10 de maio de 2019
Você já se perguntou se um dia algum planeta pode sair de órbita e acabar com a configuração do sistema solar? As leis físicas que “prendem” a terra em sua órbita elíptica em torno do sol são inabaláveis? Essas perguntas já permearam os trabalhos de astrônomos, físicos e matemáticos durante centenas de anos. A palavra chave para entender esse tipo de comportamento, é caos.
Talvez você já tenha ouvido falar, em obras de ficção, sobre o famoso "efeito borboleta": o bater de asas de uma borboleta num continente pode causar uma série de efeitos que resulta num furacão em outro continente. Esta ideia, apesar de melodramática, reflete o conceito matemático de caos na teoria dos sistemas dinâmicos.
Primeiramente, o que é um sistema dinâmico? É o estudo da evolução de uma lei de movimento em um espaço conforme o tempo vai passando. A área foi desenvolvida pensando em sistemas que descrevem posição e velocidade de corpos do espaço, por exemplo, os planetas, mas pode ser aplicado mais geralmente. Outro exemplo é o que descreve a quantidade de indivíduos de cada espécie num sistema de predador e presa. Há aplicações de sistemas dinâmicos em física, biologia, economia, epidemiologia, etc.
Em termos matemáticos, dizemos que um ponto em um sistema dinâmico é caótico se olhando para outro ponto próximo, os dois podem fazer caminhos completamente diferentes. Em contrapartida, dizemos que um ponto é estável se para qualquer ponto bem próximo, seus caminhos sempre ficam próximos. Imagine um pêndulo: a posição de repouso para baixo é estável, se você deslocar um pouquinho o pêndulo e soltá-lo com velocidade nula, ele vai ficar balançando bem próximo da posição de repouso. Mas a posição de repouso para cima é instável, pois ao deslocar um pouco o pêndulo e soltá-lo com velocidade nula, ele vai balançar em quase todo o arco, ficando bem longe da posição de repouso. Você pode simular o movimento do pêndulo no site de simulações da Universidade do Colorado em Boulder.
Mas então, o sistema solar é estável? Neste caso, a ideia de estabilidade é aplicada à órbita periódica dos planetas: uma pequena perturbação do sistema --- isto é, uma pequena perturbação na posição ou velocidade de um ou mais planetas --- faz com que estas órbitas continuem periódicas? Se não, este caos faria com que, eventualmente, um planeta se chocasse com outro, se chocasse com o sol ou “escapasse” do sistema solar? Isso seria uma perspectiva assustadora. Bom, na verdade o sistema solar é caótico. Mas simulações mostram que num intervalo de tempo igual a existência do próprio sistema solar, este continuará “no lugar”, então não temos com o que nos preocupar.
Para entender melhor a questão da estabilidade do sistema solar, consulte o projeto Prisma de divulgação científica do Centro de Física Teórica e Computacional da Universidade de Lisboa, em particular a seção Caos no Sistema Solar.
Desde o século XVII, graças ao trabalho do alemão Johannes Kepler, sabia-se que as órbitas dos planetas eram elípticas e era possível calculá-las. Mas esta órbita elíptica, de acordo com a lei da gravitação de Isaac Newton, só vale para a interação de dois corpos celestes. O efeito gravitacional de um terceiro corpo poderia afetar, mesmo que levemente, este movimento.
Então, se passou a modelar o movimento de três corpos celestes ---- modelo conhecido como problema dos três corpos ---, isto é, dadas suas massas, posições e velocidades iniciais, gostaria-se de calcular suas trajetórias. Uma generalização desse problema é o problema dos n corpos. Dada a dificuldade de solucionar matematicamente este problema, se estuda o problema dos três corpos restrito, que trata do movimento de um corpo de massa desprezível em torno de outros dois (por exemplo, a Lua em torno da Terra e do Sol, ou a terra em torno do Sol e de Júpiter).
Até o fim do século XIX, procurava-se soluções analíticas para o problema dos n corpos, isto é, uma função matemática explícita que satisfizesse o sistema gravitacional, mesmo sabendo que para n ≥ 3 o problema é altamente complexo. Para exemplificar este pensamento determinista da época veja uma citação do matemático, astrônomo e físico francês Pierre-Simon Laplace.
“Devemos considerar o estado presente do Universo como o efeito de seu estado anterior e como a causa do que vai se seguir. Uma inteligência que, em um dado instante, conhecesse todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem, e, além disso, fosse suficientemente ampla para submeter todos esses dados à análise, compreenderia na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e aqueles do mais leve átomo; nada lhe seria incerto, e o futuro bem como o passado estariam presentes em seus olhos.” - Laplace, 1814
A mudança de paradigma se deu quando o matemático francês Henri Poincaré foi premiado em uma competição internacional promovida em 1887 pelo rei da Suécia, Oscar II, com um trabalho que foi publicado na revista Acta Mathematica. O problema original proposto na competição foi o problema dos n corpos, mas Poincaré mostrou que, apesar de não ser possível obter uma solução analítica, era possível estudar propriedades das soluções do problema dos três corpos restrito, e que ele era estável. Este artigo, no entanto, continha um erro.
Depois de enviar o trabalho para o concurso e este ter sido impresso na edição da revista Acta Mathematica em 1889, Poincaré descobriu o erro. Ele então desembolsou um valor acima daquele que recebera como prêmio (o prêmio foi 2500 coroas suecas, e ele gastou 3500) para reimprimir uma edição da revista sem seu artigo. No ano seguinte, ele conseguiu corrigir o erro, mostrou na verdade que as soluções do problema dos três corpos restrito são instáveis, e seu artigo finalmente saiu na mesma revista. Em 1892, Poincaré publicou o livro Les méthodes nouvelles de la mécanique céleste (Novos métodos de mecânica celeste, tradução livre). Para saber mais sobre a história deste concurso, confira a seção “The Competition” do artigo Oscar II's Prize Competition and the Error in Poincaré's Memoir on the Three Body Problem (Prêmio de Oscar II e o Erro no artigo de Poincaré sobre o Problema dos Três Corpos, tradução livre) de June Barrow-Green.
Com seu trabalho, Poincaré mudou totalmente o modo de trabalhar matematicamente com a dinâmica dos planetas: ao invés de resolver sistemas de equações, ele se preocupou em estudar propriedades mais abstratas que descreviam características importantes do sistema, como existência de pontos fixos (pontos de equilíbrio), suas propriedades, órbitas periódicas, etc.
Toda essa história é o início da área de sistemas dinâmicos, a qual contou posteriormente com a contribuição de inúmeros matemáticos de diversas nacionalidades. Para saber mais, você pode conferir a série-documentário animada Chaos, que conta com 9 episódios de 13 minutos legendados e dublados em diversos idiomas.
No entanto, existe um outro tipo de estabilidade, que veio a ser estudada posteriormente na área de sistemas dinâmicos. O matemático estadunidense Stephen Smale foi professor visitante no IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) no Rio de Janeiro. Nos anos 60, ao caminhar nas praias de Copacabana, Smale desenvolveu o seguinte modelo matemático, que chamou de horseshoe (do inglês, ferradura): pegue um quadrado, estique ele na horizontal, amasse na vertical e entorte como uma ferradura. Podemos estudar o que acontece com o sistema quando aplicamos essa função várias vezes “para o futuro” ou “para o passado” (isto é, a inversa dessa função), conforme a figura abaixo.
A ferradura de Smale pode parecer um modelo ingênuo e totalmente desconectado de qualquer utilidade prática, mas ela possui uma propriedade muito importante para a matemática aplicada, que é a estabilidade estrutural. Isso significa, no caso da ferradura, que se eu achatar ou esticar mais ou menos numa direção, as propriedades matemáticas do sistema continuam as mesmas, ele terá o mesmo tipo de comportamento, as mesmas órbitas, etc. Mais precisamente, um modelo dinâmico é estruturalmente estável se uma mudança bem pequena em seus parâmetros não muda seu comportamento.
Então quando falamos simplesmente de caos ou estabilidade, estamos falando, para um sistema fixo, sobre o comportamento dos seus pontos com relação a pontos próximos. Quando falamos de caos ou estabilidade estrutural, estamos falando do comportamento do sistema com relação a sistemas “próximos”.
Este tipo de estabilidade é importante para aplicações: se um sistema epidemiológico é modelado por uma função f, o erro de um parâmetro experimental pode nos fazer trabalhar com uma função g próxima à f; se seus comportamentos não são os mesmos, o modelo não é muito útil.
O conceito de estabilidade estrutural foi introduzido nos anos 30 por Aleksandr Andronov e Lev Pontryagin, e eles mostraram que em duas dimensões, isto é, no plano, “a maioria” dos sistemas tinham essa propriedade. Então, em meados do século XX, os matemáticos queriam provar que a maioria dos sistema dinâmicos em qualquer dimensão teria essa propriedade de ser estruturalmente estável. Isso seria maravilhoso se fosse verdade, mas não é.
Foi assim que se desenvolveu a teoria da dinâmica hiperbólica. Smale percebeu que sua ferradura possuia essa propriedade de ser estruturalmente estável. Juntamente com o matemático brasileiro Jacob Palis Júnior, eles conjecturaram que um sistema seria estruturalmente estável se tivesse essa propriedade de “contrair numa direção e esticar em outra” e também a propriedade de que essas direções “se cruzam transversalmente”. Esta conjectura foi demonstrada nos anos 80 pelo matemático uruguaio Ricardo Mañé, que foi aluno de Palis.
Desde então, a área da dinâmica hiperbólica veio crescendo com a contribuição de inúmeros matemáticos e com resultados importantes para além da pergunta original de “quais sistemas são estruturalmente estáveis”. Uma parte da matemática brasileira se desenvolveu fortemente desde Jacob Palis a partir da dinâmica hiperbólica, o que culminou recentemente na premiação do brasileiro Artur Avila com a Medalha Fields, um prêmio internacional para matemáticos de menos de 40 anos cujo trabalho possui grande destaque.
As ilustrações deste texto foram feitas usando o software livre Inkscape.