Patrícia Fernandes Que literatura resta quando tudo é política?
Quando Richard Rorty distingue, em Contingência, Ironia e Solidariedade, entre os livros que remetem para a ironia privada e os livros que remetem para a solidariedade pública, está, apesar do seu ímpeto pragmatista, a revalorizar a clássica separação liberal entre esfera pública e esfera privada. De acordo com esta separação, especialmente descrita por Benjamin Constant no discurso que compara a liberdade dos antigos com a dos modernos, o domínio político consagra princípios que não se aplicam na esfera privada: aqui, o indivíduo tem o direito to be let alone e decidir como deve gozar os seus prazeres privados. Embora esta visão liberal seja ela mesma uma visão política, aquela separação parece garantir um espaço de liberdade para que a arte prossiga fins artísticos e a literatura prossiga fins literários. As coisas começam a mudar com a grande revolução política dos anos de 1960 e a consagração do princípio the personal is political, que se foi popularizando no Ocidente: defender que o pessoal é político destrói aquela separação e sujeita todas as dimensões da vida aos princípios políticos, esvaziando a possibilidade dos múltiplos prazeres e fins, nomeadamente de autonomia ou ironia privada. Argumentaremos que essa politização da vida constitui o princípio fundamental do espírito totalitário e destrói a literatura. A literatura exige a possibilidade de subversão, ou talvez consista mesmo no próprio espírito da subversão. O mesmo é dizer, como Philip Roth em Engano, “essa vossa suposta democracia da igualdade de direitos tem propósitos e objetivos que não são os meus como escritor”. E só mantendo a liberdade de tais propósitos e objetivos poderá existir Escritor e Literatura.
Patrícia Fernandes. Licenciada em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, e em Filosofia, pela Universidade do Minho, onde também prestou provas de doutoramento em Filosofia Social e Política. Lecionou na Universidade da Beira Interior e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É atualmente Professora Auxiliar Convidada na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho. É cronista regular no jornal Observador.