Em uma tela em branco, como outra qualquer, um pintor desenha uma floresta com vários contrastes de verde. Com várias pinceladas é possível formar a figura de uma mulher cuja pele e rosto se assemelha à “cor das areias do mar”. Algumas tonalidades se misturam, compondo os “cabelos loiros, em ondas anelados; mais fulgorosos que o ouro mais puro; irresistíveis às brisas dos bosques; formosos como um beija-flor.” (Marabá, de Gonçalves Dias). Do barro, que forra o caminho por entre a mata virgem, se constrói um vaso de cerâmica para uma moça nua. Parece que seu olhar desiludido está à procura de uma esperança qualquer, perdida em uma imensidão de pensamentos e emoções ocultas, como a própria floresta, tão misteriosa e profunda. A natureza reflete as emoções da figura feminina, tal como um espelho. Sua alma se perde no emaranhado de sonhos, desejos e expectativas que, em algum momento, podem se converter em frustração. Estou interpretando Marabá, uma pintura de João Batista da Costa (1865-1926) que reproduz a personagem descrita no poema de Gonçalves Dias. A valorização das raízes nacionais, como o índio e as paisagens naturais, são elementos predominantes nas obras da primeira geração do Romantismo brasileiro, o Indianismo.
Gonçalves Dias nasceu em 10 de agosto de 1823, na cidade de Caxias (MA). Foi poeta, jornalista, filólogo e teatrólogo brasileiro. Juca-Pirama, Os Timbiras, Canção do tamoio, O canto do guerreiro e Canção do Exílio são alguns de seus poemas que merecem destaque. Eu me detenho em Marabá e Leito de folhas verdes para defender a ideia de que nesses dois poemas o sujeito poético representa a figura de uma mulher indígena. Farei uma análise crítica dessa construção indianista, observando as características do Romantismo e o contexto histórico-social que influenciaram esses poemas.
O sentimentalismo, o subjetivismo, a exaltação da natureza, a idealização e o nacionalismo são algumas das características que começaram a surgir nas produções artísticas e literárias do século XIX. A figura da mulher, relacionada com o conceito de amor, é um dos maiores contrastes do Romantismo, comparando-o com outros momentos da Literatura. Voltando à Idade Média, percebe-se que no Trovadorismo, principalmente nas canções de amor, a mulher era representada por uma donzela recatada e inalcançável. E nas cantigas de amigo, manifestava-se como uma camponesa apaixonada, que ora sofria pela ausência do amado. Já no Romantismo, a figura da mulher revela, progressivamente, as mudanças sociais desse período, como cita Sodré (1976, p. 214): “O Romantismo traduz, não só no campo literário, as alterações já pronunciadas de uma sociedade em que novos fatores surgiam e velhos fatores mudavam de sentido e força.”
A nostalgia dos românticos fazia com que eles buscassem no passado as suas origens. Uma viagem literária à Idade Média representava o resgate de sua história e de seus valores patrióticos, que contribuía para a construção de seus próprios heróis. O Brasil do século XIX era uma terra de senhores escravocratas e burgueses que agora se sentiam “livres” de Portugal, graças à Independência proclamada por Dom Pedro I (1822). Como aqui não houve Idade Média, os românticos resolveram transformar o índio brasileiro em herói nacional, na tentativa de se construir uma identidade própria e libertar-se da cultura europeia. Eis que surge o Romantismo indianista, aliás, muito bem representado por Gonçalves Dias.
É curioso o resultado obtido a partir da transplantação da figura feminina no Romantismo brasileiro. A mulher indígena que aparece nas obras desse período é descrita pela ótica do próprio homem branco. Segundo Bosi (1994, p. 106), “para a primeira geração romântica, porém, presa a esquemas conservadores, a imagem do índio casava-se sem traumas com a glória do colono que se fizera brasileiro, senhor cristão de suas terras e desejoso de antigos brasões.” A índia retratada pelos românticos acabou recebendo qualidades, sentimentos e comportamentos que nem sempre eram seus. Aliás, essa idealização mistificada da mulher indígena sempre rondava o imaginário europeu, desde a chegada dos primeiros portugueses. Pero Vaz de Caminha registrou, em sua famosa carta, a primeira descrição de uma índia brasileira. O colonizador fizera uma diferenciação entre a aparência exótica de uma índia e a aparência comum das mulheres portuguesas ao dizer
(…) E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, daquela tintura; e certamente era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha - que ela não tinha! - tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, provocaria vergonha, por não terem as suas como a dela. (SILVIO, 1996, p. 83)
Mais adiante surgiriam outras caracterizações da mulher indígena, especialmente nas poesias de Gonçalves Dias. Em Leito de folhas verdes, o sujeito poético representa uma índia à espera de um encontro amoroso com o índio Jatir. O comportamento feminino aqui manifestado se assemelha aos antigos padrões medievais que norteavam as cantigas trovadorescas. As atitudes da personagem fazem lembrar o conceito de vassalagem. Na quinta estrofe a índia se compara a uma flor, como uma donzela frágil e sensível. E seu amado índio é comparado ao sol radiante, como um vassalo:
A flor que desabrocha ao romper d’alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio de sol que me dê vida.
Na última estrofe do poema o sujeito poético faz uma invocação a Tupã, entidade da mitologia tupi-guarani, talvez como um apelo ou murmúrio diante da ausência de Jatir:
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!
O elemento “sol” se relaciona com “a brisa da manhã”, marcando uma passagem de tempo. A alegria e a esperança dão lugar à angústia e à decepção. É possível pensar que essa índia pode ter sofrido uma desilusão ou desencontro amoroso. No entanto, o poema permite outras interpretações a respeito, já que o desfecho do poema fica em aberto.
Já em Marabá, o sujeito poético retrata uma índia mestiça que sofre de uma profunda solidão, como se verifica no primeiro verso: “Eu vivo sozinha; ninguém me procura!”. Nesse poema fica a impressão de que a índia mestiça encarna uma figura de negação aos antigos padrões de beleza das mulheres europeias e ao mesmo tempo sugere a ideia de uma construção miscigenada do povo brasileiro. Afinal, os românticos buscavam cada vez mais a supervalorização da identidade nacional dentro de suas obras. O motivo de não ser escolhida por nenhum índio era devido à sua aparência que se assemelhava à das mulheres europeias, como se verifica na nona estrofe:
Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,
São loiros, são belos,
Mas são anelados; tu és Marabá:
Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
Cabelos compridos,
Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá.”
Seu triste destino persiste até a última estrofe do poema, quando a índia conclui com um triste lamento:
Jamais um guerreiro da minha arazóia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!
Se no poema anterior a índia reproduz o comportamento da mulher europeia, donzela romântica e sensível, em Marabá ela se assemelha à sua aparência física. Ambos os poemas falam de frustração pela impossibilidade amorosa, tema que foi muito recorrente nas cantigas trovadorescas e que, por sua vez, nos remete à Idade Média. Nos dois poemas, a mulher indígena é idealizada sob a visão romântica. Não que a mulher indígena da realidade concreta seja incapaz de ter sentimentos. Essa construção artificial do índio era bem recebida pelos leitores e escritores do período. Até porque a literatura é evasão e função lúdica do espírito (TAVARES, 1991).
Quanto à caracterização mistificada da mulher indígena, refletiam-se na poesia romântica os sentimentos mais profundos da sociedade burguesa. No primeiro poema há vários elementos que expressam o clima de sensualidade, como o próprio leito de folhas verdes, local perfeito para um encontro íntimo. Os românticos criavam cenas amorosas entre índios a fim de produzir uma ficção sob medida, atendendo ao interesse do público burguês da época, geralmente mulheres, sem que tudo aquilo correspondesse à realidade das tribos que aqui habitavam. É leviano e pretensioso rotular uma comunidade de nativos segundo a nossa própria ideia de sociedade; julgá-la ou até mesmo compará-la com o tipo de sociedade em que nós vivemos, com o modelo em que nos espelhamos e que incorporamos ao longo dos séculos. Jairã da Silva, indígena da etnia Tingui Botó e estudante do curso de Agronomia na Universidade Federal de Alagoas, descreve a respeito do relacionamento amoroso entre índios:
Há princípios que convergem e se intercalam, mas também às vezes conflituam no envolvimento das relações afetivas. Não necessariamente, as relações nas sociedades não indígenas devam ser compreendidas da mesma forma nas sociedades indígenas.
(...) Vale a ressalva, de que esse post trata de casamento sob a ótica do homem branco, não se configurando aqui, as diversas e diferentes formas de relacionamentos que existem nas aldeias, muitas vezes para cumprirem fins ritualísticos que se confundem com a vida afetiva equivalente ao mundo não indígena.
Se a voz do índio fosse ouvida, ainda hoje, talvez nós os compreendêssemos melhor. Ainda assim, o Indianismo foi uma viagem nostálgica às origens do Brasil. Cumpriu-se o papel de entreter os leitores burgueses, ainda que não fosse explorada a realidade concreta. Afinal... Em que resultou a exploração dos índios durante a colonização dos portugueses? O mito do bom selvagem se sustentara diante de sua resistência e luta por liberdade? Quais foram as consequências sobre a vida das mulheres indígenas e como elas reagiram diante da presença dos brancos agora seus inimigos? A realidade nua e crua não despertava nenhum interesse dos excêntricos burgueses da época.
O Romantismo indianista conseguiu idealizar, pela busca da liberdade de criação, uma identidade brasileira própria. Mesmo que para isso usassem a transplantação do modelo romântico europeu, o que gerou algumas distorções na figura do índio. Será que não sobraram resquícios da influência europeia nas obras indianistas, sob o disfarce da visão romântica dos que enxergavam nos índios suas próprias características e sentimentos? É bem contraditório, mas que resultou em um momento especial para a Literatura Brasileira.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 35. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CASTRO, Silvio. A carta de Pero Vaz de Caminha. Porto Alegre: L&PM, 1996.
DIAS, Gonçalves. I - Juca Pirama, Os timbiras e outros poemas. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. (Coleção a obra-prima de cada autor)
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira: das origens ao Romantismo. V. 1. São Paulo: Cultrix, 2001.
_______________. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2008.
_______________. A criação literária: poesia. 16. Ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
SILVA, Jairã da. O casamento indígena. Disponível em: https://jairantinguiboto.wordpress.com/conheca-a-aldeia-tingui-boto/o-casamento-indigena. Acesso em 20 de maio de 2018.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 10ª ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. São Paulo: Itatiaia, 1991.