La Salette Loureiro A Sacralização dos Espaços e dos Objectos em Le Paysan de Paris, de Louis Aragon


O livro Le Paysan de Paris, de Louis Aragon (1897-1982), escrito entre 1923 e 1926 e publicado na íntegra em 1926, é composto por quatro textos:  «Préface à une mythologie moderne», «Le Passage de l’Opéra», «Le Sentiment de la Nature aux Buttes-Chaumont » e «Le Songe du paysan». 

O tema Paris, aqui também em transformação, remete obrigatoriamente para Baudelaire, mas também para Nerval, e vários outros escritores franceses. Podemos também associá-lo a Mário de Sá-Carneiro, que poucos anos antes se deixou fascinar pela capital francesa, que nas suas obras tratou como um corpo feminino. 

Como é sabido, Aragon é um membro destacado dos movimentos Dadaísta e Surrealista em França e a escrita deste livro surge nesse contexto. Na verdade, ela é contemporânea da publicação do Manifeste du Surréalisme, de André Breton, em 1924, que inclui Aragon no lote daqueles que “Ont fait acte de SURRÉALISME ABSOLU” (Breton, 1979: 38).

Este livro é, pois, um “acto surrealista”, tanto a nível temático, como a nível de técnicas utilizadas. Nele o próprio movimento é caracterizado e defendido, a começar pela exaltação da Imaginação, em detrimento da Razão, pela superioridade dos Sentidos sobre a Inteligência, pela defesa de um Homem integral e não apenas racional. Vários autores surrealistas, como Breton, aparecem no livro como personagens.

Como o próprio título indica, o espaço citadino assume no livro um papel principal, sendo a flânerie a principal ocupação do seu herói, Le Paysan. A tónica está por isso colocada na relação entre um sujeito (le Paysan) e um objecto, este último composto de lugares reais e vários objectos reais, que constituem “le vaste corps de Paris” (Aragon, 1997: 22).

Porém, esse contacto com o real recebe um tratamento surrealista, numa prática que vai da observação mais realista até à alucinação mais surreal, decorrendo esta, por vezes, de uma análise microscópica e/ou do trabalho da Imaginação.

De facto, esse real é frequentemente submetido a uma observação microscópica que o “deforma” e transforma em surreal, numa análise dos “drames bactériels”, em que, como o próprio herói informa, “le moindre objet que j'aperçois m'apparaît de proportions gigantesques, une carafe et un encrier me rappellent Notre-Dame et la Morgue” (Id.: 42). 

Por outro lado, figuras imaginárias e alegóricas irrompem frequentemente nesse real, onde assumem o primeiro plano, instituindo o onírico como predominante nesse universo.

Acresce que o sujeito narrador envolve o real de uma aura que decorre da sua atracção pelo Mistério e pelo equívoco e de uma erotização do espaço e dos objectos, factores que conduzem a uma sacralização dos mesmos e a um reencantamento do cosmos.

Trata-se daquilo que o herói chama “Métaphysique des lieux” (Id.: 19), que ele estende também aos objectos, e que se institui como uma busca, através da qual “Je ressentais vivement l'espoir de toucher à une serrure de l'univers” (Id. : 141).

Essa busca iniciática faz-se tanto na Passage de l’Opéra como no Parc Buttes Chaumont, dois microcosmos de Paris, e é dela que o Paysan pretende dar conta na sua escrita: "J'avais donc entrepris (...) d'exposer une imagination que j'avais du divin et des lieux où il se manifeste" (Id. : 224).

Estamos, pois, perante uma substituição do sagrado tradicional, religioso, por um novo sagrado, profano, muito próximo do humano e do seu quotidiano. Benjamin chamou-lhe “iluminação profana, de inspiração materialista e antropológica” (W. Benjamin, “Surrealismo”, 1929).

Este é constituído por uma nova mitologia, uma mitologia moderna que substitui a antiga, mas constitui-se também por uma nova visão do amor e do erotismo. Nesta mundividência, amor e erotismo fazem parte do sagrado, sendo o segundo assumido como parte integrante do ser humano. Através de “L’amour fou” e do erotismo, os surrealistas preconizam a revolução pelo Desejo (Camby, 1989: 208). 

Na Passage de l’Opéra, em vias de demolição, o erotismo e a morte estão em relação simétrica. Eros e Tanatos interagem  e digladiam-se nesse microcosmos.

Nesta comunicação pretendemos apresentar uma análise de todo esse processo em Le Paysan de Paris.



La Salette Loureiro é investigadora do CHAM, FCSH, Universidade Nova de Lisboa. Fez Licenciatura e Línguas e Literaturas Modernas, variante Português-Francês, na Universidade de Coimbra, e Mestrado em Literatura Comparada Portuguesa e Francesa, na Universidade Nova de Lisboa, onde iniciou Tese de Doutoramento sobre a obra de Nuno Bragança. Publicou A Cidade em Autores do Primeiro Modernismo. Pessoa, Almada e Sá-Carneiro  e vários artigos em livros e revistas literárias. Tem no prelo o livro de ensaios Nuno Bragança. Mudar a Vida, Transformar o Mundo. Participou em vários Congressos e Colóquios sobre diversos temas literários. As suas áreas de investigação são Modernismo e Vanguardas, o tema Cidade e espaço na Literatura, Literatura Portuguesa dos séculos XIX e XX, Literatura Comparada. Nos últimos anos dedicou uma atenção particular ao estudo da obra de Nuno Bragança. 

Em finais do século XIX assiste-se não só a um aumento de manifestos políticos  (inspirados pelo “Manifesto Comunista” de Marx e Engels), mas também à expansão  deste género do discurso do campo da política para o campo da arte. Com a publicação  de o “Manifesto Fundador do Futurismo” (1909) de Marinetti, o qual reinventou o género  do discurso “manifesto” e inspirou os demais manifestos dos movimentos europeus de  vanguarda do século XX (cf. Hanna, 2012: 52) dá-se a verdadeira expansão de uso do  género do discurso “manifesto”, o qual continua a ser utilizado num contexto político,  mas passa igualmente a ser utilizado num contexto artístico-literário. Com efeito, a partir da publicação de “O Manifesto do Futurismo”, vários grupos artísticos e literários  apropriam-se do género do discurso “manifesto”, assistindo-se à publicação de centenas  de manifestos vinculados a movimentos de vanguarda. Tal como defendem, entre outros,  Asholt e Fähnders, 1995, pp. xv, o género do discurso “manifesto” torna-se um dos  principais sustentáculos discursivos dos movimentos de vanguarda. 

Somigli (2003) argumenta que os artistas de vanguarda utilizaram os manifestos não só  para transmitir as suas ideias, mas igualmente para se legitimarem, ou seja, para  justificarem o seu papel e a sua importância numa sociedade que lhes atribuía pouco ou  nenhum valor. Através dos manifestos, os vanguardistas podiam apresentar ao público as  suas opiniões; clarificar a sua estética e a importância da mesma; e demarcar-se de outros  grupos e estéticas, aumentando a sua visibilidade enquanto criadores de arte. Daí que os  manifestos artísticos necessitem de chocar e de escandalizar os leitores, para poder  romper com a ideologia e a estética dominantes. 

O manifesto, um género performático por excelência, representa desde logo a própria luta  que pretende suster e enaltecer. O mesmo intervém no âmbito coletivo, desejando  envolver o público no seu projeto de revolução e transformação.  

A presente comunicação foca-se no género do discurso “manifesto”, da sua origem até ao  seu uso nas vanguardas artísticas do século XX, destacando as suas principais  caraterísticas culturais e linguísticas e enfatizando o seu papel fundamental no âmbito das  vanguardas artísticas. 

Nesta comunicação, objetiva-se responder às seguintes questões: 

1. Que caraterísticas linguísticas enformam a identidade do género do discurso  “manifesto”?  

2. Como pode este género do discurso ser definido?  

3. Qual a relação entre os temas e finalidades envolvidas e as caraterísticas do  género do discurso “manifesto”? 

4. Por que foi o manifesto o género do discurso de eleição das vanguardas  artísticas? 

Esta comunicação enquadra-se no âmbito da bolsa de doutoramento 2021.04523.BD,  desenvolvida com apoio financeiro da FCT e focada numa caraterização linguística do  género do discurso “manifesto” em Portugal.


Ana Sofia Souto. Mestre em Ciências da Linguagem e Licenciada em Estudos  Portugueses pela NOVA FCSH, onde foi agraciada com os prémios “Mérito e Excelência  Melhores Mestres” e “Mérito e Excelência Melhores Licenciados”. Representou Portugal  na XVI Edição do Programa “Jóvenes Líderes Iberoamericanos” em Madrid, Espanha.  Bolseira da FCT (ref.: 2021.04523.BD), é atualmente doutoranda em Linguística do  Texto e do Discurso na NOVA FCSH. No âmbito do Doutoramento, cofundou o Grupo  de Discussão “Entre Textos: Diálogos Transatlânticos em Linguística do Texto e do  Discurso”, que decorre desde março de 2021 e reúne regularmente Professores,  investigadores e estudantes em torno de questões textuais e discursivas.