preocupe! Não vou te denunciar para a polícia federal, mas não diga que eu não comentei sobre as rosas. Alguém não me jogou na lixeira, ufa! Que sorte a minha... Mas, também, não vamos comentar sobre os lixos depositados nos politicamente gabinetes grotescos. Por fim, respiro fundo, para me acalmar um pouco, enquanto a vida segue em seu malabarismo macabro.
A mi me gusta de química, principalmente quando se estuda o processo de decomposição das substâncias. Acho que Humanas já não está na moda, mas não rasguem os livros de Filosofia. Não aceite, proteste! Ser ou não ser um lixo descartável nesta cidade decomposta? Eu já tenho certeza de quem eu sou... Mas o ser humano continua se perguntando, sem chegar a uma resposta que não seja, no mínimo, soberba.
E,
desculpa,
voltemos
ao início da história...
A danada está com os braços entrelaçados ao pescoço do cândido; de paixão, parece sufocá-lo. Só que não. O rapaz está excitado, devido às pernas dela sob as suas. Ei, você, feche os olhos! Não somos obrigados a ver tamanha putaria em público! Ser ou não ser um lixo descartável por tantos pecados cometidos? Ser humano, eis a questão.
Minha presença chama a atenção do casal, Roberto e Lúcia, sentados no mesmo banco da mesma praça cujas flores são todas iguais em todas as estações. Pobre do mendigo que decorou com flores de plástico onde só havia lixo. Tudo está depressivo... e ela reclama dele, por não ser romântico, por nunca ter recebido nenhum “creme de la créme” de presente. A paisagem ignora tal cenário de amor. O pior é que ele não sabe que eu estou aqui, caída no chão, por culpa dela. Ser ou não ser descartável neste lixo de mundo?
O amor, hoje em dia, está cada vez mais contraditório tal como o chocolate meio amargo. O barroco chegou tarde ao Brasil, não sou tão ultrapassada assim, em falsas aparências, verdadeiras traições e inteiras mentiras. Há tempos que eu já venho observando os vultos e figuras esbaforidas que passam por aqui todos os dias, nas calçadas mal asfaltadas. Acho que saí da Caverna descobrindo a mimese.
Na semana passada a coisa ficou quente por aqui! Lúcia vai falar, vou expiar...
– Há três meses que nós estamos namorando e você nunca me deu nenhum presente romântico, Roberto!
– Por que você diz isso?
– Todo namorado presenteia sua namorada com flores e chocolate. Só você que não!
O rapaz, de olhos profundos e de rosto fino, contempla sua namorada, ainda paciente. Se eu fosse ele, não ficaria com ela nem mais um instante. Que jovem dissimulada, ela não merece um amor verdadeiro, sequer um bombom! Ser ou não ser descartável nesse lixo de vida?
Já ouvi falar em Romeu e Julieta, só estou em dúvida se é comida americana ou britânica. Gente, como faz calor nesta praça durante o dia! Porém, é tarde, apropriado para curtir a sombra das árvores em volta. Sorte a minha, estou aqui de camarote. Não sou de fofocar. Se você está me ouvindo é porque gosta...
Bem, naquele dia fatídico Lúcia pôs o seu melhor vestido e esqueceu-se de mudar a posição do penteado. Grande diferença, os homens nem observam que uma mulher trocou de brincos! Ela queria muito impressionar o amante. Coitada, não sabia que se tratava de um simples vendedor de doces, ambulante como eu. Pois bem, eles se sentaram no banco, cadeira, carteira ou sei lá o que de ferro. Não sei se dou uma bofetada na face dela ou se conto pra Roberto... Ainda toca sertanejo universitário aqui perto, mas quando é a formatura?
Roberto mira nos olhos dela, procurando por algum resquício de traição, mas ele só queria encontrar lindos rios e belos pássaros voando no paraíso. Lúcia novamente abraçou-lhe e agora, veja só:
– Desculpa querido. Não queria ser tão radical. Você não merece ser tratado dessa forma.
– Eu não me importo! Eu te amo tanto, que não me estresso com nada do que você diz. - ele é quase um bobo da corte.
– Me abraça bem forte e diz que não vai me abandonar!
– Eu prometo meu amor!
Nossa, eles estão se beijando! Se você visse a encenação, diria que está diante de uma simples telenovela. Ser ou não ser uma imitação da mentira? O jornal brasileiro tem seu papel, imparcialmente parcial.
Espera aí, olha o que Roberto está fazendo... Um objeto brilhante, linda joia de ouro. A representação de toda uma eternidade juntos.
– Aceite essa aliança como símbolo do meu amor!
Roberto está se ajoelhando diante de sua Senhora, sem razón. Ela não esconde a culpa desamorosa de alegria tristonha por tê-lo ali, aos seus pés. Ela não se importa com o que fez, tal como a consciência de quem me jogou neste chão, que ainda pisa por cima e não se importa com as dores dos outros. Ela mesma, comigo, com ele, ambos somos meramente embalagens.
Eu gostaria de entender por que a vida tem de ser assim tão pré-histórica, medieval e moderna! Todo dia surge um novo Éden para sepultar nas igrejas, das Catacumbas, um novo mártir. Os amores são novíssimos fatos inventados que existem pela mesma necessidade humana de se comer, de se beber e de se dormir. Roubar, mentir e matar. O amor é uma bolsa de valores, o horóscopo da semana, os sorteios da mega sena – muitas apostas e poucos acertos. A vida se torna um objeto menor que o próprio homemobjeto. E as pessoas fazem parte deste belo espetáculo que eu sou obrigada a assistir todos os dias de minha existência, até que o divórcio os separe.
Espero encontrar o meu próprio destino. Cansei de ser mais um lixo descartado peloscomo os humanos. Já cresci demais e aprendi muito sobre esoterismo e dramaturgia. O ser humano pode ser muito previsível. Eu só quero ser diferente deles, quero ser EU, simplesmente mais viva... E vocês, Robertos?
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Este apólogo faz parte do projeto literário "Cidade Decomposição", de Rafael Teixeira de Souza.