Prosas e Versos

quem canta seus males espanta

por Júlia Costa


o cheiro desses dias vem inebriando o que restou da sanidade inventada. amêndoas, jasmim e um pouco de vinho para tentar enganar o verão do meu corpo. é outono e nem todas as janelas abertas poderiam refrear. nem todos os pelos, remendos e saudades poderiam evitar. o vento sopra, imperioso, e não produz qualquer ruído – ao menos nenhum que se possa escutar. ouço, por outro lado, os tiros lá fora e questiono a validade deste coração que pulsa forte, descabido: pelo fumo, pelo tédio, por não entender a tua vasta alegoria. penso na partilha dos códigos que propicia as omissões. penso no apelo feito na mesa de bar sendo traído doravante. penso que não tenho emprego nem nome; que aqui não é ainda o meu lugar. como se apagasse um incêndio, corto os cabelos e as unhas. como se ressuscitasse meu pai, finjo que nada mais existe. ao morder a maçã sem muita fome, caio enternecida pela coincidência que me beija e resgata o verdadeiro misticismo. procurando exaustivamente esvaziar de sentido a insônia, como se fossem possíveis as nuvens carregadas de sol, esfarelo as lembranças e não entendo mais os jogos de faz de conta. nesse tempo, impedida de descer a montanha, encaro a morte e ela não me tira pra dançar. é insuportável constatar que escolho viver e a vida é, tantas vezes, pranto. como se a autofagia me libertasse, como todas as peles de todos os dedos e mancho o lençol de sangue. afogo cada naco de mágoa em porções intensas de um groove há muito esquecido. pertenço ao tempo desses homens que me guiam pela mais indecente faceta da memória e concluo que, hoje, Itamar é quem salva. nem as filhas. nem os sinceros arrependimentos. movimento a maior parte dos ossos e músculos para que o suor expulse tudo. nem assim. o sangue vaza também – pelos olhos. a vela que a mãe acende todos os dias pra Iemanjá provavelmente já me livrou de algumas. o vento parece me despir de toda a resistência projetada em direção ao seu carinho. de lá pra cá, cem anos. e toda a náusea de fazer o que é preciso. e todos os poros abertos convidando a poeira. quero ceder mil vezes para dar cabo desse silencioso revide. finalmente joguei fora a barata que passou dias bem no meio do meu quarto. presentemente, sou a maior de todas a hipócritas.


Literatura de viagem

por Cristiane Lopes

Nada que já foi escrito e publicado e resenhado e criticado e teorizado nos preparou para o transcorrer dos dias de hoje. Nenhum livro sagrado, nenhum filósofo conceituado, nenhum códice. Não adianta escavar o Egito, mergulhar procurando os segredos de Atlântida, reler Dumas, Tolkien ou usar lupa tentando ver as entrelinhas dos poemas de Machado. Seremos nós que faremos o registro de percurso desse século - com partituras, pinturas, esculturas, rabiscos, protestos ou coreografias pagãs e tribais. Nas cores e nos gêneros que quisermos. Somos livres do julgo da opinião alheia que esmagou as gerações passadas, honremos o que nos trouxe até aqui - autores, cientistas, antepassados e o caminho das pedras que eles nos deixaram, por onde devemos trilhar sem medo e apreciando o calor em cada raio de sol. Se nos exaurimos e a tristeza ameaçar comer nossos ossos, sempre teremos Pasárgada e nossa amizade com a Rainha Viúva para estarmos - seguindo todas as recomendações sanitárias - com a pessoa que escolhermos nos albergues mais charmosos do reino.


Ilustração: Vladimir Kush - “Book Of Books”

A incrível máquina de fazer escritores

por Camila Dió


É curioso que, apesar de toda a parafernália tecnológica de que dispomos na contemporaneidade, como celulares e computadores, a máquina de escrever ainda seja a icônica ferramenta de trabalho do escritor. Como se houvesse algo mágico no aparelho para além do – TEC, TEC, TEC, TEC. PIM! O que me faz lembrar do dia em que ouvi uma orquestra tocando a surpreendente peça musical The Typewriter, do compositor Leroy Anderson, em que a simpática máquina datilográfica é utilizada como um dos instrumentos.

A verdade é que o aparato é dotado de uma poética nostálgica. É como se junto dele viesse a persona de escritor consagrado de brinde. Como uma roupa que cai muito bem com determinados sapatos. Algo semelhante acontece com aquelas boinas vermelhas que fazem as pessoas parecerem artistas, pintores.

Bom, tenho o tal mecanismo. E ele mal funciona, mas é dotado de um carisma incrível: não há pessoa que passe por ele ileso, sem querer mexer ou parar para admirá-lo. O adquiri em uma fase da vida em que sequer sonhava ser escritora. E vivo prometendo a todos que contarei sobre esse peculiar encontro. Está aí o que vocês tanto queriam: uma história, pois bem.

Tudo começou com uma dor de cabeça persistente. O que tem a ver um sintoma físico com tal aparato mecânico?

Bom, acontece que decidi fazer acupuntura para dar conta do problema. Hã? Chego lá.

Na cidade em que eu moro havia um local financiado com dinheiro público que oferecia esse serviço, entre outras especialidades. A localidade da casa era de origem um tanto duvidosa, embora a profissional que me atendia fosse muito boa.

Explico:

A construção dividia o lote com uma espécie de desmanche de eletroeletrônicos que, apesar de tudo, recebia todo tipo de engenhoca e mecanismos das mais variadas épocas. Era meio sujo e uma bagunça total: todo tipo de coisa desmontada ou inteira, mas certamente abandonada e espalhada por todos os cantos. Objetos cheios de história. Um lugar que, a meu ver, era ao mesmo tempo fascinante e estranho.

Próximo ao local em que eu aguardava o atendimento da minha sessão, sentadinha, estava bem à minha esquerda uma geladeira velha e, em cima dela, a máquina que hoje reside na primeira prateleira da estante situada na sala da minha casa.

Todo dia eu precisava esperar um pouco e ficava namorando o tal aparelho. Uma Olivetti Línea 98 pesadona e muito charmosa.

De quando em quando, caminhava até ela meio tímida e apertava uma tecla ou outra só para ouvir o som.

Isso seguiu por dias. Até que um senhor que trabalhava lá, muito observador, num desses meus impulsos de apreciar o aparelho, se aproximou de supetão – e eu me assustei como uma criança sendo pega em flagrante fazendo coisa errada – e disse que viu que todos os dias eu me aproximava do mecanismo e ficava ali numa contemplação verdadeiramente interessada (claro, ele não utilizou essas palavras, mas foi algo do tipo).

Me perguntou se eu não queria a tal máquina e que me venderia baratinho. Queria R$50,00 reais nela. Topei sem pensar duas vezes, embora mal soubesse o que fazer com o objeto e em como levá-lo para casa, já que pesa tanto e eu voltava de ônibus. Aconteceu de o moço ter que sair para resolver alguns assuntos perto lá de casa, que era um bocadinho longe do local, então ele se ofereceu para me dar carona. Dividi o carro com quatro marmanjos de bem com vida que vestiam macacões cinzentos e sujos de poeira. Todos muito falantes e eu quieta ouvindo as prosas com um sorrisinho de contentamento estampando o rosto.

Cheguei em casa feliz da vida:

- Olha mãe! Comprei uma máquina de escrever, ela emperra, mas funciona; é só dar um jeitinho, passar um pouco de óleo e tal.

Minha querida mãe, já acostumada com os meus rompantes, apenas me perguntou o que eu iria fazer com aquilo. E eu disse – escrever, é claro!

Não sabia bem o quê. Mas a máquina meio que me inspirou e depois daquilo não parei mais de produzir. Não no aparelho, pois até hoje, uns 7 anos depois, ainda não dei o tal jeitinho.

Hoje estava procurando no google alguém que consertasse a bendita. Pois tenho um carinho especial por ela.

Afirmo: as máquinas datilográficas podem não ser mágicas, conferindo aos escritores mentes afiadas e dedos ligeiros. Mas, como a minha, podem inspirar uma jovem sem muita direção na vida a tomar as rédeas da escrita e a se dedicar de corpo e alma a isso. É de fato um tipo de personificação de inesgotável poesia.



Plástico Bolha

por Malu Gomes


Na próxima aurora, quando a lua der lugar ao sol; quando briluz (como em Jaguadarte), eu não vou mais embrulhar o meu subjetivo em papéis de presente daqueles verdes-virgens. Sabe assim? Enfeitados, com um laço (quase nó), estranhamente desproporcional e gigantão (pura fachada), decidi que, daqui pra lá, envolvo em plástico bolha. É isso mesmo, evita amarrotar, pode transitar com brutalidade, ir e vir pisando duro, por dias morosos como este, e ainda assim, o meu mais íntimo permanecerá intacto. Quanto mais frágil e sensível for a parte embalada do subjetivo, mais plástico bolha eu vou precisar, tá bem, eu já sei. Essa não é a cura. Mas enquanto a cura não dá de cara comigo, entrego-me ao paliativo, película, band-aid, plástico bolha.


Ilustração de @jurellcayetano

Explêndida Complexidade

Marcos Chueri


Posso chorar sem escorrer uma lágrima⁣

O que não sai do meu olho transborda na carne ⁣

Carne essa que se confunde com olhos⁣

Digo que ambos trocaram de lugar⁣

É tanta coisa que vejo ⁣

Coisas essas que machucam ⁣

Que é como se meus olhos as tivessem tocado através da visão⁣

Penso se os sentidos realmente são objetivos⁣

Ou fomos nós que os demos valores errados ⁣

Tem gente que mente com olho ⁣

Tem gente que prova com o corpo⁣

E tem gente que escuta com o coração⁣

Seguindo esse raciocínio⁣

Sobe logo um alívio ⁣

De que se a vida não tem sentido⁣

Posso continuar a chorar ⁣

Do jeito que achar devido.⁣


Ilustração de @izwelethu.machepha

Moço

por Ingrid Oliveira


Moço, te peço licença ⁣

Eu só quero um canto,⁣

Não por achar que é o que mereço ⁣

Mas por saber que somos lar⁣

E gostamos de viajar.⁣

Quero saber de você ⁣

Enquanto dentro somos nós ⁣

Por fim, ⁣

Quero com você ficar a sós ⁣

Com você dentro ⁣

E ser te⁣

Profundo. ⁣

Não demora, ⁣

Mas quando chegar, ⁣

Façamos nós a nossa própria hora.⁣

Vem, ⁣

Te mostro o caminho⁣

Desculpa te deixar sem chão ⁣

A intenção era deixar sem ar. ⁣

Moço, que horas você vem?⁣

Eu que esperei tanto⁣

E mesmo assim caminho como quem tem o tempo em suas mãos ⁣

Anseio pela sua chegada. ⁣

E quando chegar, ⁣

Façamos um trato⁣

Eu e você, ⁣

Deixa a hora pra lá.⁣

Moço, ouça bem⁣

Eu não estou pedindo pra você ficar⁣

Mas eu sou do clube das intensas sabe? ⁣

(Estou de convidando a queimar)⁣

Eu quero saber de você,⁣

Foi uma boa criança?⁣

Sua mãe deve ter alertado você sobre o fogo⁣

“É melhor não brincar”


Ilustração de @gank_pansuay

Carta aos meus abusadores

Anônimo

Bom dia como vocês estão? Como é viver na plenitude da ignorância,que forma uma muralha para separar vocês da culpa?A minha culpa por sinal está comigo por todos esses dias, minha fiel escudeira. Quando eu desmorono, ela sempre está lá para me lembrar nos mínimos detalhes sobre o que aconteceu. Os dias que vocês me violaram são dias que para mim não terminaram, eles são vividos a cada crise, a cada momento de desespero. Eles se repetem, várias e várias vezes e em todas as vezes eu estou novamente naquele lugar, sentindo aquele medo, vivendo aquele momento de desconforto e dor. Doeu muito e dói muito até hoje. Vocês provavelmente se esqueceram ou provavelmente possuem as melhores desculpas: ela é louca, ela não disse não, ela era minha, eu achei que ela queria. E essas frases foram repetidas tantas vezes internamente por mim que em algum tempo vivi como se elas fossem verdade. Dizem que nosso corpo sempre batalha para nós manter vivos e talvez essa foi a maneira do meu organismo me manter viva, negando o que aconteceu, colocando panos quentes nas histórias. Porém hoje a guerra já foi declarada e meu senso de justiça extremante aguçado me diz que eu não posso seguir com essa culpa, eu não mereço segurar essa culpa. Ela não é minha. Ela é de vocês. Vocês tiraram de mim o brilho, eu não me reconheço, eu não me olho no espelho por mais de cinco minutos, eu procuro ser outra pessoa realizando infinitos procedimentos estéticos por que eu odeio essa carcaça (que chamam de corpo) que estou presa e talvez eu consiga despistar essa culpa que carrego de ser eu e sentir menos ódio da minha existência. Mas a culpa não é minha. Eu insisto: ela é de vocês. Minha história diz muito pouco sobre mim é muito sobre vocês. Quando eu estava inconsciente, mesmo estando em um relacionamento sério,eu não queria que você encostasse em mim e me machucasse.Quando eu disse não várias vezes, quando eu chorei e tremi no carro por que não queria entrar no motel, não era charme eu não queria. Quando nesse mesmo dia eu implorei pelo preservativo, mas me foi negado por que ninguém transa com uma virgem de camisinha, eu não queria. Caso haja alguma dúvida: EU NÃO QUERIA. Eu não queria esses momentos na minha história, eu não queria lembrar de cada detalhe desses dias, eu não queria sentir nojo de ser quem eu sou. Eu não queria. Eu não queria sentir medo de ser tocada (por qualquer pessoa independente do tipo de relacionamento). Eu queira conseguir abraçar quem eu amo. Eu queria dar colo para as pessoas que eu amo. Eu tenho fobia de contato, por mais amor que eu sinta por alguém eu não consigo chegar perto sem que um pânico me invada. E isso é só uma migalha do que vocês tiraram de mim.


Ilustração de @izerechezz


No sofá

por Malu Gomes


a casualidade não inibiu as marcas ⁣

(literalmente) ⁣

não durou, mas seu olhar me transpassou de forma rara ⁣

foi quase um entrelaço de retinas ⁣

e até hoje eu sei decorado⁣

a cor e formato inconfundíveis⁣

de seus olhos transpassados


leu com as mãos;⁣

tocou com os olhos ⁣

não durou, mas trouxe paz e tirou o fôlego.


Ilustração: Daniel Jaen


Marcas

por L.C



Cigarros queimados, drinks inacabados, marcas de batom no copo... ⁣

Marcas que deixou quando se foi. ⁣Chegou como a lua em dias de inverno. Rápida, cálida, linda. Em seu vestido vermelho quase promíscuo, atraente sem ser vulgar. Suas curvas à mostra, não havia como não evitar meu olhar. Tão rápido quanto os nossos encontros de corpos.⁣

Uníssono, intenso, verdadeiro. Como se nos conhecêssemos de outras vidas, outros bares, outras camas, mas mesmas almas.⁣

E ao acordar, nem sei ainda seu nome. Me deparo com a alvorada entre as cortinas, minhas retinas ainda te procuram. Mas não achei nada, além de suas marcas...


Devaneio

por Wemerson Gomes



E eu, que inventei⁣

ventanias⁣

nas noites insossas⁣

de solidão⁣

E entre delírios e devires⁣

descobri no lapso do mundo⁣

o real oculto na escuridão⁣

(sublimada toda pulsão;⁣

perdida toda vergonha)⁣

E o devaneio não me⁣

atinge mais:⁣

eu, o devaneio!⁣



Ilustração: Obra: "Michele" 2019 VBradleyStudio⁣