Research Project // Projeto de pesquisa 

Usos da arte no mundo da vida: modernidade e engajamentos contemporâneos

Este projeto pretende interpelar um certo número de vozes contemporâneas nas quais é possível, creio, identificar ecos de um gesto seminal de Platão: o de reconhecer os poderes da arte em articular valor de uma maneira que afeta as pessoas mais efetivamente do que outros instrumentos de comunicação visando a orientação na vida, e com um alcance mais amplo de possibilidades do que qualquer outra articulação do espírito. Esses ecos revelam-se em vozes da estética filosófica e da filosofia da arte contemporâneas que retomaram, como pergunta aberta, a questão dos usos da arte. 

Um dos desafios do nosso tempo é novamente a de proteger e promover na vida pública um espaço para recursos espirituais e intelectuais que tenham uma natureza artística, narrativa, ficcional, e que ensejem orientação e experimentação subjetiva e social. Nesse contexto, os usos da arte hão-de buscar um caminho entre dois excessos filosóficos: (1) a autonomia radical e (2) o instrumentalismo reducionista. A autonomia radical ameaça os poderes da arte na forma de uma auto-contenção inconsequente (como na ideia de arte pela arte). O instrumentalismo reducionista dissipa os poderes da arte por meio da tutela das suas liberdades experimentais, em razão de motivações ideológicas diversas - políticas, religiosas, e mesmo visando uma pedagogia da distinção (Bourdieu). 

A ideia deste projeto é explorar caminhos filosóficos entre esses dois excessos em filósofos contemporâneos tais como Stanley Cavell, Richard Eldridge, Arthur Danto e outros. Subjacente à exploração desse equilíbrio entre dois excessos está a retomada de certo espírito das luzes (na fórmula apta de Todorov), sopesando também possíveis excessos cometidos por discursos críticos à modernidade que abandonaram esperanças relativas a possibilidades de articulação eficaz do pensamento e de orientação para o desenvolvimento-no-mundo em artefatos artísticos e na literatura. 

A reivindicação da razão através da voz narrativa/ficcional para Cavell, a possibilidade do pensamento filosófico articulado internamente à composição artística para Danto, a expressão literária da condição do indivíduo como a um tempo capaz de reflexividade mas incapaz de mapear os cursos de ação abertos ao lançar-se à experiência do significado em Eldridge - trata-se aí de imagens filosóficas dessa retomada de possibilidades de autonomia para a arte sem abdicar de uma sua função orientadora na vida. 

A questão dos usos da arte emerge uma vez mais como “questão aberta” (Martin Hollis), ou seja, como uma questão filosófica, e cabendo portanto à imaginação filosófica apostar em sentidos seus. Parte da tarefa que se abre é a de compreender o modo como discursos que visam a persuadir o interlocutor de uma proposição crítica, ou de um juízo, podem fazê-lo sem abdicar (1) da sensibilidade particular, (2) do recurso a atributos objetivos do artefato (quadro, poema  etc.) e tampouco, ao mesmo tempo, (3) de um sentido de “correção” (Wittgenstein, ‘Aulas sobre Estética’) da sua proposição - e mesmo um sentido de “progresso crítico” (Isenberg). 

Finalmente, ao abordarmos o problema da crítica no contexto mais amplo do comentário filosófico ao papel da arte nos usos públicos da razão e da imaginação, a ideia é reivindicar uma função renovada para a arte - e também a crítica - na vida democrática, particularmente num momento em que processos de subjetivação parecem saturar o sujeito de estímulos que não se deixam articular de maneia estável em termos de uma experiência do significado.




Uses of Art in the Life-World: Modernity and Contemporary Engagements


This project aims to address some contemporary voices in which it is possible, I believe, to identify echoes of a seminal gesture by Plato: that of recognising the powers of art to articulate value in ways that affect people more effectively than other instruments of communication aimed at orientation in life, and with a broader range of affordances than any other articulation of the spirit. These echoes are revealed in voices of contemporary philosophical aesthetics and philosophy of art that have taken up the question of the uses of art as an open question. 


One of the challenges of our time is to protect and promote in public life a space for spiritual and intellectual resources that have an artistic, narrative, and fictional nature allowing for orientation and subjective and social experimentation. In this context, the uses of art will seek a path between two philosophical excesses: (1) radical autonomy and (2) reductionist instrumentalism.  Radical autonomy threatens the powers of art in the form of inconsequential self-containment (as in the idea of ​​art for art's sake). Reductionist instrumentalism dissipates art's powers through a tutelage of its experimental freedoms due to different ideological motivations - political, religious, and even aiming at a pedagogy of distinction (Bourdieu). 


This project aims to explore philosophical paths between these two excesses in contemporary philosophers such as Stanley Cavell, Richard Eldridge, Arthur Danto and others. Underlying the exploration of this balance between two excesses is the resumption of a spirit of enlightenment (in Todorov's apt formula), also weighing possible excesses committed by discourses critical of modernity that abandoned hopes regarding possibilities for the effective articulation of thought and orientation for the development-in-the-world in artistic artefacts and literature. 


The claim to reason through the narrative/fictional voice in Cavell, the possibility of philosophical thought articulated internally to artistic composition in Danto, the literary expression of the condition of the individual as at once capable of reflexivity but incapable of mapping the courses of action open when launching into the experience of meaning in Eldridge - these are philosophical images of this resumption of possibilities of autonomy for art without giving up its function of orientation in life. 


The question of the uses of art emerges again as an “open question” (Martin Hollis), that is, as a philosophical question, and it is therefore up to the philosophical imagination to wager on possible meanings for it. Part of the task that arises is to understand how discourses that aim to persuade the interlocutor of a critical proposition or a judgment can do so without giving up (1) particular sensitivity, (2) the recourse to objective attributes of the artefact (painting, poem, etc.) and neither, at the same time, (3) a sense of “correctness” (Wittgenstein, 'Lessons on Aesthetics') of its proposition - and even a sense of “critical progress” (Isenberg). 


Finally, by approaching the problem of criticism in the broader context of philosophical commentary on the role of art in the public uses of reason and imagination, the idea is to claim a renewed role for art - and also criticism - in democratic life, particularly in a moment in which processes of subjectivisation seem to saturate the subject with stimuli that cannot be articulated stably in terms of an experience of meaning.