Diálogos
Muito além do Museu:
do acervo físico ao universo digital
Luís Roberto de Francisco
Marco Rafael Leite Ribeiro
Natan Coleta da Silva[1]
Ao completar dez anos de atuação, em 2017, o Museu da Música - Itu iniciou novo processo de divulgação de seu acervo musical através de gravações disponibilizadas no canal Youtube da própria instituição. Essa novidade, sugerida e aprimorada pelo colaborador Willian Roberto Mattei, potencializou enormemente o acesso ao patrimônio musical ituano. A solução veio ao encontro da demanda que os tempos atuais impõem através do universo midiático e das redes sociais: como fazer de um patrimônio imaterial algo vivo e presente na vida da sociedade, sobretudo dos jovens?
A tradição musical em Itu remonta trezentos anos, desde o período da colonização ibérica. No século XVII já havia compositores na Vila de Nossa Senhora Candelária de Outu-guaçu, algo incomum à maioria das localidades paulistas. E essa atuação cultural só se fortaleceu, ao longo dos séculos XVIII e XIX, tornando-se algo notável. Como consequência, formou-se um importante volume de registros em partituras que chegam até nós, algumas de nomes consagrados como o padre Jesuíno do Monte Carmelo e Elias Álvares Lobo. Podemos afirmar que o patrimônio musical é algo importante ao contexto histórico-cultural de Itu.
As partituras originais dos compositores formam, por assim dizer, o coração do Museu da Música - Itu; manter vivas essas obras e as tradições agregadas a elas é algo vital à instituição. O reconhecimento do acervo como reflexo de um saber fazer, linguagem artística e patrimônio cultural para a comunidade e para outras comunidades fez com que o Museu reunisse esses documentos musicais e promovesse a sua ligação com a sociedade, através de concertos ou participação em eventos.
Ao criar o Museu da Música - Itu, em 2007, manteve-se uma prática já iniciada pelo Coral Vozes de Itu, em 1995, a transcrição de partituras do acervo[2] . Transcrever é o primeiro passo para trazer à vida um novo repertório. Assim teve início o projeto Archivum, do latim “arquivo” criado pelo Museu para preservar, restaurar e reapresentar o repertório de músicas sob a sua custódia. O acervo de partituras é composto por conjuntos documentais de compositores, instrumentistas e instituições e é de expressiva relevância para a música brasileira, remontando quase duzentos anos de história, com obras datadas desde a década de 1830. Através do projeto Archivum, o Museu se propõe a quantificar os acervos já doados ou sob sua guarda permanente, higienizar folha a folha, organizar os documentos dentro dos padrões internacionais de arquivologia, acondicionar os fundos e coleções e inventariá-los em um catálogo das obras. Desta forma permite a pesquisa e divulgação do material. Há cerca de cinquenta coleções de partituras e dez mil documentos catalogados e preservados.
O desafio, porém, permanece: interagir com o mundo fora do território do Museu.
Quando, em 2014, o Instituto Cultural de Itu[3] criou o Núcleo Cultural da Folia do Divino Espírito Santo de Itu, para reviver outra cultura popular bicentenária, foram transcritas pelo Museu as partituras das Jaculatórias do Divino Espírito Santo, de Elias Álvares Lobo, compostas em 1898.[4] São partituras de música sacra, ou seja, feitas para a Igreja, e em contexto devocional para a reza, que acontecia no final da tarde, com sermão e bênção. Essa música dava um colorido devocional ao evento, com letra em língua portuguesa. A jaculatória é uma oração curta, que vai a Deus como um jato, rapidamente, daí seu nome.
A tradicional Folia do Divino Espírito Santo, prática paulista de devoção popular à terceira pessoa da Santíssima Trindade, já havia sido alvo do Museu da Música quando da exposição “A Moda da Viola” em cartaz durante os anos de 2013 e 2015.[5] Nesse período milhares de alunos de escolas públicas e estudantes de cursos superiores de História, Pedagogia e Turismo vivenciaram elementos da vida rural paulista através da música. A Folia é uma atividade comum em todo o Brasil, assumindo características próprias de acordo com a cultura e geografia do território regional.
Vale lembrar que o conceito de território se estende também ao universo cultural, ou seja, assume uma identificação com o espaço através de apropriação simbólica, podendo ser construído ou desconstruído em escala temporal. Em outras palavras, uma tradição, passada de geração a geração, assume a forma do tempo em que está contextualizada, passível, porém de alteração, mesmo mantendo a sua essência.
Itu, nos cinquenta dias após a Páscoa, de acordo com o calendário católico, passa a ser o território do Império do Divino, lembrado semana a semana desde a Oitava da Páscoa, nos pousos realizados em casas de famílias[6]. O desfile, ou cortejo do Divino, acontece no domingo da Ascensão do Senhor, uma semana antes de Pentecostes. O Alferes conduz a Bandeira, simbolizando o Espírito Santo, acompanhado dos violeiros, do bumbo e dos fiéis, percorrendo as ruas centrais da cidade, pousando em sete casas, contemplando os dons do Divino. O pouso é uma referência ao pouso da pomba branca, símbolo da paz, símbolo do Divino. O casario recebe decoração em vermelho e branco, cores da festa. Após a cantoria, orações e agradecimentos, o Divino segue, pousando em outros locais.
Essa tradição em Itu remonta ao século XVIII, e foi registrada pelo artista Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra (1812 - 1875), em duas aquarelas (1840) e em crônica do historiador Francisco Nardy Filho (1879 - 1959), em meados do século XX. [7]
Usando a Folia do Divino como exemplo, o sociólogo Octávio Ianni, no livro “Uma Cidade Antiga”, afirma que a religião, a língua, a música, as festas são manifestações culturais que mostram uma “interdependência recíproca entre as camadas sociais”;[8] no caso da Folia, o popular e o erudito, se é que existe uma real distinção entre um e outro, se cruzam, as camadas sociais se cruzam em torno da fé ao Divino Espírito Santo. Esse cruzamento de linguagens também se realiza no encontro entre repertórios musicais. A cantoria ao Divino, adaptada da festa tradicional de Tietê (SP) dialoga com o repertório da música sacra no Cortejo do Divino, quando o Coral Vozes de Itu participa com as Jaculatórias do Divino, de Elias Álvares Lobo. Elas são cantadas com acompanhamento de harmonium nos sete pousos visitados pela Bandeira.
Acerca da união entre festa popular e repertório erudito em Itu, a historiadora Profa. Dra. Marly Therezinha Germano Perecin, em discurso realizado à porta do Museu da Música - Itu, antes da realização do Pouso e Cortejo, em 28 de maio de 2017 assim relaciona o Vozes de Itu à cantoria das violas caipiras: “Estamos no Império e é bom que se entenda que o império consiste da capela votiva, o altar e todo o cortejo. Isto é o que ficou dos séculos vividos pelas tradições do Divino. Desde o século XIII isto se faz: o império, o cortejo, a musicaria e vejo que se acrescentou um detalhe novo (...), o coro. Isto nos leva direto à dramaturgia de Sófocles, na Grécia, onde o coro replicava as graças e as benesses de uma alegria muito grande. A festa do Divino é uma festa de alegria. Só o evangelista Lucas contou o que aconteceu depois da tragédia do Calvário e mostra que ao suceder houve um momento em que os apóstolos sentiram as línguas de fogo sobre as cabeças e passaram a falar em todas as línguas pregando a universalidade do Cristianismo. Então o coro celebra justamente esta última parte que é a celebração da festa da alegria (...).”[9]
Em tempos de trabalho remoto, os museus e diversas outras instituições culturais e educacionais precisaram se reinventar. Mais do que isso, pensar no futuro diante das possiblidades com as tecnologias digitais, levando em consideração o perfil dos novos pesquisadores e visitantes de Museus e a demanda por recursos tecnológicos. Desde 2017 o Museu da Música já contava com o QR code como complemento de acesso ao repertório musical, em salas de sua exposição de longa duração. A divulgação dos trabalhos e exposições também já se fazia pelas redes sociais, como Facebook, Instagram, canal YouTube e sítio eletrônico da instituição.
Através do endereço www.museudamusicaitu.com.br, é possível acessar vídeos de apresentações musicais do acervo e de alguns Diálogos realizados. Com a vigência do Plano São Paulo, entre 2020 e 2021 e o fechamento temporário dos museus e outros espaços culturais, vieram também as exposições virtuais. É outra maneira de o público conhecer o acervo e as temáticas abordadas pelo Museu da Música.
As apresentações musicais, também disponíveis em vídeos, significam a realização efetiva do patrimônio musical. Em última análise elas revelam a consagração da partitura digitalizada, não só porque expandem o acervo para o universo digital, mas também porque a sua incalculável divulgação torna a reprodução da informação quase infinita.
Desta forma é possível ampliar o Patrimônio Digital. Esse termo novo, dos tempos atuais, refere-se a tudo aquilo que já nasceu digital ou se tornou digital. É a tendência para o futuro. O conceito de documento como fonte histórica ou patrimônio, está mais ligado ao conteúdo que está sendo analisado do que ao formato e suporte dele.
Diante da questão mencionada, os historiadores Aldair Rodrigues e Elton Genari, no artigo “Patrimônio Digital e Memória na Internet”, afirmam que os documentos digitais ou digitalizados desprendem-se de seus suportes materiais e passam pelo processo de desterritorialização, ou seja, saem do território.[10] Uma exposição, neste caso, atravessa fronteiras. Desta forma, o território cultural mencionado é exibido para outros lugares, outros públicos. Uma exposição sobre a Folia do Divino, uma música cantada na Folia ou a própria Folia se desterritorializa e chega a locais outrora inatingíveis, ou de difícil acesso físico.
A ideia de desterritorializar um patrimônio pode ser associada também ao contexto musical. Quando o compositor escreve uma peça, acaba por registrá-la no papel. A ideia musical se territorializa na partitura. Quando o intérprete a executa, ou seja, lê, canta ou toca, acaba por desterritorializá-la do papel porque está recriando-a através do que foi registrado pelo compositor.
O Maestro Eleazar de Carvalho, regente e compositor brasileiro, que atuou em Itu entre os anos 1992 e 1995, afirmava que cada concerto é uma recriação da obra musical.[11] Neste sentido, a interpretação é uma desterritorialização, afinal a obra deixa o território do papel e ganha o território da cultura. O patrimônio musical é algo que está imanente, um “quase patrimônio”; mesmo que transcrito, precisa ser executado. Torna-se um patrimônio real quando ganha um novo universo que é a apresentação, seja em cerimônia religiosa ou concerto. Quando acontece a gravação, e esta é ouvida em outros lugares, pelos meios digitais que o Museu da Música tem se apropriado nos últimos anos, o conceito de desterritorialização é enormemente ampliado.
Desta forma o Museu da Música - Itu contribui com a sociedade atual, ampliando as ferramentas da educação e possibilitando acesso a um repertório local único e desconhecido. Mesmo não reconhecido por toda a comunidade, trata-se de um patrimônio porque representa a vida cultural e as manifestações artísticas de gerações passadas e mantém viva a ideia e o sentimento de ancestralidade entre nós. Por isso deve ser amplamente divulgado.
Notas
[1] Os autores são educadores no Museu da Música - Itu.
[2] O Coral Vozes de Itu é um grupo estável de canto coral, fundado em 1965 e mantido pela Associação Cultural Vozes de Itu. Quando completou trinta anos de existência, o grupo resolveu também abraçar a divulgação de acervo musical dos compositores de Itu como uma de suas metas de trabalho.
[3]O Instituto Cultural de Itu é uma associação cultural sem fins lucrativos fundada em 1999 que tem por objetivo o fomento da cultura local sem ligação com o poder público. Criou em 2007 o Museu da Música - Itu, em 2014, a Schola Cantorum de Itu e uma parceria com a Igreja do Bom Jesus para manter a Biblioteca Histórica Padre Luiz D’Elboux. Desde junho de 2015 mantém o Núcleo Cultural da Folia do Divino Espírito Santo de Itu.
[4] Elias Lobo nasceu em Itu e morreu em São Paulo. Viveu em sua terra natal até os 43 anos. Estudou música com Francisco Manoel da Silva, no Rio de Janeiro, onde apresentou “A Noite de São João”, primeira ópera brasileira em língua portuguesa e com caráter nacional. Ele introduz nessa ópera um instrumento popular, a viola caipira. Viveu também em Itatiba, Campinas e São Paulo, cidades em que foi professor, regente e compositor.
[5] A festa de Pentecostes, tradicional em Portugal desde o século XIII, ganhou proporções notáveis no Brasil. Geralmente invocam-se os sete dons do Espírito Santo: Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade e Temor de Deus.
[6] A Folia foi interrompida, em 2020, por força da pandemia de Covid-19. Geralmente o grupo da Folia, composto por homens cantores e instrumentistas de viola de dez cordas e percussão canta louvações ao Divino; o Alferes conduz a reza, faz pedidos ao Divino, os moradores e seus convidados dão nós nas fitas colocadas junto à Bandeira. Cada nó é um pedido de dons ao Espírito Santo. Serve-se um lanche, como sinal de celebração festiva enquanto a Folia canta modas de viola tradicionais. A Bandeira permanece, esse tempo todo, junto a um pequeno altar na casa, vela acesa, como um oratório doméstico provisório. É um dia de muita festividade para a família.
[7] As aquarelas citadas foram pintadas por Miguel Dutra em 1840 e fazem parte da coleção do Museu Republicano Convenção de Itu da Universidade de São Paulo. A crônica de Francisco Nardy Filho a que se faz referência foi publicada à página 214 do volume III da obra A cidade de Itu.
[8] IANNI, Octávio. Op. cit, p. 85.
[9] Depoimento registrado em vídeo por Fernanda Lourenço Gestinari de Francisco.
[10] RODRIGUES, Aldair et. Alii. Op. cit. p. 165-168.
[11] Eleazar de Carvalho (1912 - 1996) criou em Itu, em 1993 o Festival de Artes de Itu que contou com quatro edições sob sua direção cultural. Em diversos eventos e aulas era comum que repetisse a afirmação sobre a recriação da obra musical quando tocada em concerto.
Referência bibliográfica
FERNANDES, Stanley Levi Nazareno. Um território a muitas vozes: tocautoria e outras práticas violonísticas contemporâneas na América Latina. Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação em música da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Música, Belo Horizonte, 2014. Disponível em um_territ_rio_a_muitas_vozes.pdf, consulta em 10 de maio de 2021.
FRANCISCO, Luís Roberto de. Elias Álvares Lobo, um momento na música brasileira. Itu: Ed. Ottoni, 2001.
IANNI, Octávio. Uma Cidade Antiga. 2.ed. Campinas: Área de Publicações/Unicamp, 1996
NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu, crônicas históricas. São Paulo: 1950.
RODRIGUES, Aldair; GENARI; Elton. Patrimônio Digital e Memória da Internet. In: CARVALHO, Aline; MENEGUELLO, Aline. Dicionário Temático de Patrimônio: debates contemporâneos. Unicamp, 2020.
Diálogos 2020
"Miguel Dutra um compositor ituano"