Sandra Guerreiro Dias  Objetos, jogos & magias: o que aconteceu, afinal, na “noite dos poetas” (1949)?


Numa das últimas entrevistas dadas em vida, Mário Cesariny recorda um dos momentos mais marcantes do grupo dissidente aquando da “1.ª Exposição dos Surrealistas” em 1949: a “noite dos poetas” (Nunes & Cesariny, 2006, p. 356). O “recital”, que consistiu numa leitura mais ou menos encenada de poemas, teve lugar num aposento de feições fantasmagóricas, forrado com panos: a sala de projeções Pathé-Baby, espécie de “casa inesperada” (Guerra, 1972) onde foi tirada a mais emblemática das fotos do antigrupo e que continua, ainda hoje, a circular, sem que do seu enquadramento, autoria ou depósito muito se saiba. A exposição, patente entre 18 de junho e 2 de julho de 1949 (e cujo epicentro terá sido, hipoteticamente, essa “noite dos poetas”), foi organizada um mês depois das célebres sessões do JUBA na Casa do Alentejo e nas quais o grupo dissidente afirmava publicamente, pela primeira vez, o seu afastamento do coletivo de António Pedro. Esta pode, assim, ser lida como extensão daquela primeira performance pública, complementada, desta forma, com a apresentação e confirmação, em atos e gestos criativos, das linhas de ação que o antigrupo propugnava.

Dos poucos dados que nos restam, sabe-se: que os poetas expuseram uma grande diversidade de obras – poemas visuais, objetos, esculturas, instalações de índole variada, entre elas, anuncia-se no cartaz, “magias”, “fantasmas”, “doenças desconhecidas”, entre outros –, e que, além da leitura de poemas, tiveram lugar, também, outras “tropelias” episódicas em jeito de provocação intencional do público. No resto, e dado que o momento não teve qualquer atenção da imprensa, pouco se sabe.

Esta escassez é, no entanto, inversamente proporcional à sua relevância, pelo que, nesta comunicação me proponho reler a “1.ª Exposição dos Surrealistas” e a “noite dos poetas” na sua amplitude, enquadramento e detalhes, integrando-se, nesta análise, alguns dados novos entretanto identificados. Procurarei, depois, sistematizar a relevância desta ação plural e coletiva em três domínios: como tomada de posição do antigrupo de Cesariny e Lisboa face às vanguardas anteriores; o seu lugar central na história da arte da performance e da poesia performativa portuguesas; o modo como esta atuação semi-improvisada, constitui, afinal, a afirmação programática de um conjunto de linhas de força que virão a definir a vanguarda surrealista, também nos   legados que deixou para a posteridade.


Sandra Guerreiro Dias. Nasceu em Beja. É licenciada em Estudos Portugueses, mestre pré-bolonha em Literatura e História e doutorada em Estudos Literários pela Universidade de Coimbra, com tese financiada pela FCT (2016). É Investigadora Integrada do Centro de Literatura Portuguesa da mesma universidade, no grupo “Mediação Digital e Materialidades da Literatura“, Investigadora Colaboradora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP), do grupo “Intermedialidades”, e do ICNova (Nova FCSH). Colabora, ainda, desde 2016, com o Arquivo Digital da Poesia Experimental Portuguesa (Universidade Fernando Pessoa – Porto). É professora adjunta convidada da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Beja, onde tem lecionado língua e literatura portuguesas. É membro da Red Internacional de Bibliotecas Lectoras (RIUL), da Electronic Literature Organization (ELO) e da Associação de Professores de Português (APP). Tem dedicado a sua investigação às relações entre literatura e outras artes. É autora da primeira monografia sobre poesia e performance em Portugal, intituladaO Corpo como Texto (2016). Integrou vários coletivos poéticos, realizando performances um pouco por todo o país, e, como poeta, tem publicado em diversas revistas e antologias de poesia experimental.