As Nascentes dos Sonhos
Francesco Alberoni
BERTRAND EDITORA
Número de páginas 233
A ansiedade, a incerteza e o sentimento de culpa estão a crescer cada vez mais. Em simultâneo, surge também a necessidade de retomarmos valores e encontrarmos raízes e o desejo de viver em comunidades sólidas, elevadas e respeitadas. Estas necessidades serão cada vez mais flagrantes no próximo decénio.
Como detectar os sintomas que as anunciam? Como estudá-los? Como interpretá-los?
Neste seu novo livro, Francesco Alberoni apresenta-nos o resultado de vários anos de observação, de análise, de reflexão, partindo à procura das origens do sonho, dos desejos e das paixões que regem as nossas acções, que dão um sentido à nossa existência e que nos indicam o caminho a seguir.
Caracterizado por um estilo incisivo e por uma narrativa directa, rica em factos e personagens, As Nascentes dos Sonhos é um livro que assinalará a nossa entrada no novo milénio. Também os anteriores best-sellers de Francesco Alberoni contribuíram para alterar o modo como milhões de leitores de todo o Mundo percepcionam e vivem o enamoramento, o amor, a amizade, o sentimento moral, a espiritualidade e, de uma maneira geral, as relações com o outro.
Um livro que nos ajudará a tirar partido das nossas experiências, a fazer uma releitura positiva da vida presente, para enfrentar o futuro com mais confiança.
Francesco Alberoni tornou-se conhecido em todo o mundo com a sua teoria do estado nascente, dos movimentos colectivos do enamoramento e do amor. Aos livros mais divulgados — Enamoramento e Amor, A Amizade e O Erotismo —, juntou-se Valores, uma reflexão filosófica de que O Optimismo constitui, na opinião do Autor, a aplicação prática. Amo-te é um dos trabalhos mais claros, mais estimulantes e, ao mesmo tempo, mais profundos sobre a paixão e o amor.
Alberoni — cuja vasta obra a Bertrand Editora tem divulgado entre os leitores portugueses - é professor de sociologia na Universidade IULM de Milão. Há vários anos que mantém uma colaboração regular no «Corriere della Sera». A maior parte das centenas de artigos, publicados neste respeitado órgão da imprensa italiana, «trata — segundo o sociólogo — dos temas da nossa vida quotidiana, privada e profissional; dos nossos vícios, das nossas virtudes, das nossas relações connosco próprios e com os outros; da criatividade e do sucesso».
Francesco Alberoni
As Nascentes dos Sonhos
Tradução de Jorge Valente
BERTRAND EDITORA
Título original: LE SORGENTI DEI SOGNI
Autor: Francesco Alberoni
© 2000, by Francesco Alberoni, published in Italy by R.C.S. Libri
Todos os direitos para a edição desta obra em língua portuguesa reservados por Bertrand Editora, Lda.
Fotocomposição: Espaço 2 Gráfico
Impressão e Acabamento: Poliprinter
ISBN 972-25-1165-3
Depósito Legal nº 157 443/00
Acabou de imprimir-se em Outubro de 2000
NOTA DO TRADUTOR
O tradutor procurou manter, sempre que possível, o estilo incisivo do autor, caracterizado por uma escrita objectiva, clara, directa e franca na narração dos factos ou na exposição das suas ideias, sem que isso constituísse qualquer tipo de embaraço na leitura da obra ou fosse desprestigiante para a Língua Portuguesa.
As notas de tradução que aparecem ao longo da obra visam, sobretudo, contextualizar o leitor num universo que não é especialmente seu, ou então, ajudar a esclarecer pontos que, de outro modo, poderiam passar despercebidos ao leitor comum, factos estes que, de algum modo, facilitam a sua leitura.
As obras a que o autor faz referência ao longo do livro, quando não são de autores italianos, são, regra geral, traduções italianas das obras originais.
* ÍNDICE
FOLHAS DE DIÁRIO
Sonhos ensanguentados ............ 17
Psicanálise ...................... 21
Ordem e desordem ...................... 23
ESTUDO O QUE NINGUÉM ESTUDA
Emigrações ...................... 27
O Vedetismo ...................... 31
Publicidade ...................... 35
O bem-estar ...................... 37
Os consumos ...................... 39
Consumos e transformação social ............ 41
UM CONTINENTE INEXPLORADO
O grande ciclo colectivo ............ 47
A chegada dos movimentos juvenis ............ 49
Enamoramento ...................... 51
O Maio de 68 ...................... 55
O estado nascente ...................... 61
A experiência de Trento ...................... 65
Outono quente e movimento sindical ...................... 69
AMARGURA E INCERTEZA
Fim de uma aventura ...................... 73
Prever o futuro ...................... 75
Incompreensão ...................... 77
A EXPLORAÇÃO DO NOVO CONTINENTE
Movimento e instituição ...................... 81
A solidariedade precisa de um inimigo? ............ 85
Estado nascente e nirvana ...................... 91
Não há nada mais prático do que uma boa teoria ............ 93
O que é a instituição? ...................... 97
A descoberta de um novo planeta ...................... 101
A VIRAGEM
A derrota das Brigadas Vermelhas ...................... 107
A mudança de época dos movimentos religiosos ............ 109
VIAGEM PELO AMOR E PELOS SENTIMENTOS
Uma linguagem para o amor ...................... 115
A amizade ...................... 119
Erotismo ...................... 121
VIAGEM PELA MORAL
A nascente da moral ...................... 127
Política e moral ...................... 131
Mimese ...................... 133
Inveja ...................... 137
Inveja e política ...................... 141
PRESSÁGIOS
O chefe carismático ...................... 147
Movimentos e civilizações ...................... 149
A civilização Anglo-Saxónica ...................... 155
O fim da URSS e as suas consequências ............ 159
A Pantera ...................... 163
O vazio deixado pelo comunismo soviético ............ 165
O marxismo está morto? ...................... 169
MOVIMENTOS DOS ANOS NOVENTA
Tensões ...................... 175
Os novos movimentos ...................... 179
Forza Itália ...................... 181
Equívocos e enganos ...................... 185
Movimentos e criação musical ...................... 189
NO TERRITÓRIO DO SACRO
Sacro e profano ...................... 193
Ciência e moral ...................... 197
Deus, a natureza e o mal ...................... 201
Tempo parado ...................... 205
Budismo e Esoterismo ...................... 209
Islão ...................... 213
ÚLTIMOS ESTUDOS SOBRE O AMOR
Amo-te ...................... 217
Amizade e primeiro amor ...................... 219
Sobre a sedução ...................... 223
Espontaneidade e hábito ...................... 227
Permanecer apaixonado ...................... 231
Uma poesia diz:
Estudei os sonhos dos homens porque deles nascem as grandes paixões.
Escutei os leves sinais, os murmúrios da história que anunciam devastadores furacões.
Ouvi os corações que conhecem a verdade primeiro que a mente.
Mas vós, como quereis conhecer o futuro se não sabeis ler o presente?
E como posso mostrar-vos a estrada se não percorrestes comigo o meu próprio caminho?
FOLHAS de diário
SONHOS ENSANGUENTADOS
Pavia, Março de 1948.
Estudo medicina em Pavia. É Primavera. Uma Primavera incandescente. Estamos a aproximar-nos do dia da votação que acontecerá a 18 de Abril de 1948.
Ontem estive na Piazza Grande e ouvi um discurso do Campesino. Pronunciava frases em espanhol, a que logo depois fazia seguir a tradução em italiano. Um método extremamente eficaz porque os conceitos escondidos no límpido castelhano, saíam reforçados em italiano e ficavam martelados na mente.
O Campesino é um velho comunista, um herói da guerra civil espanhola. Contudo, aqui falava a favor da Democracia Cristã. Dizia ter estado na Rússia e ter constatado em pessoa que no país do comunismo os camponeses e os operários são escravos. As pessoas ouviam-no avidamente. Queriam ouvir dizer aquilo em que no seu coração já acreditavam.
Interrogava-me por meio de que terríveis adversidades, de que terríveis desilusões, este comunista chegara ao ponto de fazer propaganda precisamente pelos padres que, em tempos, tinha odiado e massacrado. E pensava na cólera, no ódio mortal que os seus companheiros de partido deviam sentir.
A campanha eleitoral está a ser conduzida por ambas as partes com extrema violência. Compreendo que cada uma delas jogue uma cartada decisiva. Reflicto com amargura e digo a mim mesmo: mais uma vez estou rodeado pelo ódio político. Mais uma vez estou cercado de pessoas que se chocam com base em certezas absolutas e pergunto-me se é só esta a forma de nós, seres humanos, podermos acreditar em alguma coisa, se é somente confrontando-se com um outro, se é apenas contrapondo fanatismo a fanatismo.
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Vem-me à cabeça aquilo que eu sentia em criança. Naquela altura havia o fascismo. À minha volta só existiam certezas. A rádio transmitia certezas: os discursos, as canções, tudo convidava a amar a pátria, o Duce(1), o rei. Uma atmosfera eufórica e dogmática. Depois a guerra, os bombardeamentos, o desembarque na Sicília, a queda do regime, a desagregação, a guerra civil. E as gentes cheias de ódio e de medo.
Percebo agora que por detrás da política, por detrás da autoridade, por detrás do Estado, por detrás das instituições, por detrás de tudo quanto existe de mais sólido, honesto e nobre, alojam-se a força e o medo. Percebo que as instituições são ideologia congelada, são sonhos ensanguentados, e que a ideologia é sempre ameaça de morte.
A minha infância foi passada entre paixões aos ódios e aos amores colectivos. Furacões que arrastam o indivíduo como se fosse um galho. Um galho que se sente livre, forte, e que em vez disso é apenas um ramo seco impelido pelo vento.
Vêm-me à cabeça os fascistas quando cantavam: «Às armas, somos fascistas! Terror dos comunistas!» E alguns anos depois: «As mulheres já não nos amam». Sabiam que tinham perdido. Que coisa os impelia para a luta e para a morte?
A guerra acabara quando chegou a notícia dos campos de extermínio de Hitler - não me admirei! A violência da guerra, o ódio que tinha penetrado em tudo, tinham-me preparado também para isto. Contudo, havia pessoas que não acreditavam nisso. Diziam: «Trata-se de propaganda».
Não me surpreendi nem mesmo quando soube que até o comunismo soviético levou a cabo processos falsos, massacres, extermínio de massas. Contou-mo o meu amigo Sérgio Moro, cujo pai, um comunista do arsenale, conhece - não sei de que forma - os acontecimentos secretos do mundo soviético. Em Itália quase ninguém sabia nada, ou então não queria sabê-lo. Milhões de pessoas continuam a ver no comunismo e na União Soviética a esperança da humanidade.
Hoje estou convicto de que as pessoas sabiam muito bem quanta violência havia na ideologia em que acreditavam, mas fingiam não o saber.
1. Título outorgado a Benito Mussolini e pelo qual era conhecido. Significa dirigente, chefe, guia, comandante.
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As pessoas denunciam os adversários e absolvem os que lhes são queridos. Cada um chora só os seus próprios mortos. Os mortos dos outros caem-lhes bem, originam regozijo.
O que sabiam os alemães do nazismo? Nada? Não o creio. Claro que estavam em poder de uma potência colectiva terrível que arrasta e cega. Mas também quiseram acreditar nisso. Um mecanismo mental assustador. O mesmo fizeram e estão a fazer os comunistas estalinistas.
No entanto, a mesma ideologia perversa, cruel, que se autojusti-fica da forma mais hipócrita, cria também entusiasmo, arrebatamento, amor, dedicação. Quanta vontade de acreditar, quanta vontade de se auto-enganar! Mas também quanta força, quanto heroísmo nos alemães, nos kamikazes japoneses, nos comunistas russos!
Estas forças monstruosas são indispensáveis para o desenrolar da história? São elas, exactamente elas, as potências constitutivas das igrejas, dos regimes? Sem estes sonhos, sem a sua capacidade de arrastar os seres humanos, sem aquela potência diabólica, não surgiria nada porque os homens não saberiam acreditar, sacrificar-se?
Na vida sossegada, onde um ritmo ligeiro marca o compasso dos dias, estes mecanismos profundos estão apenas ocultos, disfarçados, mas continuam a existir na nossa mente. E um dia o equilíbrio pode quebrar-se de novo. Então, vemos reaparecer a violência política sobre a qual é constituída cada instituição e de que é penetrado cada gesto, cada acção, cada pensamento. A história emerge desta energia violenta que me causa medo.
Os meus coetâneos vivem todos no âmbito de alguma ideologia. E estão satisfeitos, tranquilos, sentem-se bons, nobres, sem dúvidas. Acreditam que o mal e a violência são o produto da intervenção de um malvado qualquer. Eliminado este, o mal será arrancado do seu seio. Para sempre.
Eu sei que não é verdade.
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PSICANÁLISE
Pavia, Janeiro de 1951.
Não continuei a colocar-me este tipo de perguntas. Não tinha instrumentos para responder-lhes. Em seguida deparei-me com a psicanálise.
Devo agradecer a Virginio Silva por ter-ma ensinado. Estranho destino. Este placentino (nt), durante a prisão, tinha sido assistente de um psicanalista inglês. Tinha lido muitos livros, as Obras Completas de Freud, algumas obras de Abraham e de Melanie Klein. Chegado a Itália, tratou de obtê-los e assim também eu pude lê-los todos. Em seguida chegaram as primeiras traduções italianas. De Paris, uma amiga minha, Hélène Rizzi, enviou-me durante anos as últimas novidades.
O meu início na psicanálise criou-me alguns aborrecimentos. O titular da cátedra de Neuropsiquiatria, Berlucchi, tinha-me mandado chamar para me perguntar se eu queria começar imediatamente a tese com ele. Eu estava no segundo ano de medicina. Propôs-me como tema: «Os delírios na melancolia».
Desta forma passei dois Verões inteiros no hospital psiquiátrico de Piacenza a conversar com os melancólicos. Aprendi a reconhecer um depressivo pelo olhar, um esquizofrénico pelos gestos. Compreendi então que o delírio dos melancólicos é uma auto-repreensão monótona por uma culpa insignificante. Mas cometi o erro de escrever um relatório utilizando a psicanálise de Abraham, e Berlucchi obrigou-me a escolher entre a psicanálise e o seu instituto. Escolhi a psicanálise. Comecei a fazê-la sozinho.
nt. Natural ou habitante da cidade italiana de Piacenza (Placência) situada no Oeste da região Emilia-Romagna.
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Depois dei a mim mesmo a satisfação de fazer a primeira conferência de psicanálise na Universidade de Pavia, no meu Colégio, aos vinte e um anos, com a conivência do Reitor Plinio Fraccaro. Estavam lá muitos estudantes e professores. Estavam todos interessados e aplaudiram calorosamente.
Por que razão me atrai a psicanálise? Porque permite curar. Hoje em dia a psiquiatria é uma ciência puramente descritiva. Sentes-te impotente. Com a psicanálise não. Explica os comportamentos misteriosos, irracionais. As angústias, as ansiedades persecutórias, os delírios e talvez também o fanatismo ideológico. Com o instinto de morte e de vida explica igualmente a nossa agressividade, o nosso ódio. E, explicando-os, permite-nos controlá-los.
Dado que a psicanálise é para nós quase desconhecida, acho-me na posse de um instrumento cognitivo dos outros desconhecido. Com ele posso aventurar-me por um terreno onde ninguém ousa andar, revelando os mistérios, desfazendo cada feitiço.
Dou-me conta de que a psicanálise não é só o instrumento com o qual procuro afirmar-me no meu meio. Ela é também o meu mecanismo de defesa perante o medo das paixões e da irracionalidade. Uso-a como escudo para me manter distante do fascínio perigoso da ideologia, da política, da justiça, do bem e do mal.
Quem cura os seres humanos não pode fazer mal, digo a mim mesmo.
E depois há a atitude científica, destacada, avaliadora, que olha para as dimensões do espírito com a mesma distância dos processos naturais. Não é isso mesmo um modo de controlar a angústia ligada à violência da vida? De uma coisa estou certo. Permite-me caminhar à beira do abismo, dando-me a impressão de poder dominar forças que, pelo contrário, intimamente sei que são mais fortes do que eu.
Será esta a razão por que escolhi a faculdade de medicina?
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ORDEM E DESORDEM
Milão, Dezembro de 1958.
O presidente da Sociedade de Psicanálise, Cesare Musatti, explicou-me que para me tornar psicanalista não devo ler mais nada de psicanálise, não me devo ocupar mais de psicologia, mas sim ser médico municipal para ganhar o dinheiro necessário para pagar cinco anos de análise didáctica, mais três de catamnese. Se tudo correr bem, aos trinta e quatro anos, serei admitido na Sociedade dos Psicanalistas.
Considero-o um programa inaceitável. Sairei de lá ignorante e com o cérebro drogado. Recusei com grande dor. Fiz um pedido à Comissão Fulbright (nt) "para ir para os EUA. E, no entretanto, pedi uma audiência ao reitor da Universidade Católica, Padre Gemelli. Recebeu-me e imediatamente prometeu-me uma bolsa de estudo.
Também o Padre Gemelli não via com bons olhos a psicanálise. Em compensação tem um estupendo laboratório de psicologia onde fui acolhido de braços abertos.
Para ficar o mais possível longe do mundo das paixões, pus-me a estudar a probabilidade subjectiva. Um território inexplorado. Quero identificar as operações mentais do caso e da probabilidade.
Faço as minhas pesquisas com bolinhas de argila, vermelhas e azuis, daquelas que usam as crianças e a que nós chamávamos «bilas». Pego numa caixa e meto-lhe dentro dez bolinhas vermelhas e dez azuis. Depois começo a tirá-las. Com um truque, porém, substituo a caixa e posso fazer sair as bolinhas da cor que me apetecer. Se faço sair
NT. A Comissão Cultural Fulbright dispõe de um programa formulado por James William Fulbright, em 1946, que permite o intercâmbio cultural de professores e estudantes entre a Europa e os EUA, concedendo bolsas de estudo.
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sequências demasiado ordenadas, por exemplo dez bolinhas todas vermelhas, as pessoas começam a pressentir a aldrabice e, ao chegar às vinte, estão disso seguras. Querem ver dentro da caixa. Num casino a dúvida surgiria muito mais tarde. Só depois de vermos sair vermelho durante toda a noite é que pensamos que a roleta está viciada ou avariada.
Consideremos agora o caso de uma mãe que tem dois filhos. Ela habituou-os a adormecerem à mesma hora e a comerem a horas certas. Um dia chega-lhe a casa um casal de hóspedes com dois filhos. Estes hóspedes, porém, estão habituados a ficar levantados até tarde. Em pouco tempo, as crianças perdem o ritmo da alimentação e do sono. Ela corre de um lado para o outro, cada vez mais atarefada, cada vez mais aflita. Para complicar, inunda-se-lhe a cozinha e os circuitos eléctricos rebentam. Nesse momento, compreende imediatamente que já não consegue controlar a desordem crescente. Os hóspedes têm de ir embora.
Neste exemplo, partimos da ordem, depois aumentámos gradualmente a desordem, a entropia, até ao ponto em que, superado um certo começo, a desordem mostra-se intolerável. Então, restruturamos o campo, procuramos uma nova ordem.
A ambivalência descrita por Freud não pode ser considerada uma forma de desordem? Amo e odeio, quero duas coisas em contradição, oscilo entre pólos diferentes. Fico também cada vez mais duvidoso, tenso, neurótico. E se esta desordem aumenta, como aumenta a desordem das minhas bolinhas vermelhas e azuis, o que sucede? Ou enlouqueço, ou então invento uma outra solução que me dê certezas. Por exemplo: vou ao psicanalista.
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ESTUDO O QUE NINGUÉM ESTUDA.
EMIGRAÇÕES
Bari, Outubro de 1959.
Sou assistente do Padre Gemelli. No outro dia a sociedade Bassetti pediu-lhe uma pesquisa motivacional sobre o enxoval da noiva e a roupa branca. Ele passou-me a incumbência e eu percorri toda a península italiana para observar como se comportam as pessoas. Primeiro fui ao Sul, depois ao Centro e ao Norte para procurar compreender o que significam a roupa branca e o enxoval.
No Sul, o enxoval está ainda muito difundido. Conforme o rendimento, o enxoval é de «vinte peças», «trinta peças», até «sessenta peças»(NT). Isto é, com sessenta pares de lençóis, fronhas, toalhas de rosto, toalhas e guardanapos, camisas de noite! Mas, ao falar com as jovens mulheres do campo, descubro que estão cada vez menos interessadas nestas coisas. Muitas delas sonham com a cidade e já não querem casar com um camponês. Assim, por mero acaso, percebi as razões das migrações internas. Fui ao Sul para ver como usam um bem de consumo e descubro a chave para compreender o fenómeno da deslocação de milhões de pessoas do Sul para o Norte de Itália, do campo para a cidade.
Os meus colegas sociólogos escrevem que os sulistas vão para o Norte «à procura de fortuna» e que estão cheios de saudades das suas terrinhas, aonde sonham voltar um dia. Dizem que os imigrantes em Milão constituíram a Little Italy, tal como o fizeram nos Estados Unidos.
NT. No texto original aparece escrito: a panna venti, a panna trenta, fino a panna sessanta. A expressão a panna..., oriunda do Sul da Itália, aparece escrita entre aspas e não tem uma tradução adequada em português, podendo, na opinião do tradutor, arranjar-se-lhe um equivalente que torne clara a ideia. Assim se fez.
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Não é verdade! Enganam-se porque não observam os comportamentos dos imigrantes, não lhes perguntam aquilo que sonham para o seu futuro e para o futuro dos seus próprios filhos. Aplicam às migrações internas aquilo que leram sobre a emigração transoceânica do final do século XIX.
Para compreender o que leva hoje os camponeses a deixarem o campo e a irem para a cidade deveriam vir aqui, ao campo meridional, interrogar os jovens, sobretudo as raparigas, como eu fiz, falando do seu enxoval.
As raparigas disseram-me, sem meias palavras, que não querem casar com um camponês. Querem ir morar para a cidade, com um marido que seja operário e que leve para casa um salário fixo. Acrescentaram que querem uma casa com frigorífico, água canalizada, luz eléctrica e um chão a que possam dar cera. Não se vão embora porque morrem de fome, mas sim porque querem viver no mundo moderno. Querem casas com conforto. Querem o bem-estar para si e para os próprios filhos.
Não é verdade que os emigrantes partam cheios de saudades da aldeola natal. Não é verdade que pensem em voltar o mais cedo possível, quando tiverem feito fortuna. Não se vão embora para fazer fortuna! Isto acontecia com os emigrantes que se dirigiam para a América. Aqueles que cantavam: «Partam os cargueiros...»
Mas quem se desloca hoje, especialmente as raparigas, não tem saudades nenhumas, ou melhor, não quer mais voltar atrás. Sonha ir-se embora para sempre. Sonha em morar numa bela casa em Milão, em Roma ou em Turim, em mandar os filhos à escola, em dar-lhes uma vida diferente da sua e sobretudo diferente daquela que os seus próprios pais levaram. Diferente da vida da própria mãe. Não existem saudades, há sim sonhos e esperança no coração. E pouca roupa há a meter na mala. A roupa é para comprar na cidade em que irá viver, ano após ano, seguindo a moda. Por isso, quando chegam a Milão, não se reúnem entre eles, não formam as Little Bari ou as Little Lecce. Desejam integrar-se, tornar-se milaneses. Socializaram-se em antecipação. Isto é, prepararam-se mentalmente para entrar na sociedade em que iriam viver. Assim, descubro que as migrações internas diferem das europeias ou das intercontinentais precisamente porque existe esta socialização antecipatória.
Também os hebreus que foram para Israel devem ter tido este tipo de socialização porque deslocavam-se na direcção de uma meta desejada,
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para construir uma vida previamente imaginada, previamente projectada como permanente.
Ao contrário, os emigrantes italianos que iam para os Estados Unidos pensavam em voltar. Depois sucedeu o inverso: renunciaram aos seus projectos, decidiram ficar, tornar-se americanos. Talvez porque se encontravam bem, os filhos tinham-se integrado e a Europa estava demasiado longe. Os EUA nasceram assim, das pessoas que, a um certo ponto, fizeram uma escolha. Tornaram-se americanos da mesma forma que se entra num partido, numa Igreja.
Os emigrantes italianos na Suíça, na França, tiveram, ao contrário daqueles, a possibilidade de voltar à própria terra nas férias e pelo Natal. Apenas alguns de entre eles integraram-se, assemelharam-se, tornaram-se franceses ou suíços. Quem emigra para países vizinhos não rompe totalmente os laços com o seu próprio passado.
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O VEDETISMO
Milão, Março de 1960.
O novo reitor da Universidade Católica arranjou-me um financiamento da UNESCO para uma pesquisa e eu tive a ideia de estudar o vedetismo. Quem são aqueles a que nós chamamos vedetas?
Edgar Morin escreveu um livro belíssimo, As Stars, onde analisou a atracção e a adoração do público pelos actores de cinema. Hoje, porém, as pessoas também demonstram sentimentos análogos a respeito das personalidades televisivas, e até mesmo de algumas figuras célebres da vida real, como a princesa Margarida de Inglaterra ou a Imperatriz Soraya, a mulher do Xá.
Não se trata apenas de admiração. As pessoas estão interessadas na sua vida privada, nas suas vicissitudes humanas, nos seus amores, nas traições, nos sofrimentos. As vedetas são por isso personalidades admiradas, amadas, mas são igualmente objecto da bisbilhotice colectiva. Este comportamento gera o sucesso de muitos jornais, de muitas revistas ilustradas, desde a Oggi à Grand Hotel.
A bisbilhotice é o meio através do qual uma sociedade controla e discute a vida privada das personalidades importantes da própria comunidade. Numa aldeia a bisbilhotice dirá respeito à filha do farmacêutico que faz amor com o moço do leiteiro. Numa comunidade de milhões de pessoas, na era dos mass media, fala-se daqueles que são conhecidos de todos: as vedetas.
Mas que diferença existe entre vedetas e políticos? Para que se entenda, no caso de Itália, que diferença há entre Marcello Mastroianni, Gina Lollobrigida e Palmiro Togliatti ou Alcide De Gasperi? A diferença fundamental é esta: Togliatti e De Gasperi são amados somente pelos seus seguidores, pela gente dos seus partidos, e odiados pelos outros.
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As vedetas, pelo contrário, são amadas por todos, independentemente do alinhamento político. Pertencem a uma zona franca, não politizada. Por isso não podem ocupar posições formais no sistema do poder político. É por esta razão que as vedetas constituem a elite sem poder.
Dado que estão longe do sistema institucional e político, também as regras morais com que as vedetas são julgadas são muito permissivas. Um ministro em funções pode cair por causa de um escândalo sexual, como aconteceu com o ministro inglês Profumo. Entre os actores podem existir aventuras, amantes, que não serão abandonados pelos seus fãs. O público fala muito, mas depois desculpa-lhes tudo. As vedetas estão a meio caminho entre o mundo dos sonhos e a vida real.
Foi a estudar o vedetismo que eu comecei a compreender qual a diferença existente entre a vedeta e o chefe carismático. A vedeta é uma figura amada e admirada, contudo, cada um dos seus fãs ama-a separadamente dos outros admiradores, e poderia amá-la mesmo que os outros fãs não existissem. Os seus fãs não se sentem minimamente irmãos ou companheiros. Não formam uma colectividade solidária, um partido, uma seita, uma igreja, de que a vedeta é a guia. Pelo contrário, isto é exactamente o que acontece ao chefe carismático. O chefe carismático é a expressão de um «nós», a expressão de uma colectividade. É a concretização, a encarnação das exigências, dos sonhos, dos valores de uma colectividade num dado momento histórico. Por esta razão, ele é o centro ético dos seus seguidores, é o guia e, por isso, a sua conduta deve ser exemplar.
Esta observação põe em causa a teoria do chefe e do grupo que Freud expôs nos seus livros Totem e Tabu e Moisés e o Monoteísmo. Uma teoria que, para mim, psicanalista ortodoxo, era evangelho.
Nas sociedades tribais a formação do grupo, segundo Freud, dá-se porque os irmãos se identificam com o pai, que é o chefe da tribo. Estando identificados com ele, tornam-se semelhantes, identificam-se entre eles e, por isso, constituem um grupo coeso e duradouro. No caso da Bíblia, Moisés é o guia do povo hebraico no Êxodo do Egipto. Simbolicamente é o pai que os conduz na direcção da terra prometida. E os hebreus, identificando-se cada um com Moisés, identificam-se também entre eles, sentem-se irmãos.
Mas o vedetismo mostra-nos também que os fãs estão todos identificados com a vedeta, no entanto, não se identificam entre eles e não
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formam um grupo. Para formar um grupo não basta, portanto, haver identificação com uma mesma pessoa. Os fãs da vedeta constituem um agregado, não um grupo.
O grupo, com o seu chefe carismático, é qualquer coisa de radicalmente diferente. Nele, os membros identificam-se com o chefe e uns com os outros. Mas não só, pois sentem-se também parte da mesma entidade colectiva que os abrange a todos. É apenas enquanto são membros da mesma colectividade que se sentem irmãos. O chefe carismático representa e simboliza esta colectividade, fala em seu nome.
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PUBLICIDADE
Milão, Outubro de 1960.
Uma empresa de electrodomésticos pede-me para fazer uma pesquisa. Querem introduzir no mercado italiano a máquina de lavar, mas debatem-se com este dilema: é oportuno meter já à venda a máquina de lavar automática? Ou é melhor começar com a semiautomática? Receiam que a dona de casa rejeite a automática por a tecnologia e a modernidade a poderem assustar.
Aceito a pesquisa. Quase todas as mulheres entrevistadas respondem que é melhor a semiautomática. Temem que a máquina de lavar automática, deixada a funcionar sozinha, destrua os tecidos, rasgando-os.
Eu não estou convicto das motivações que me repetem com tanta veemência. Assim, mudo de táctica. Voltei a fazer a amostra. Às novas entrevistadas mostro-lhes a máquina automática em funcionamento e explico-lhes que, usando-a, terão mais tempo para dedicar à família. Só depois lhes pergunto qual é que prefeririam como presente. Todas escolhem a automática.
Por que razão as primeiras mulheres entrevistadas a teriam recusado? Lavar é cansativo, quem sabe quantas vezes quiseram mandar tudo para o diabo e ir passear com as amigas. Resistiam à mudança repentina por medo de parecerem mandrionas, mães pouco sérias. Eu mostrava precisamente aquela máquina que destruía o seu papel indispensável na família, mas que lhes concretizava as fantasias de evasão mantidas em segredo e com cuidado. Fantasias perigosas. Por isso me diziam que a máquina teria rasgado, danificado os tecidos. Projectavam na máquina de lavar a agressividade que experimentavam para com os pedidos cansativos da família.
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Se a publicidade quer destruir este tipo de resistência, em vez de mostrar a economia do cansaço e o divertimento tão sonhado, deve mostrar à mulher que pode utilizar o tempo economizado para seguir com mais atenção a família, os filhos, o marido.
É este o grande mecanismo usado na publicidade para introduzir novos costumes, novos hábitos de consumo! Ela defende que o novo bem de consumo ajuda a concretizar melhor os valores tradicionais.
Contrariamente ao que todos pensam, a publicidade não difunde valores novos. Introduz novos modelos de comportamento, indicando, inclusive, que servem para realizar alegremente os antigos valores. Deste modo, pode mudar completamente uma tradição, ao pretender reforçá-la.
Pensemos no Natal. O Natal, observa o publicitário, não é a festa do amor e da fraternidade? Claro que é. Por isso qual é a melhor ocasião para dar presentes, para gastar o mais possível em presentes? E o Natal não é a festa da família? E então porquê negar aos próprios filhos umas férias na montanha, talvez mesmo a esquiar? No final, o Natal revela-se completamente degenerado, mas a publicidade só incitou aos valores tradicionais.
Esta ideia explica também o optimismo que permeia a publicidade. A publicidade é optimista e animadora. Produz um estado eufórico, obstinado, porque, como a mania, usa o mecanismo da negação. Nega o perigo, nega a agressividade, nega a ânsia. É precisamente por isto que não pode representar situações tristes, fatigantes, angustiantes.
Porém, a propaganda política procede exactamente de forma oposta. O sistema político é do tipo conflitual. A propaganda política tem como instrumento central o ataque, a crítica do adversário. Por isso o acusa de cada malvadez, aproveitando ainda os pequenos passos em falso. A propaganda política é a simulação de uma guerra. É feroz, o adversário político torna-se o inimigo a abater. Empregando mecanismos persecutórios, não pode permitir-se o luxo de utilizar afirmações positivas.
Isto explica o erro cometido pelo criador das pesquisas motivacionais, Dichter, quando veio a Itália para colaborar com a Democracia Cristã na campanha eleitoral. Seguindo a lógica da publicidade, ele sugerira um slogan positivo: «A DC tem vinte anos». Alguns dias depois, sobre os cartazes com este slogan, os comunistas escreveram imediatamente frases obscenas do tipo: «Por isso é hora de fodê-la».
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O BEM-ESTAR
Milão, Fevereiro de 1961.
É impressionante a rapidez com que se difunde um novo bem de consumo. A princípio as pessoas mostram-se desconfiadas. Apenas alguns, mais inovadores, têm a coragem ou a curiosidade de experimentar o novo produto. Em seguida os compradores aumentam, primeiro lentamente, depois cada vez mais numerosos até ao momento em que todos desejam tê-lo. Quem não o tem sente-se então defraudado de qualquer coisa.
Existem objectos que quase todos possuem e sem os quais não te sentes um cidadão de pleno direito. Eu chamo-lhes bens da população.
A curva de expansão de um bem de consumo tem um andamento explosivo. Pensemos na difusão de uma moda, como o «hula hoop» ou «os cogumelos chineses», mas também, na necessidade da motorizada, do televisor, do automóvel. Parece que existe um contágio, onde quer que se vá não se fala de outra coisa.
Encontramo-nos em face de um movimento colectivo de agregado. As pessoas fazem as suas escolhas imitando os outros sem, contudo, constituírem com eles uma comunidade. Quando todos compraram automóvel não se formou um partido do automóvel. O mesmo sucede com o televisor. Os consumos cortam transversalmente as comunidades, como os partidos políticos, as igrejas. São uma área neutral. É por este motivo que os partidos ideológicos como a DC e os comunistas odeiam tanto os bens de consumo, quaisquer que eles sejam.
O modo como se dá a decisão nos consumos é semelhante àquele das migrações em que milhares, milhões de pessoas se deslocam separadamente, cada uma levada pelos seus próprios desejos, pelos seus próprios motivos.
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Pelo contrário, nas migrações dos bárbaros, quando invadiram o Império Romano, moveu-se todo um povo. Neste caso, fala-se de migrações de povos e estamos perante movimentos de grupo.
Nos primeiros tempos as tribos viviam dispersas sobre um imenso território. Depois acontece algo que as provoca. O aumento da população, a escassez de pastagens, outros povos que as ameaçam. Então, reúnem-se, de entre elas surge um chefe, põem-se em movimento e formam um exército. Assim fizeram os Cimbros e os Teutões, derrotados por Caio Mário. Assim se formou o exército de Átila ou o de Gengis Khan. Cria-se desta forma uma entidade solidária, organizada, que parte com a intenção de conquistar novos territórios, naturalmente mais ricos.
Existem portanto dois tipos de movimentos totalmente diferentes. Aqueles que levam à formação de um agregado e aqueles que levam à formação de um grupo. Consumos, moda, vedetismo, pânico, boom especulativo, emigrações, todos são movimentos de agregados. Originam comportamentos semelhantes, mas não produzem uma colectividade.
Nos movimentos de grupo, ao contrário, forma-se um «nós», uma comunidade, um partido, uma igreja, um exército. Cria-se uma nova entidade social dotada de uma forte solidariedade. Nessa, cada um ama os outros membros, sente-os como irmãos e ama também a colectividade que os engloba a todos. Pensemos no amor pela nossa igreja, pela nossa pátria. Esta nova comunidade ama o seu chefe carismático como a um deus.
Esta colectividade é mantida unida por fortes laços amorosos. Os laços são de três tipos: entre os membros, entre os membros e o chefe e, por fim, entre os membros e a própria colectividade. Junto com este amor em direcção ao interior, pode desenvolver-se uma grande agressividade para com o exterior. Esta formação social constitui um autêntico organismo vivo.
A distinção entre os movimentos de agregados e de grupos é uma ideia simples, mas que me parece fecunda. Tenho a impressão que representa um progresso em relação ao pensamento dos meus colegas sociólogos Blumer, Smelser e Touraine. Eles, quando falam de movimentos, têm em mente essencialmente a acção. Isto é, o processo de agitação, de mobilização política. Eu, ao contrário, penso sobretudo na formação de uma comunidade.
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OS CONSUMOS
Milão, Janeiro de 1962.
A sociologia dos consumos está terrivelmente atrasada. As pesquisas mais brilhantes são ainda aquelas sobre a classe abastada realizadas por Veblen no final do século passado. As suas conclusões vêm sendo aplicadas de uma forma dogmática aos fenómenos de hoje.
Veblen afirma que os modelos de consumo são criados nas classes superiores e posteriormente imitados pelas inferiores, até ao momento em que as classes superiores os rejeitam para se diferenciarem de novo.
No entanto, hoje, com os meios de comunicação de massas, a difusão dos modelos de consumo pode seguir, por completo, o caminho oposto. Pode inclusivamente iniciar-se entre os jovens, nas classes inferiores, e depois, passar às superiores.
O fenómeno é evidente na música popular. Quem determina o sucesso de uma canção? Os muito jovens. Em qualquer caso, mais do que os membros da classe superior, são determinadas figuras que podem propor modelos de consumo e ser imitadas. Essas figuras são as vedetas. Porque são conhecidas de todos, porque se pensa que têm uma vida aventurosa, extraordinária. Este é afinal um dos motivos que nos faz interessar pelas suas vidas privadas.
Para muitos sociólogos, pelo menos em Itália, os consumos são qualquer coisa de frívolo, de pouco importante, objecto de falatório, não de ciência. Consideram científica só a política, a estratificação social, a luta de classes, os partidos e os sindicatos, enquanto que o automóvel, a máquina de lavar, a moda, são considerados como frivolidades, manifestações burguesas.
Todavia, para viver, as pessoas comem, bebem, vestem-se, dormem, recebem os amigos, viajam. Todas estas acções se desenrolam
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através da intervenção dos bens de consumo. Por essa razão, os objectos têm significados diferentes nos variados âmbitos sociais. São a expressão de projectos, de esperanças, de tipos de relações.
Os economistas, estou a pensar em Cao Pinna, em Rodano, em Napoleoni, criticam a aquisição do aparelho de televisão porque, segundo eles, é um bem não essencial. Afirmam que seria muito melhor que a família gastasse o dinheiro, destinado à compra do televisor, no melhoramento da sua dieta e da sua instrução.
Contudo, nunca pensaram no que significa a televisão para as pessoas que vivem no campo? Significa romper, pela primeira vez, com o isolamento milenário a que estiveram confinadas. Significa entrar em contacto com o próprio centro da sociedade, ver com os próprios olhos que coisas acontecem no mundo, sentir como falam e como se vestem aqueles que habitam na cidade, assistir ao debate político, ver uma partida de futebol. Significa participar na modernidade.
Como pode dizer-se que o aparelho de televisão é um bem de consumo não essencial? Como pode dizer-se que os electrodomésticos são bens de consumo supérfluos? O frigorífico transforma completamente o abastecimento de comida, a sua conservação, introduz um tipo diferente de nutrição, modifica o trabalho doméstico. E o fogão a gás em relação àqueles a lenha ou à própria lareira? E a máquina de lavar? Estes objectos mudam o papel da mulher, libertam-na do trabalho duro em casa, mudam a sua relação com o marido, com os filhos, com o mundo exterior.
Já em 1929 Chapin tinha demonstrado que, estudando a sala de estar, pode ter-se um indicador do rendimento de uma família. Mas, na minha opinião, pode fazer-se muito mais. Observando a decoração de uma casa, da sala de estar ao quarto, à casa de banho, à forma como estão dispostos os objectos, pode perceber-se os diversos papéis sociais da mulher e do homem, e finalmente, as relações emotivas que existem entre eles.
Os objectos reflectem o mundo interior de quem os usa. A respeito destes problemas nasce o meu novo livro Consumos e Sociedades.
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CONSUMOS E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Milão, Março de 1963.
O televisor mostrou aos camponeses um mundo diferente e favoreceu a migração do campo para a cidade. Contribuiu também para a formação de um proletariado urbano e reforçou os sindicatos. Os próprios sindicalistas não o teriam sequer imaginado.
Ainda mais devastador é o efeito dos consumos nos Países do Terceiro Mundo que entram em contacto com os brancos. Por todo o lado as populações primitivas começaram a desejar os objectos dos ocidentais: os tecidos, as facas, as espingardas, o álcool. Abandonaram os seus objectos e os modos tradicionais de os fabricar. A razão é simples. Uma faca de aço é muito mais cortante do que uma de pedra, uma espingarda é muito mais eficaz do que uma flecha de sílex. É mais cómodo comprar um cobertor tecido com teares modernos do que fazê-lo com teares rudimentares.
Mas os modelos de consumo têm um sentido, exprimem modos de vida, relações sociais, hierarquias, valores. Entre os aborígenes australianos os machados de pedra eram um símbolo do poder masculino. A difusão às mulheres e às crianças dos machados de ferro representou uma inversão de valores. Tal como o uso da espingarda destruiu o valor do combate com arma branca.
A destruição dos símbolos tradicionais e a dissolução do seu sentido estão bem representadas na ilustração sobre o chefe negro tribal, mostrando-o com o cabelo ao alto, em forma de cartola, o guarda-chuva na mão, o relógio despertador ao pescoço e a argola no nariz.
O contacto com a civilização de tecnologia superior, cujos bens de consumo são superiores, produz um estado de ambivalência no sentido da própria tradição, dos próprios valores, uma ambivalência que produz desagregação cultural.
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Os nativos australianos não estavam em condições de produzir os bens dos ocidentais. Podiam adquiri-los apenas com uma troca desigual. Todos os povos primitivos se encontravam nesta trágica situação.
A sociedade entra em crise mesmo que não exista opressão física porque as pessoas perdem a confiança e o amor que tinham por elas próprias. Cada indivíduo em particular deixa-se seduzir por novos bens, por novos costumes e trai as suas próprias tradições, os seus próprios costumes. Aqueles desregulam a vida social e o estado de desordem cresce terrivelmente. Nascem então as ansiedades persecutórias. A solidariedade social diminui e a hostilidade aumenta.
Os antropólogos dizem que nas sociedades primitivas, entradas em contacto com o Ocidente, aumentam as práticas de feitiçaria maligna. Todos sentem pairar sobre si uma ameaça obscura, todos manifestam os medos do fim do mundo.
Ruth Benedict descreve este estado como uma característica peculiar dos Dobu, mas engana-se. Em todas as sociedades que vivem a transição existem ansiedades persecutórias, aumenta a feitiçaria e a luta à feitiçaria. Lanternari mostra-o no seu novo livro Movimentos Religiosos de Liberdade e de Salvação dos Povos Oprimidos.
Contudo, a um certo ponto, para além de um determinado início de desordem, começa um novo processo de regeneração, sob a forma de movimento colectivo. Pode ser um movimento político, ou mesmo um culto.
O movimento surge de um modo repentino. Muitos julgam-no uma loucura. No entanto, ele consegue, nem que seja provisoriamente, sintetizar o antigo com o novo. Consegue também inserir na história tradicional o novo evento e explicá-lo. Consegue recriar a confiança, a solidariedade colectiva. Geralmente promete a libertação do jugo dos brancos e uma era de prosperidade.
Vittorio Lanternari levou a cabo uma excelente pesquisa comparada sobre estes movimentos, mas não se apercebeu do papel que podem desempenhar os modelos de consumo. Todavia, uma observação atenta mostra a sua importância.
Os índios da América do Norte cediam pedaços do seu território em troca de armas. Não são as armas um bem de consumo? Depois a sua sociedade desintegra-se e aumenta o alcoolismo. E o álcool, por sua vez, não é um bem de consumo? Somente num terceiro tempo explodem os movimentos de revolta, como as guerras índias,
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em que as tribos cessam de se combater. Nasce a solidariedade. Então, os chefes tribais estabelecem novas regras: proíbem as relações com os brancos, o uso dos seus bens e condenam o alcoolismo.
A relação entre modelos de consumo, desordem social e movimentos colectivos é demonstrada pelos cultos do cargueiro. Nos cultos do cargueiro os bens dos brancos constituem o objecto principal do culto. Estes cultos foram frequentes sobretudo nas ilhas da Melanésia. Depois de um certo período de contacto com os brancos, as populações indígenas são tomadas de um grande excitamento colectivo. Então, um profeta anuncia um novo mito em que explica que os antepassados, na realidade, eram brancos. Um dia foram-se embora para o Ocidente, levando para lá todas as riquezas que hoje, efectivamente, possuem os brancos. Mas é chegada a era do seu retorno. Em breve chegará um grande navio, um cargueiro, que restituirá aos nativos tudo o que, até àquele momento, tinham dado aos brancos. As pessoas, acreditando na profecia, destroem as suas casas, os seus templos, e dirigem-se para a beira-mar, à espera do cargueiro.
A profecia é uma reconstrução do mito da criação. Explica por que razão os nativos são inferiores aos brancos e anuncia a viragem da sorte. Os brancos tornar-se-ão pobres e eles ricos. Mas é exactamente graças a este mito, que atribui aos antepassados a invenção dos bens dos brancos, que aqueles mesmos bens são simbolicamente integrados, incorporados na própria tradição dos indígenas.
Talvez todos os mitos nasçam sendo gerados a partir de movimentos para reestruturar o campo dos valores. E, muitos deles, precisamente para dar sentido aos novos comportamentos nascidos do uso dos bens de consumo provenientes de uma outra civilização.
A Eliade repete-nos de muitas maneiras que cada mito conta a história da criação. A nostalgia da criação. No curso da história, cada sociedade, inclusivamente a primitiva, ao entrar em contacto com outros povos, sofre transformações. E, de cada vez, reencontra-se a si mesma num movimento que a refunde, dando origem a um novo mito da criação.
A Bíblia dá-nos diversos mitos da criação. O primeiro é o da Criação do Mundo e de Adão e Eva. O segundo é o Dilúvio. O terceiro é o Êxodo do Egipto, do qual nasce a Tora. Por fim, o Natal e a morte e ressurreição de Cristo, que representam o mito da fundação da igreja cristã.
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Cada comunidade é criada a partir de movimentos e estes refazem sempre a história, integrando-lhe o novo.
Voltemos ao Culto do Cargueiro. É fácil imaginar como vai acabar a situação. O cargueiro não chega. O profeta deve fugir ou então é morto. No entanto, a partir daquele momento tudo muda. A sociedade não volta ao que era antes. A aldeia não torna a ser construída do mesmo modo. Os habitantes começam a fazer trocas com os brancos, a trabalhar para eles. Adoptam a sua moeda, informam-se sobre países longínquos. O culto serve aos nativos para se integrarem no mundo ocidental.
Todavia, são poucos os estudiosos que se aperceberam deste papel. Vale por todos o exemplo de Margaret Mead que, no livro Crescimento de uma Comunidade Primitiva, nos conta a integração de Samoa na economia ocidental. Lendo esta obra parece que tudo acontece gradualmente. Porém, se fizermos uma cronologia exacta, apercebemo-nos que a transformação se acelera de uma forma rapidíssima, depois de um período de estranhas agitações: um culto do cargueiro. Margaret Mead, no entanto, não o leva a sério, não o analisa, não percebe a sua importância. Ela não chega a acreditar que um processo assim tão estranho e irracional possa ter sido o ponto de viragem decisivo!
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UM CONTINENTE INEXPLORADO.
O GRANDE CICLO COLECTIVO
Milão, Janeiro de 1964.
Ganhei a cátedra de sociologia e a editora La Scuola di Brescia pediu-me para preparar um Manual de Sociologia. Aceitei e aproveitei a ocasião para expor de um modo sistemático uma teoria dos movimentos.
A ideia-chave é o grande ciclo colectivo.
Cada sociedade vive com base em certas regras e é por isso uma instituição. Com o passar do tempo acontecem mudanças que ninguém tinha programado. Muitas daquelas regras, daquelas certezas, tornam-se não funcionais e devem ser mudadas. Contudo, existe sempre uma inércia social ou política considerável.
A mudança está sempre em atraso relativamente às necessidades, como observam também Marx e Osgood. Surgem então as tensões. Alguns indivíduos procuram caminhos novos, desvios. São as mutações idiossincráticas. O seu número aumenta e assim nascem aqueles movimentos que eu chamei de movimentos colectivos de agregado, como as agitações, as modas, os pânicos, as migrações, os tumultos, as crazesm.
Se o sistema institucional não consegue reajustar-se, exprimindo por exemplo, com as eleições, uma nova liderança (nt) e novas leis, então a desordem, a entropia, cresce até que se metam em andamento aqueles movimentos a que eu chamei movimentos colectivos de grupo. Estes rompem com os laços do passado, edificam o novo e recriam certezas,
NT. O autor faz uso do termo inglês craze, no plural, para significar loucuras, manias, caprichos, novidades.
O autor utiliza o termo inglês Uadership, o que acontece várias vezes ao longo da obra. O tradutor optou sempre por traduzi-lo pela palavra liderança.
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autoridades e legitimidades. Nasce uma nova instituição e assim recomeça o ciclo.
O conteúdo mítico-ideológico de um movimento colectivo de grupo é, como nunca antes, diferente: depende do tipo de estrutura social e de tradição cultural em que surge. Nalguns casos será a espera de um navio carregado de bens, noutros uma guerra em que os mortos combatem ao lado dos vivos, noutros ainda a espera de um novo Messias. No entanto, há sempre uma extraordinária excitação, há sempre uma nova solidariedade, uma nova síntese entre velho e novo, uma nova esperança num estado final maravilhoso. Mas, no fim do processo, reconstitui-se sempre uma nova ordem estável, ainda que ela seja muito diferente de caso para caso. Por vezes, é uma única instituição poderosa, outras vezes, um sistema fragmentado. Um exemplo do primeiro tipo dá-nos a Igreja Católica, do segundo tipo o arquipélago protestante.
Também os grandes movimentos que, recentemente, assolaram a Europa - como a revolução francesa, os movimentos nacionalistas de que resultaram as nações, o comunismo, o fascismo, o nazismo — podem ser integrados neste esquema. Todos nascem quando a velha ordem se desintegra e se produz uma nova ordem, uma nova autoridade, que muitas vezes é mais despótica e cruel do que a precedente.
Foram as transformações científicas, técnicas, económicas, mais a desordem criada pela primeira guerra mundial, que devastaram a sociedade europeia e provocaram os totalitarismos soviético e nazi.
O juízo histórico, moral e político deve ser separado do estudo do mecanismo social. O cientista deve esforçar-se por ser neutral. Eu continuo a ser um democrata, a ter horror da guerra, do comunismo e do nazismo. Mas devo ter a coragem de admitir que também estes movimentos foram formas de reconstrução da ordem e da autoridade.
Com esta teoria inseri os movimentos num quadro explicativo funcional, como reclama a sociologia desta época, como a de Parsons e a de Smelser. O movimento é funcional porque recria uma solidariedade quando a antiga foi destruída. Resta o problema moral, o problema da violência, do horror, da crueldade.
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A CHEGADA DOS MOVIMENTOS JUVENIS
Roma, Outubro de 1966.
Alguns rapazes começaram a deixar crescer os cabelos, lêem Ferlinghetti e Kerouac, ouvem a música de Bob Dylan, de Joan Baez e dos Beatles. Exprimem um desejo de renovação, de paz, de liberdade erótica, de simplicidade de vida. São a versão italiana dos hippies, dos filhos das flores.
Uma parte do mundo adulto está deslumbrada: está a difundir-se uma moda juvenil. Os símbolos desta nova juventude são actrizes como Catherine Spaak. E o frenesim destes tempos está bem representado nos filmes Il Sorpassom e La voglia matta (NT).
À volta dos jovens «cabeludos» existe uma área de simpatizantes ou, simplesmente, de pessoas que seguem a moda. Formaram-se pequenos grupos, círculos, e abrem-se pequenos locais de encontro como o Piper. Aqui misturam-se as gerações e existe uma intensa atmosfera erótica, uma nova vontade desenfreada de viver. Tudo me diz que estamos no preâmbulo de mudanças profundas, nos costumes, na vida, mesmo que não saiba quais são essas mudanças.
A vontade de mudar depende do milagre económico que se fez sentir? Depende ela do facto de as pessoas terem, finalmente, um pouco de dinheiro, com que as necessidades fundamentais foram satisfeitas, e por conseguinte, de ter nascido um impulso no sentido do supérfluo, do luxo, do erotismo? Ou é o sinal de que a moral tradicional,
nt. Filme de 1962, do realizador Dino Risi, estreou em Portugal em 1964 com o título A Ultrapassagem.
Filme de 1962, do realizador Luciano Salce, estreou em Portugal em 1971 com o título Desejo Louco. A actriz Catherine Spaak participou em ambos os filmes.
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católica ou marxista antierótica, está a fender-se? E assim começam também a abrir caminho, juntamente com a revista Playboy, efervescências de liberdade erótica nunca antes imaginadas.
Mas estou convencido de que existe algo mais, algo que nós vemos apenas indirectamente. Na Universidade de Berkeley, em 1964, houve uma verdadeira revolta dos estudantes. O Free speech movement chefiado por Savio, foi uma revolta contra a autoridade dos professores, dos pais, contra a guerra do Vietname. Uma revolução anticonformista, uma auto-organização dos jovens em comunidades libertárias, pacifistas. Este movimento une-se ao da emancipação e de libertação dos negros.
Entre nós não existem estes temas, não existe a guerra do Vietname, não existe o problema da integração racial e por isso chegam só até nós a música, os cabelos compridos. Chega-nos o aspecto externo do costume, mas que, de alguma maneira, filtra o estímulo para um modo de vida mais livre, autêntico, simples, erótico, feliz e rebelde.
Nos EUA o movimento é de grupo, entre nós é de agregado. Mas, na minha teoria do grande ciclo colectivo, os movimentos de agregado precedem os de grupo. Não está para suceder também entre nós qualquer coisa? Falei disso com Turner quando estive em Berkeley. Ele está certo de que também irão existir movimentos estudantis na Europa. E eu acredito-o.
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ENAMORAMENTO
São Francisco, Outubro de 1967.
Apaixonei-me. Estou certo de que foi este estímulo geral, esta atmosfera de libertação, que me levou a ir cada vez mais frequentemente a Roma e que gerou dentro de mim uma inquietude, uma exigência de renovação, de uma vida mais plena que se manifestou, em seguida, sob a forma de enamoramento.
Sou um homem adulto, com uma família, com uma posição formal. Este enamoramento explode na minha vida como uma revolução, faz tudo em pedaços, põe-me em perigo. Gostaria de o deter e não sei como fazê-lo, queria mandá-lo parar, mas não lhe posso renunciar. Impele-me a romper as relações com o passado, a rever a minha vida, a estabelecer novos laços, novas relações sociais, a recomeçar de novo. E não sei como fazê-lo.
Se não fosse estar imerso no estudo dos movimentos, do estado nascente, da morte renascida, nunca me teria passado pela cabeça analisar o enamoramento, como estou a fazer agora com as categorias dos movimentos colectivos. Também eu o explicaria, como me ensinava a psicanálise, como um fenómeno violento de regressão à relação maternal da primeira infância ou, mais simplesmente, tê-lo-ia considerado uma estranha experiência emotiva que foge à compreensão do sociólogo, que diz mais respeito ao letrado ou ao poeta.
Mas eu sei que não existe apenas a conversão religiosa. Sei que em todos os movimentos se entra por conversão, através de uma tempestade emotiva. E que coisa me está a acontecer se não exactamente isto? Eu vivi dentro de uma comunidade familiar que, por sua vez, estava no interior de um ambiente social e cultural de que eu aceitava os princípios e pelos quais eu estava pronto a lutar. Porém, o espírito dos tempos
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convidou-me a procurar novos horizontes, novas liberdades e eu deixei arrastar-me por ele até ter ultrapassado um limiar. O terrível limiar em que já não te agrada mais o mundo em que estás inserido e aspiras a qualquer coisa de mais alto. Então, algo no teu íntimo se racha e a fissura alarga-se até que tudo se reestrutura de uma nova forma. Tu mudas, o mundo à tua volta muda. E o que, a certa altura, representava o valor máximo não vale mais nada em relação ao teu amor, ou melhor, à perspectiva de vida que se te apresenta através do teu amor.
Eu sei que, no movimento, o sujeito sofre uma transformação interior e abandona os objectos de amor precedentes, os valores anteriores, para aderir aos novos e iniciar uma nova vida.
Pois bem, é exactamente isto que me está a acontecer, mas sob a forma de atracção irresistível para com uma pessoa, um desejo irresistível de começar uma vida nova, diferente, com ela. E o entusiasmo, a languidez, o arrebatamento, o chorar, o desejo desesperado, o guiar a grande velocidade na auto-estrada, a alegria desenfreada, o prazer infinito, a esperança de que tudo no final se resolva, o repensar o meu passado, o procurar viver avidamente a sua própria vida, não é isto o estado nascente que eu descrevi nos movimentos?
Mas o meu não é um movimento de grandes dimensões. É um movimento ridículo, constituído só por mim, ou só de mim e da minha amada e que diz respeito ao muito modesto redor da minha pessoa. Algo de que os outros se riem e de que eu mesmo tenho vergonha. Então, também isto é um movimento?
Agora reconheço os sinais de uma longa incubação. Um período prolongado de insatisfação, de tensão, com distúrbios psicossomáticos, fantasias insatisfeitas, a impressão de que os outros eram felizes e eu não. Experimentava atracções violentas pelas outras mulheres. Sentia o desejo de ser livre de amá-las todas. Era como se procurasse forçar um bloco que eu mesmo tinha construído, libertar-me de uma prisão em que lentamente me tinha encerrado. Mas, só depois de muito tempo, com o mudar das circunstâncias, por uma contribuição de factores externos e, finalmente, por encontrar uma pessoa que me estimulou, rompi o casulo e saí para o ar livre, assustado, mas feliz.
Quanto mais penso sobre o assunto, mais me dou conta de que o enamoramento é, antes de mais, uma libertação. Libertação de um mundo social, interior e exterior, que não satisfaz algumas
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necessidades profundas e que impede algumas grandes possibilidades. O enamoramento não é uma explosão de sexualidade, mas sim qualquer coisa de bem mais radical. É um renascimento, o começar de uma nova vida. Uma vida cheia de riscos, de incertezas, de dificuldades, de angústias e de dilemas. No entanto, para trás não podes voltar.
O enamoramento é, por isso, um estado nascente. É uma exploração do possível, a tentativa de realizar um sonho extraordinário, destinado talvez a falhar, mas que não pode abandonar-se ou trair-se porque só naquele sonho está a energia da vida.
Enquanto movimento colectivo o enamoramento constitui uma força revolucionária que desafia a sociedade e a cultura existentes e lhes subverte as categorias. Por isso, aquela procura anulá-lo, extingui-lo, reabsorvê-lo ou encaminhá-lo para dentro das instituições pré-existentes, como o noivado, o matrimónio. E, se se é casado, coloca-o na figura do amante.
Através do enamoramento duas pessoas que provenham de dois ambientes sociais diferentes, que são diferentes, fundem-se e criam uma nova colectividade, reorganizam o mundo à volta deles. Durante o processo, eles mudam e criam algo que não existia antes: um mutante.
Cada movimento cria um mutante, um novo ser vivo que deve sobreviver no mundo, em parte adaptando-se a ele e em parte transformando-o.
Estas ideias são completamente novas. Estou a pensar nas caras dos meus colegas que, quando falam de movimentos, têm apenas na cabeça a luta de classes.
Farão pouco de mim. No entanto, eu estou certo que tenho razão. Está-me a acontecer a mesma coisa que me sucedia há dez anos atrás, quando falava dos consumos. Estou, desgostosamente, em antecipação aos tempos. Espera-me um violento período, como homem e sociólogo.
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O MAIO DE 68 (NT)
Milão, Junho de 1968.
Foram publicados por estes dias os resultados das pesquisas levadas a cabo o ano passado por Alessandro Pizzorno, entre outros, sobre os jovens europeus. Os jovens revelaram-se apáticos, despojados de fortes motivações, conformistas, indiferentes à política. Porém, a Europa inteira está a ser assolada actualmente por movimentos políticos juvenis.
Já esperava por isto! Eu bem sei que este tipo de pesquisas não servem e não podem compreender o assomar dos movimentos. As pessoas não estão conscientes daquilo que está para lhes acontecer. Experimentam apenas uma vaga sensação de tensão, de irritação, de descontentamento. A energia acumula-se sem manifestações vistosas e cresce até ao momento em que um qualquer facto externo, ocasional, a faz explodir. Então, repentinamente, o sujeito transforma-se: há novos desejos, novas esperanças, novos adversários, novos sentimentos. Tudo isso são sensações e estados de espírito que não podia conhecer anteriormente.
Todos falam do «Maio de 68» depois que se deu a ocupação da Sorbonne em Paris e todos estão convencidos de que o movimento se iniciou por lá. Na realidade, o movimento estudantil começou entre nós, na Itália, em 1967.
Eis aqui os factos. No Outono de 1967 a Universidade Católica aumenta as propinas. Os estudantes nocturnos agitam-se e os diurnos apoiam-nos. Parece uma reivindicação sindical normal,
NT. O autor utiliza a expressão Il Sessantotto que para nós não tem grande significado se não for traduzido como «O Maio de 68». Como o autor explica, em Itália, o chamado Maio de 68 foi bem mais longo, tendo inclusivamente começado no ano de 1967.
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apesar de durar — com tons de protesto - como uma luta contra a injustiça, contra as desigualdades.
O reitor e o conselho de administração primeiramente resistem, depois fazem concessões.
Mas o protesto, em vez de diminuir, aumenta e os estudantes ocupam a universidade. A reivindicação alarga-se. Os estudantes pedem aos professores para falar da guerra do Vietname, que sentem como uma injustiça. Os professores protestam e o reitor expulsa dois estudantes. Os outros começam a fazer greve de fome, acampando na praça que está em frente à academia. As pessoas aglomeram-se em frente à universidade ocupada. Os estudantes cantam os hinos de libertação dos negros, as canções de Joan Baez e de Bob Dylan. Já não se trata de uma agitação sindical, as reivindicações são completamente esquecidas, enfim, meteram-se em movimento outros desejos, outras aspirações.
«Que quereis exactamente?» perguntam-lhes os professores, os adultos, os jornalistas. Os estudantes sobem os pedidos, mas percebe-se que as propinas já não lhes importam para nada. Falam de «questões de princípio».
Num debate na televisão para que foram convidados, muitos deles pediram as «reformas de estrutura». Uma fórmula política que, para os marxistas, significa eliminação ou enfraquecimento do capitalismo. Mas é exactamente isto que eles querem? Muitos querem mais liberdade, mais espontaneidade, menos deveres, mais possibilidades de se exprimirem. Tudo é vago, embrionário, acabado de nascer.
Os cantos que os estudantes entoam enquanto ocupam a Universidade Católica são de origem americana, porém, têm qualquer coisa de especificamente católico. Existem neles referências ao Padre Camilo Torres, à teologia católica da libertação.
Em Florença rebenta o caso L’isolotto (nt) do Padre Mazzi. Os pobres do evangelho são comparados aos pobres da terra, aos operários. Os malvados do evangelho aos capitalistas, aos americanos que bombardeiam o Vietname. São as mesmas conclusões a que chegam os «partidários da paz», os comunistas.
nt. L'isolotto (o ilhéu) de Florença é um dos maiores bairros populares de Itália, construído e habitado por operários em grande número. O escândalo que rebentou prende-se, em termos sumários, com o padre Enzo Mazzi que, com os seus paroquianos, atacou a hierarquia da Igreja, o Episcopado, o Vaticano e o próprio Papa. É o ponto alto da contestação católica no que se refere ao distanciamento da Igreja da realidade social e do espírito dos Evangelhos.
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Também começam as agitações nas outras universidades. «O que querem?», perguntam os adultos, os jornalistas, os políticos. E as respostas tornam-se cada vez mais genéricas. A polícia que desapareça! Queremos os cursos em autogestão, o fim da guerra no Vietname, o fim da escola de classes.
Deveriam dizer: «Queremos renovar o mundo, revolucioná-lo, mas por favor, não nos perguntem como» - que é afinal aquilo que os ocupantes da Sorbonne em Paris pedem por esses dias com o slogan: «A imaginação ao poder».
Neste estado de excitação, de expectativa, de vontade de renovação, afirmam-se com facilidade aqueles que pensam ter a explicação e a solução de imediato: os marxistas.
De onde derivam todas as misérias, todas as injustiças, todas as insatisfações do presente? Do capitalista que tira do salário do trabalhador um saldo positivo (NT) com que enriquece, controla o Estado e oprime os mesmos trabalhadores. Basta eliminar esta exploração e tudo se tornará harmonioso e pacífico.
É esta a ideologia marxista: uma explicação simplificada da existência do mal no mundo e uma receita igualmente simplificada para eliminá-lo.
Em pouco tempo, o movimento estudantil que se desenvolve ao longo de todo o ano de 1968 em Roma, Turim e Trento torna-se hegemónico a partir do marxismo revolucionário. A componente hippie e por fim a pacifista, à maneira de Martin Luther King, ficam à margem.
Por que razão em Itália a elaboração ideológica foi marxista revolucionária? Porque o marxismo em Itália era muito forte, agressivo. Porque em Itália existia o maior partido comunista do Ocidente e muitos intelectuais eram marxistas.
Até os católicos de esquerda sofriam esta atracção. Na falta de outras potências culturais foi, por conseguinte, o marxismo que deu a sua linguagem, as suas categorias explicativas, ao movimento.
Todos crêem que o movimento é povoado pela ideologia, que as pessoas se reúnem porque têm a mesma ideologia. Não é verdade! É apenas uma ilusão. De início, o movimento não tem ideologia, ela constrói-se ao crescer.
NT. O autor utiliza o termo inglês surplus.
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Os sociólogos dizem que o movimento se forma pela acção de um chefe e de um grupo de intelectuais que mobilizam as pessoas à volta de uma ideia e as encaminham no sentido de uma meta. Não é verdade! No início, o movimento não tem um chefe. Este surge do seu seio.
Para os marxistas o movimento é sempre uma revolta da classe oprimida contra a que oprime. A ideologia é o reflexo da estrutura social. Nem mesmo isto é verdade! A mesma estrutura pode gerar movimentos diferentes: depende do ambiente cultural em que nasce e do chefe que se cria.
Para que o movimento rebente é preciso que se dê uma mudança material, demográfica, económica, capaz de produzir um desabamento, uma tensão. Mas esta tensão explica apenas algumas das ideias que o guiarão. O resto fá-lo quem elabora a ideologia.
A mesma tensão pode ter diversas elaborações, pode ser canalizada para diferentes direcções. Pode, sem hesitação, ir primeiro numa direcção e, posteriormente, numa outra, tal como um rio.
Nos EUA, o movimento revoltou-se contra a guerra do Vietname e a favor da integração dos negros. Na Inglaterra, onde não existiam estes problemas, o movimento foi lúdico e expressivo. Na Itália, onde a cultura era dominada pelos marxistas, tornou-se também ele marxista. Em França, libertário, na Checoslováquia, anticomunista e antiestatal.
Nos EUA, não podia tornar-se marxista porque o marxismo era a ideologia do inimigo soviético. Adoptá-la teria significado trair a consciência nacional. A Checoslováquia, pelo contrário, queria rebelar-se - tinha necessariamente que rebelar-se - precisamente contra a URSS e olhar para a América. Em resumo, das mesmas pré-condições estruturais nascem diferentes movimentos, com ideologias diversas, cada um em relação às condições e à cultura do seu próprio país e ao tipo de liderança que prevalece. Este resultado não se obtém de imediato, mas, pouco a pouco, por tentativas e erros. Na Universidade Católica de Milão é só depois do confronto com a polícia, a expulsão de Mario Capanna e o alastramento à Universidade estatal que o movimento estudantil se dirige para a grande tradição marxista italiana.
Algo de semelhante tinha sucedido anos antes em Cuba. Fidel Castro tinha começado como liberal e depois confronta-se com os Estados Unidos. A União Soviética aproveita a ocasião e apoia-o. Castro torna-se então um campeão do marxismo soviético.
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A história está cheia de exemplos do género. Maomé, no princípio, pensava ser um profeta do Judaísmo e do Cristianismo, isto é de tal forma verdadeiro que ele orava voltado para Jerusalém. Quando não foi reconhecido como tal pelos membros destas religiões, muda de ideias e passa a orar na direcção de Meca.
O movimento é como um rio que corre impetuoso na direcção do vale e, ao correr, escava o próprio leito. O seu traçado depende das inclinações e das resistências que encontra no terreno. Contudo, uma vez traçado, o leito torna-se estável, difícil de modificar.
Ao movimento, onde tudo parece possível, sucede a instituição definida, estável e duradoura.
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O ESTADO NASCENTE
Trento, Outubro de 1968.
O movimento é, por conseguinte, o produto de uma tensão estrutural que cresce até a um ponto explosivo, mas que se manifesta graças a uma ideologia que lhe dá uma linguagem, um conteúdo, uma meta, um inimigo, e que tem um chefe que o mantém unido, guiando-o, encaminhando-o, estimulando-o.
Mas isso chega? Não, não chega. Deve existir um terceiro factor - até agora desconhecido — a actuar porque os movimentos têm todos algo em comum: excitação, entusiasmo, dedicação, esperança numa renovação radical, no fim do mal, na chegada de um novo mundo cheio de paz e de felicidade.
O movimento é uma experiência de renascimento feliz, alegre, triunfante. Isto não pode resultar das pré-condições estruturais, dos contextos ambientais que são todos diferentes. E também não pode ocorrer das tradições culturais porque também elas mudam de um povo para outro, de uma civilização para outra. Nem sequer pode advir do chefe, que é sempre diferente.
Admirei-me muitas vezes que tanto aos sociólogos, como aos historiadores, não se lhes tenha colocado alguma vez este problema. Eles sublinham as diferenças, as especificidades, e ignoram a incrível semelhança que têm todos os movimentos na origem.
Apenas Vilfredo Pareto, em Os Sistemas Socialistas, se apercebeu de que todos os movimentos religiosos e políticos ocidentais são animados, de início, por uma utopia socialista. O seu propósito, no entanto, não é o de compreender por que razão existe aquela utopia e o que isso implica. O seu objectivo visa demonstrar que se trata de uma ilusão destinada a desaparecer, dando o seu lugar ao egoísmo habitual do poder e do mercado.
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O outro sociólogo que o notou é Max Weber. Todavia, não o atribui ao movimento em si mesmo, mas ao chefe carismático. É o chefe carismático, e só ele, que subverte a tradição e tira valor à autoridade, afirmando: «Está escrito, mas eu digo-vos». Weber dá também muita importância à fase inicial do processo, quando o carisma está no estado nascente. A expressão estado nascente vem da química e indica o estado particular de excitação energética das moléculas quando está a acontecer uma reacção química. O carisma é uma forma de poder extraordinário, mas, precisamente por isto, é limitado no tempo. Ele, diz Weber, é particularmente eficaz apenas in statu nascenti. Em seguida, o carisma volta ao campo institucional e torna-se rígido, objectiva-se.
Eu tinha presente o pensamento de Max Weber enquanto assistia ao desenrolar dos movimentos estudantis. Porém, dava-me conta de que as experiências de que fala Weber, o ímpeto, a paixão, o heroísmo, o comunismo espontâneo, não eram de facto uma prerrogativa do chefe e nem sequer provinham dele. Estavam difundidas em todos aqueles que participavam no movimento.
Recordo-me, em particular, de ter encontrado em Março de 1968, em Perugia, estudantes do movimento de Trento. Não eram os chefes do movimento, eram simples militantes. No entanto, comportavam-se de maneira diferente da dos outros. Tinham uma segurança, um orgulho incrível. Sentiam ser a vanguarda revolucionária e imediatamente transmitiam a todos esta impressão. Naquele momento, recordo-me de ter pensado que, durante a Reforma Protestante, os luteranos, os calvinistas ou os anabaptistas deveriam ter-se sentido assim.
Weber nunca se deteve sobre a razão pela qual nasce um chefe carismático. Contudo, reflectindo nos casos históricos, por exemplo em Maomé, em São Paulo, em Lutero, apercebemo-nos de que há um certo momento em que acontece a revelação. Este é o estado nascente do chefe, algo que o torna potencialmente num chefe. E se, em vez de observarmos apenas o chefe, olharmos todos os membros do movimento, descobrimos que também eles, quando entram no movimento, passam por uma espécie de revelação. Sofrem uma mutação. Este é o seu estado nascente.
No passado, os estudantes da Universidade Católica que protestavam pelo aumento das propinas, acabada a agitação, voltavam a ser o que eram antes. Pelo contrário, aqueles que, por estes dias,
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participaram nas ardentes jornadas de greve de fome, de ocupação, de confronto com a polícia, tanto os líderes como os outros, tiveram de imediato uma verdadeira transformação. Eles já não são simples estudantes, são neófitos, são convertidos. E esta mudança não aconteceu de uma maneira gradual, surgiu de forma brusca, em poucos dias. Precisamente naquele breve intervalo de tempo em que também o carisma do chefe, Mario Capanna, estava no estado nascente.
Olhando aquela gente transfigurada, veio-me à cabeça as expressões de Jesus Cristo sobre o «renascimento do espírito». Recordemos a passagem de João, 3. Jesus Cristo diz ao Rabi Nicodemos: «Em verdade vos digo que quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus». Então, Nicodemos pergunta-lhe: «Como pode nascer um homem sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer?» E Jesus responde: «O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito».
Não é diferente o conceito de metanóia, de mudança interior, de São Paulo. São Paulo tinha experimentado pessoalmente a metanóia na revelação de Cristo no caminho para Damasco. Um choque brusco, radical, do qual sairia transformado de forma irreversível.
Mas, se esta é a experiência típica das pessoas que entram num movimento, ela é comum tanto ao chefe carismático, ao profeta, como aos outros. Assim, ela não é apenas de um indivíduo em particular, mas de todos aqueles que fazem parte do movimento. Por isso, tanto o chefe, quanto os activistas de um movimento são convertidos. Eles renasceram, deixando para trás de si a sua velha personalidade, as suas velhas ideias, e tornaram-se novos. Ao fazerem isso, eles abandonam ou combatem a velha comunidade e criam uma nova. Destroem a velha autoridade e criam uma nova.
O estado nascente é o momento da passagem, a mudança de estado, que faz de um homem comum um homem diferente, um chefe carismático em potência. E quando todos estão neste estado, podemos dizer que o próprio movimento está no estado nascente. Por esta razão, o estado nascente é uma experiência do indivíduo e, ao mesmo tempo, uma propriedade da colectividade. Nela, os militantes, que anteriormente estavam divididos e eram diferentes, participam da mesma experiência fundamental, compreendem-se intuitivamente, identificam-se entre eles, sentem ter a mesma meta, sentem-se irmãos. É o estado nascente que cria o grupo.
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Os indivíduos que fazem parte do grupo no estado nascente sentem-se transfigurados. É isto o «carisma», que depois é reconhecido de um modo particular num chefe, naquele que sabe resolver os problemas, indicar a meta, assegurar e deslumbrar. Mas, todos os membros do grupo são potencialmente chefes, todos têm o carisma, e cada um deles, se o chefe morrer, pode substituí-lo. O carisma do chefe é o primeiro a institucionalizar-se, a fixar-se, e uma vez fixado, nunca mais pode ser modificado. Num movimento ninguém pode aspirar a derrubar o poder do chefe carismático. O movimento e o chefe, depois de algum tempo, estão inexoravelmente ligados. Somente a morte desfaz este nó e deixa livres os seguidores para procurarem um novo chefe.
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A EXPERIÊNCIA DE TRENTO,
Trento, Julho de 1969.
De 1 de Novembro de 1968 a 13 de Fevereiro de 1969 fui Reitor em Trento, cidade onde o movimento estudantil, em 1967, tinha realizado uma ocupação que durara seis meses e tinha obrigado quase todos os docentes a entregar a demissão.
Eu fui chamado precisamente para reconstruir a universidade dos escombros do processo revolucionário. Estava encantado com a missão, não porque me lisonjeasse o papel de reitor, mas porque me interessavam os movimentos.
Eu também os tinha estudado empiricamente. Tinha estado em Berkeley, depois do Free Speech Movement, depois em Watts, logo depois dos motinsde 1967, em seguida em Nova Iorque, durante as tensões na Universidade de Columbia, e por lá conheci Mark Rudd. Tinha também estado em Espanha, durante os últimos tempos do franquismo, e foi lá que o meu amigo Pepin Vidal Beneyto criou uma escola de sociologia.
Tinha estado ainda na Hungria, no Instituto de Heged (nt), onde Markus e Agnes Heller estavam a renovar o pensamento marxista. Estava lá durante a invasão da Checoslováquia e a nova onda de repressão. Tinha, por fim, participado no movimento de Mita em Porto Rico.
Estava convencido que conhecia bastante bem os movimentos, mas queria viver o mais possível no meio deles para verificar se as minhas ideias eram exactas.
O movimento estudantil de Trento tinha ultrapassado a sua fase de estado nascente. Tinha um líder carismático reconhecido,
NT. O autor utiliza o termo inglês riots.
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Mauro Rostagno, um belo rapaz, de grande fascínio e com um espírito generoso. Mauro dirigia o movimento juntamente com outros - um verdadeiro grupo dirigente - em que estavam outras figuras de destaque como Marco Boato. Quando Rostagno não estava, os outros sabiam substituí-lo muito bem. Todos eles eram líderes. Mesmo quando se dava o caso de qualquer um dos estudantes de Trento ir a uma outra universidade, comportava-se sempre com a segurança de um líder.
Mal acabei de chegar propus ao grupo dirigente do movimento o meu projecto de organização didáctica para a universidade. Era preciso estudar os clássicos da sociologia e sobre isto não estava disposto a ceder. Para os convencer tinha introduzido a psicanálise porque estava seguro que lhes agradaria e para ensiná-la tinha chamado Franco Fornari. Depois, propus aos estudantes mais velhos que colaborassem com o docente no sentido de fazer os seminários de sociologia. Os estudantes aceitaram o meu projecto e começaram a falar de «universidade crítica». Assim se colocou em andamento um mecanismo de auto-organização de estudantes e professores que fixavam, sobre um enorme painel corrediço, o lugar e a hora das aulas, dos seminários e o tema. O mecanismo funcionou excelentemente durante todo o ano escolar.
Esta experiência confirmou a minha tese de que o movimento tem uma plasticidade excepcional e uma capacidade auto-organizativa extraordinária. Isto é possível porque os seus membros antepõem os fins colectivos aos pessoais.
O movimento é como um rio que escava o seu próprio leito. Colocando barreiras, ou facilitando-o num determinado ponto, pode mudar de direcção. Em Trento, o movimento estudantil tinha uma orientação marxista revolucionária e uma finalidade política. Contudo, os estudantes eram também intelectualmente curiosos e estavam preparados para abraçar a ideia de uma «universidade crítica».
Mas eu fiz outra importante constatação. Os membros de um movimento estão unidos por um fortíssimo laço emocional. Não são as ideias que os unem. Abaixo das ideias existe um relacionamento emotivo que constitui o fundo sobre o qual elas se desenvolvem. Estou certo de que as ideias são influenciadas por este tipo de experiência emotiva. Sentem-se todos parte da mesma entidade, unidos, solidários. Reúnem-se continuamente nas assembleias, ou em casa deste ou daquele, ou no bar. Estão sentados perto uns dos outros, falam durante horas. Gostam uns dos outros, ajudam-se reciprocamente. Se esta é
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a experiência concreta que eles têm, não nos devemos admirar se depois imaginam que seja possível um mundo de igualdade e de fraternidade.
Aqui em Trento tive ainda a confirmação de que existe uma profunda afinidade entre o enamoramento e o movimento. No enamoramento duas pessoas gostam uma da outra antes de se conhecerem e tendem a pôr em comum os seus recursos e as suas experiências.
Acontece o mesmo no movimento. Os membros de um movimento estão preparados para discutir cada coisa, estão prontos a aprender, a rever as próprias ideias. Há uma grande actividade intelectual. Todos procuram explicar, definir a realidade que querem mudar. Reflectem sobre eles mesmos, sobre a própria organização, sobre os seus projectos e sobre os próprios erros. E fazem-no com entusiasmo, com esperança, com optimismo, com uma confiança sincera. Acreditam que tudo esteja para renovar-se, para renascer.
Reich escreveu um livro — The Greening of America — o reverdecer, o rejuvenescimento da América, e atribui esse rejuvenescimento à «cultura juvenil».
É um erro. Esta experiência de frescura, de rejuvenescimento, de renovação, une todos os movimentos. Deverá ter também existido na época da Reforma, entre os luteranos, entre os anabaptistas. Deverá ter existido na época do Iluminismo, entre os fundadores da enciclopédia e depois entre os primeiros socialistas. O movimento em si mesmo é um rejuvenescimento porque é uma morte renascida.
Voltemos ao laço emotivo que se estabelece entre aqueles que fazem parte do movimento. Pois bem, este laço, mesmo que se forme em pouco tempo, mesmo que as pessoas fiquem juntas por pouco tempo, pode durar muito, inclusivamente toda uma vida. É como uma marca permanente (NT).
Os estudantes do Movimento estudantil de Trento, quando se encontram fora da cidade, abraçam-se, continuam a experimentar uma sensação de fraternidade, de amizade. Esta acontece mesmo que nunca se tenham conhecido pessoalmente, nem tenham em comum experiências pessoais. Aquilo que os une é o facto de terem vivido a experiência do movimento, de terem sido parte de uma entidade colectiva viva.
NT. O autor utiliza o termo inglês imprinting.
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Pude também observar que o movimento, na verdade, é formado por numerosíssimos núcleos que convergem nele. Ele já não é uma massa compacta, homogénea. Por fora apresenta-se assim porque faz frente comum contra o sistema que coloca em discussão, ou contra os inimigos, mas no seu interior é rico, articulado, em contínua evolução, e nele verificam-se acontecimentos contínuos de estado nascente. No entretanto, dão-se processos de institucionalização com a formação de pequenos grupos, de pequenos partidos políticos como a União dos Marxistas Leninistas - com uma Linha Vermelha e uma Linha Negra. No entanto, continuam a considerar-se parte do mesmo movimento.
Esta heterogeneidade, este germinar contínuo, diferencia-se na unidade, facto que também encontramos nos grandes movimentos históricos, por exemplo: nas origens do Cristianismo, no Islão, na Reforma. As infinitas disputas teológicas que dividiram os cristãos nos primeiros séculos não são por isso expressão de fraqueza, mas sim de vitalidade.
Na realidade, o movimento é sempre o produto do nascer e renascer de muitos núcleos de movimento que depois confluem - numa quantidade mais ou menos grande - no mesmo rio e só em certos casos convergem para uma única organização, seja ela um partido ou uma igreja.
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OUTONO QUENTE E MOVIMENTO SINDICAL
Milão, Fevereiro de 1970.
No Outono de 1969 eclodiu um outro movimento. Constituiu-se entre os metalomecânicos, entre os trabalhadores, sobretudo jovens. Este movimento não é reconhecido como tal. Os meios de comunicação de massas chamaram-lhe «Outono Quente». Os sociólogos consideraram-no um «ciclo de lutas» sindicais especial.
Mas está errado. O processo colectivo que aconteceu nas fábricas, no Outono de 1969, tem todas as características de um novo movimento. Nele existem o entusiasmo do estado nascente, o fim das divisões entre operários do Norte e do Sul, a fraternidade, a ruptura com a organização sindical, a recusa da delegação, o emergir de chefes carismáticos, a esperança de concretizar o fim da alienação, aqui e agora.
Numa primeira fase, os sindicatos foram postos de lado. Os operários recusavam-se a reconhecer a legitimidade dos dirigentes sindicais. Eles queriam auto-organizar-se, rejeitando todos os tipos de delegação. No máximo dos máximos, aceitavam enviar os seus próprios «porta-vozes» que depois voltavam para informar a assembleia.
Este processo é típico de todos os movimentos que se encontram no estado nascente. O chefe não é reconhecido como tal. Ele é apenas o porta-voz do grupo, da assembleia. A soberania cabe ao grupo reunido, à assembleia, nunca é delegada. Na verdade, é o chefe que guia o grupo, que lhe dá as directivas, mas isso não deve dizer-se, não deve nem mesmo pensar-se. O chefe deve sempre remergulhar no grupo, o qual, depois, o elevará como força da sua expressão, como ele próprio.
No caso do movimento dos operários esta desconfiança na delegação é ainda maior porque eles querem tirá-la ao sindicato. Contudo, pouco a pouco, o sindicato retoma o controlo do movimento.
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A assembleia - dava-me vontade de dizer o Soviete - não pode ficar perpetuamente reunida, não pode examinar todos os problemas. Os operários devem trabalhar e os porta-vozes adquirem sempre maior autonomia. Assim, aqueles com experiência sindical acabam por se tornar indispensáveis. Mas até Trentin, Carniti e Benvenuto, se querem ver reconfirmado o seu poder, devem remergulhar no grupo, devem participar nestas assembleias inflamadas, excitantes, gritantes, que duram horas. Depois, devem ser eles também a estar à cabeça das manifestações, marchar ao som dos tambores, de bidões de lata, de slogans de qualquer tipo. É neste magma que se reconstitui o seu poder, mas se ficassem de fora, fechando-se numa qualquer secção, esvanecer-se-iam em pouco tempo.
Só depois, quando o movimento for de novo sindical, ou melhor, quando voltar a ser uma organização sindical, poderão ir para Roma e mostrar-se somente nas manifestações oficiais.
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AMARGURA E INCERTEZA.
FIM DE UMA AVENTURA
Trento, Março de 1970.
A minha aventura em Trento acabou. Decidi entregar a minha demissão de Reitor. Dentro em breve, terá lugar nas ruas a batalha que tem alinhados, de um lado, os estudantes, e do outro, as forças da ordem e a população. Eu evitei-a durante cerca de um ano e meio, mas agora surgiram dois factores novos que fogem ao meu controlo.
O primeiro é a partida de Trento de toda a liderança do movimento estudantil. Com o final do ano escolar foram-se embora: porque há quem se tenha licenciado, quem se tenha casado, quem tenha ido trabalhar e quem prossiga na actividade política, mas noutro lado.
O segundo factor: o número de alunos inscritos aumentou para o dobro. A nova massa de caloiros é completamente diferente. Os rapazes que criaram o movimento eram uma elite. Estudavam e tinham descoberto por conta própria as ideias em que acreditavam. Depois, graças ao movimento, tornaram-se uma comunidade organizada, com um verdadeiro grupo dirigente, com uma disciplina, e por isso sabiam tomar uma decisão e levá-la a cabo.
Os novos caloiros abundam pelas ruas de Trento porque a consideram a cidade santa do movimento estudantil italiano. Não estudam, não pensam e têm a cabeça cheia de ideias marxistas revolucionárias completamente confusas. Falam de movimento, mas não são um movimento, não são nem mesmo uma comunidade. São um bando de pessoas, um agregado, sem liderança, sem projecto.
Aos meus olhos, eles constituem a demonstração clara de que não basta uma ideologia comum para criar um movimento. A ideologia comum cria apenas uma massa amorfa que vai na mesma direcção.
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São seguidores sem chefe. São a cauda de um movimento decapitado. Só sabem repetir fórmulas, declamar slogans que já ouviram, fazer gestos que viram fazer a outros, ou dos quais ouviram falar.
Eles dão-me, com a sua presença, a demonstração clara de que não basta o desejo de violência, um adversário, um inimigo, para criar a solidariedade de um movimento.
Este bando amorfo tem uma aspiração desordenada no sentido de ocupar a universidade, de confrontar-se com a polícia. Ao quererem ocupar algo, ocuparam a sede da Casa do Estudante, que eles próprios dirigem - isto é como quem diz, ocuparam-se a eles próprios. E dado que ninguém os mandava embora, foram arranjar arame farpado para se transformarem em sitiados.
Os trentinos que, durante um par de anos, suportaram mal esta massa de meridionais barulhentos que lhes invadiram a sua pachorrenta cidade, não vêem a hora da polícia lhes dar uma solene tareia. Por essa razão, uma e outra parte preparam-se para o embate, o qual acontecerá inevitavelmente com satisfação recíproca. Depois das pancadas às cegas, bastará fechar as inscrições por um ou dois anos, esperar que também as outras universidades introduzam a faculdade de Sociologia e de Psicologia, e a Universidade de Trento tornar-se-á pequena, sem importância.
Antes que aconteça tudo isto, eu já me terei demitido. Reunirei o último plenário de professores e farei o meu relatório não em prosa, mas em verso, em estrambotes.(nt) Que ao menos o meu reitorado acabe em alegria, com gargalhadas.
nt. O autor utiliza o termo plenum.
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Prever o futuro
Milano San Felice, Novembro de 1971.
Depois de deixar Trento fiquei seis meses em casa de Giorgio Fuà, em Ancona, para estudar economia. Depois decidi constituir a Comunità di Ricerca Sociale (CRS) — Comunidade de Pesquisa Social. Arranjei também os financiamentos, graças à generosidade de Piero Bassetti e de Carlo Bonomi, bem como uma sede em Milano San Felice.
Muitos dos meus amigos estão comigo: Giancarlo Mazzocchi, Roberto Guiducci, Mario Monti, Romano Prodi, Franco Momigliano, Siro Lombardini, Guido Bortone, Umberto Colombo, Nino Andreatta, Giacomo Corna Pellegrini, Marino Livolsi e também Alberto Martinelli, Giorgio Benvenuto e muitos outros. Faremos dois seminários por ano, em que nos esforçaremos por prever que coisa acontecerá nos seis meses sucessivos e nos próximos seis anos. Seis meses depois, encontrando-nos, verificaremos onde errámos e porquê.
Ninguém pode conhecer o futuro. Mas o exercício de previsão e o controlo das nossas previsões é um método interessante para verificar os nossos conceitos e instrumentos de análise. É fácil encontrar uma explicação para os factos que ocorreram. Todos sabemos fazer esmerados raciocínios ex post (NT). Tentemos fazê-los antes, dissemo-nos, e veremos se os factos nos darão ou não razão.
Estou a preparar o relatório para o próximo seminário. Começo por perguntar-me que coisa fará o movimento estudantil. Penso que se comportará como em França, originará pequenos partidos. É a consequência da instalação ideológica marxista que vê no partido
NT. Expost facto, locução latina, muito usada na Jurisprudência, significa depois do facto.
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a vanguarda da classe. Estou certo de que os operários não confluirão para estes partidos. O movimento das fábricas será absorvido pelo sindicato e revitalizá-lo-á.
Participando nas reuniões dos metalomecânicos, pude ver que se está a formar um novo sindicato unitário, ainda que seja limitado só a esta categoria, mas que acabará por comprometer todos os outros.
Quero arriscar uma previsão. Os líderes dos metalomecânicos, Carniti e Benvenuto, acabarão por dominar a sua Confederação. Apenas Trentin não o conseguirá fazer porque o Partido Comunista nunca quis ditar as regras dos movimentos, mas sempre pretendeu controlá-los. Ele não será o chefe da CGIL (Confederação Geral Italiana do Trabalho).
Quando o movimento tiver unificado as três confederações, o novo sindicato terá um poder imenso, até mesmo sobre o governo.
Porém, é já muito profunda a influência do sindicato sobre os estudantes. Muitos deles começaram a olhar para os trabalhadores e para o movimento sindical como uma força de vanguarda e abandonaram a universidade. Defendem que o movimento operário realizará melhor e mais plenamente o objectivo do movimento estudantil. A este fenómeno, em que o novo movimento arrasta o precedente, dei o nome de processo de arrastamento.
Existem, no entanto, membros do movimento estudantil que procuram resistir e se autodefinem, de uma forma marxista, como a vanguarda dos trabalhadores. São deste tipo os partidos Trabalhadores pelo Socialismo e Luta Continua.
Eles não surgem de um movimento próprio. São o produto de uma parte da elite do movimento estudantil que, vendo emergir o novo sindicato, se institucionaliza como Partido Marxista Revolucionário. Apresentam-se como guias das massas.
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INCOMPREENSÃO
Edimburgo, Março de 1972.
O meu livro Estado Nascente teve uma certa ressonância, mas provocou-me uma forte desilusão. Gianfranco Poggi convidou-me a ir a Edimburgo, onde é assistente de Tom Burns.
Burns soube das minhas pesquisas no campo dos consumos, realizadas há dez anos atrás, e pediu-me para publicar Consumos e Sociedades, em inglês, com a editora Penguin Education, enriquecendo a obra com algumas actualizações. Eu juntei-lhe então, como parte final, três capítulos sobre o enamoramento e sobre os movimentos porque, do meu ponto de vista, eles constituem a continuação lógica. Quando Tom Burns os leu em inglês, enfureceu-se. Não quis sequer discuti-los. Disse a Poggi que eram inaceitáveis, que não podiam ser publicados. Assim, a tradução foi posta de lado.
Estou indignado. A recusa de Tom Burns é irracional. Contudo, intuitivamente, compreendi a causa. Ele ficou escandalizado porque um sociólogo tratou um tema frívolo, de bisbilhoteira, de romance cor-de-rosa, como o enamoramento. Ele não percebeu que há um desenvolvimento lógico da teoria dos consumos à teoria dos movimentos e que a sua «chave de ouro»(nt) é o conceito de estado nascente. Não percebeu que o enamoramento é apenas o instrumento para mostrar a sua dinâmica. Não percebeu que o seu estudo é a porta para compreender fenómenos extremamente mais complexos e grandiosos.
NT. O autor utiliza a expressão la chiave di volta, que significa o fecho da abóbada e é normalmente usada em contextos arquitectónicos. O tradutor resolveu adaptar a expressão dando-lhe um significado, próximo daquele que a expressão adquire no original, isto é, como ponto de união, de ligação, das duas teorias apresentadas. A expressão surge mais vezes na obra e o critério do tradutor foi sempre o mesmo.
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Sei que é impossível convencê-lo a ele e aos outros como ele. São todos umas cachimónias conservadoras. Infelizmente, são eles que decidem o que é a ciência e o que não o é. São eles que controlam as publicações que contam.
A espécie dos aristotélicos não se extingue, mesmo apesar de chegarem sempre tarde, como na época de Galileu, e, como agora, em que te pedem para renunciares às tuas ideias e te alienares no bando.
Está a suceder outra vez tudo aquilo que acontecia quando eu estudava o vedetismo e os consumos. Os académicos não conseguiam considerá-los assuntos sérios, olhavam-me com um sentimento de compaixão. Foram precisos mais de dez anos para que as coisas mudassem, para que também um ilustre professor anglo-saxónico como Tom Burns, progressista iluminado, me pedisse um ensaio sobre os consumos.
Contudo, no entretanto, eu segui em frente. Descobri novas relações, novos fenómenos. Descobri-os naturalmente, nos terrenos inexplorados, proibidos, vergonhosos, para onde ninguém ousa olhar. E, por isso, mais uma vez, ao trazer comigo as minhas primícias, sou rejeitado, afastado.
Mas, também desta vez, não farei nenhuma renúncia, nenhuma concessão, nenhum compromisso, nenhum retrocesso. Não publicarei nem mesmo a parte do livro que lhes agrada. Ignorarei as academias, ignorarei os eruditos, ignorarei as casas editoras. Ignorarei, por fim, as boas maneiras e dedicar-me-ei à construção sistemática da minha teoria.
Deixarei todos os meus cargos na International Sociological Association (Associação Internacional de Sociologia) e não irei mais aos congressos. Enclausurar-me-ei para ler, estudar, escrever. Só sairei quando tiver acabado.
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A EXPLORAÇÃO DO NOVO CONTINENTE.
MOVIMENTO E INSTITUIÇÃO.
Catânia, Janeiro de 1974.
Respeitei o meu compromisso. Transferi a minha cátedra para longe, para a Catânia, onde Franco Leonardi reuniu à sua volta muitos e caros amigos como Alberto Spreafico e Magda Talamo. Eu moro num hotel à beira-mar - o La Baia Verde. Estou só. De manhã vou à universidade e, depois, com uma saca de livros, venho trabalhar diante deste estupendo mar cor de violeta.
Mantenho-me longe da política, dos debates, das disputas ideológicas que aqui chegam obsoletas, com um atraso de anos. Interessa-me apenas a teoria, a teoria pura, que torna transparente as motivações das nossas acções colectivas, sensatas e não sensatas.
A teoria não descreve a realidade, dela aproveita o princípio ordenador. Não incorpora avaliações, não visa indicar aquilo que é justo e aquilo que é injusto. Deixa-te livre para caracterizar o significado dos fenómenos, das acções dos homens no tempo e no espaço, mas só depois de ter sentido, reflectido, confrontado. Ela é límpida, evidente.
Neste período procuro clarificar a característica fundamental do estado nascente, dos movimentos e da sua relação com as instituições. Eles são dois mundos opostos, incompatíveis, incompreensíveis um ao outro. No entanto, um nasce do outro, é seu descendente. Mas, no mesmo momento em que se proclama seu herdeiro, quanto mais certo está desta herança, mais a trai. Vejamos como acontece e porquê.
Quem participa num movimento, especialmente no seu estado nascente, vive o momento mágico do despertar, da revelação, da iluminação. Sente-se um privilegiado, um ser renascido. Ele faz de tudo para demonstrar que a instituição em que sempre viveu e em que acreditava é violenta, hipócrita, enganadora. Que só está de pé graças a
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um emaranhado de interesses existenciais e económicos. Ele descobriu que a instituição ficou assim porque perdeu toda a espontaneidade, a sinceridade, a nobreza do estado nascente, e isto que restou é uma «coisa» sem alma, surda e cega.
Pelo contrário, quem está dentro da instituição e lhe adere, observa o renascido como quem observa um demente. Um louco que não conhece e não compreende a verdadeira natureza do mundo e dos seres humanos. E, algo ainda mais desconcertante, aquele demente quer realizar, aqui e agora, um universo de benevolência, de fraternidade, de paz, onde não haja mais egoísmo, interesses opostos, conflitos. Onde não haja mais dor. Por isto se rebela, infringe as leis, insulta aquilo que para os outros é sagrado. Mas, o louco não vê que quer ele, quer os seus companheiros são movidos pela ambição, pela paixão, pela vontade de poder, exactamente como acontece com os guardiões da instituição - aqueles que ele critica e combate.
São dois modos de sentir e de pensar contrários, incompatíveis.
Mas, se o ente renascido falhar, se ele não conseguir realizar o seu projecto, o guardião da instituição ri de satisfação. Contudo, se ele consegue prosseguir, do movimento emerge, pouco a pouco, a nova instituição. A procura apaixonada de um novo mundo produz uma comunidade com as suas regras, as suas amizades, as suas leis. O magma incandescente gera um partido, uma nação, uma igreja. A nova instituição, no entanto, não realiza todos os sonhos e esperanças de onde emergiu. Os seus construtores tiveram de fazer os cálculos com a realidade.
Mas ela nasceu, é nova e terá os seus ritos. E para viver, tem necessidade de celebrar a sua origem, de voltar aos seus valores fundadores. É assim que os cristãos comemoram o Natal, a morte e a ressurreição de Cristo, os muçulmanos a Hégira, os hebreus o Êxodo e a Terra Prometida. Comemoram o tempo divino das origens, quando tudo estava mais próximo da perfeição. Contudo, quanto mais passa o tempo, mais longe fica esta origem divina, e a instituição esclerosa-se mais uma vez. As pessoas perdem a fé e o arrebatamento. Repetem, cada vez com menos convicção, os rituais que celebram o seu nascimento. Cresce a indiferença e a irritação. Crescem as dúvidas e cresce a tensão.
Ainda assim, a instituição resiste com tenacidade à mudança, e por isso, quando a mudança acontece é sempre inesperada, imprevisível e traumática. É uma onda de desordem e de violência, de revolta
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e de protesto. Mas, ao mesmo tempo, é um recomeçar, a formação de uma nova comunidade dotada de um projecto. A onda é um novo estado nascente, um novo movimento.
Nesta perspectiva, a história aparece como um contínuo surgir de movimentos que se opõem às instituições de que nasceram. Muitos deles apagam-se, outros são sufocados. No entanto, alguns transformam-se em instituições que às vezes alimentam as instituições existentes, outras vezes, tomam-lhes o lugar. Mas, também para a nova instituição, no momento em que nasce, abre-se o registo do tempo. Também ela envelhecerá e estará destinada a ser desafiada por outros movimentos que surjam do seu seio, num ciclo sem fim.
Somente os movimentos geram as instituições. Apenas os movimentos criam os valores de que a instituição vive, só os movimentos revitalizam as instituições, desafiando-as. A instituição é, por isso, o destino do movimento, e o movimento é a nascente e a alma da instituição.
Para este mecanismo subterrâneo que tece a história, qualquer que seja a comunidade organizada está sempre dividida entre dois pólos, sempre em contradição consigo mesma, em todos os momentos. Tem um ideal que não pode realizar e uma praxe que não pode justificar. Mas esta é a perspectiva de quem olha de longe, de quem observa o evento e aquilo que acontece com a intenção de apanhar-lhe o sentido.
Quem, pelo contrário, está imerso no acontecimento, quem está na instituição ou no movimento, vê o mundo da sua perspectiva unilateral. Ele é levado a pensar que a sua instituição, ou o seu movimento, é algo de único, inconfundível, não comparável a nenhuma outra.
Nestes últimos anos, quer sejam os estudantes do movimento estudantil, os operários de um sindicato a que já fizemos referência, as feministas, ou por fim, os independentes, estão todos convencidos que representam o ponto mais alto da história. Os únicos que sabem como alcançar a verdade, a justiça. A possuir o segredo da redenção. E aqueles que os combatem estão igualmente convencidos de que conduzem uma guerra santa contra a desordem, a loucura e a degradação.
O sonho daqueles que fazem parte do movimento é este: perpetuar o estado nascente, torná-lo eterno. É um sonho recorrente de todos os movimentos, mas é uma ilusão. O estado nascente não pode perpetuar-se porque, se se tenta fazê-lo, transforma-se instantaneamente em instituição. Quanto mais rápida e totalmente tenta objectivar-se, tanto mais produz um ordenamento fanático e totalitário.
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Todas as assembleias calorosas que não quiseram fixar limites a elas próprias, regras democráticas, e procuraram fazer uma democracia directa, transformaram-se sempre em despotismo.
Aqueles que tratam os indivíduos do movimento como loucos, agem como aqueles velhos que fingem nunca terem sido jovens. Fingem não saber que a instituição que defendem nasceu de um movimento, nasceu da mesma maneira.
A instituição, por si só, seria totalmente privada de valores, de motivações, de sentido. Uma forma pura, uma concha vazia. E em vez disso, vive exactamente porque tem no seu núcleo central a esperança do estado nascente. A aspiração a uma vida justa, autêntica, sincera, a aspiração a uma relação de fraternidade. Vive exactamente porque tem aquele sonho de redenção da dor e da violência. Por isto, conserva viva a recordação, proclama os princípios. E, se quer arrastar, mobilizar, fazer bater os corações, é sempre em seu nome que deve falar.
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A SOLIDARIEDADE PRECISA DE UM INIMIGO?
Milão, Junho de 1975.
As Brigadas Vermelhas já mataram dois amigos meus, o jornalista Walter Tobagi e o magistrado Alessandrini. Certamente que todos nós estamos na mira do Centro Nazionale di Prevenzione e Difesa Sociale, onde tenho o escritório.
Mas eu, para além de estar na mira da extrema esquerda, também estou nas listas de proscrição da extrema direita. O partido neonazi POE(NT) afixou um manifesto em que me condena à morte. Isto quer dizer que aquilo que eu digo não é do agrado de quem quer que seja.
Os movimentos do Maio de 68 deram origem a grupos violentos. Não me surpreende, já o esperava. Já dantes eles eram assim, cheios de violência. Basta pensar nos confrontos de Roma. Os estudantes divertiam-se a fazer guerra contra a polícia.
Têm razão aqueles que dizem que os movimentos são apenas explosões de violência colectiva? Na sua base, afirmam eles, existe um estado de ódio: ódio de classe, ódio dos pobres contra os ricos, dos dominados contra os dominadores, dos colonizados contra os colonizadores, dos filhos contra os pais. Geralmente, este ódio é controlado, mesmo se permanece num estado de ambivalência. Portanto, é na lógica do agir humano que a ambivalência, de vez em quando, rebenta em luta aberta, em guerra.
Por que razão não aceito este esquema tão simples?
O Cristianismo das origens contrapunha-se ao Judaísmo, aos fariseus. Há sempre inimigos. Mesmo no campo científico e filosófico
NT. POE, referência ao Partido Operário Europeu que, ao contrário do que se possa supor pelo seu nome, era um partido da extrema direita.
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não existem sequer duas pessoas que pensem do mesmo modo. Quem escreve um livro encontra logo alguém que o critica. E ele próprio, para o escrever, teve necessidade de criticar um outro qualquer. É como se a nossa cabeça não pudesse pensar sem se opor. Omnis determinatio est negatio - significa que para pensar, devo dizer que não.
No movimento surge a fraternidade porque existe um inimigo comum, dizem muitos.
A solidariedade do movimento, por isso, seria do mesmo tipo da que existe na guerra: todos os que fazem parte de uma entidade colectiva estão de acordo, porque se enfrentam com a entidade colectiva contrária. O acordo entre o «nós» tem como equivalente o desacordo e o embate com o inimigo.
A psicanálise descreveu este processo em termos de exteriorização da violência. A agressividade, eliminada do interior do nosso corpo social, é posta a claro e projectada sobre o inimigo. Mas, o resultado do amor e da violência permanece igual.
Então, não existe nunca uma situação em que a solidariedade, o amor e o acordo se constituam sem um conflito, um inimigo? Nunca por nunca?
Um caso pelo menos existe. Duas pessoas que se enamoram, rebelam-se com a situação existente, rompem com os laços precedentes para criarem um novo, mesmo que elas se oponham. Mas não se unem para combater um inimigo. Claro que quando são impedidas, batem-se pelo seu amor. Contudo, a sua união não nasce da luta contra alguém, não nasce do ódio. E o sentimento que as une não é proporcional ao ódio que experimentam contra um adversário.
Mas, e para além do enamoramento?
Tomemos o exemplo do Culto do Cargueiro. Ao esperar pelo regresso dos antepassados, o melanésio não entra em guerra com os brancos. Destrói a sua própria aldeia, os seus objectos sagrados e prepara-se para receber o grande barco, o cargueiro, que traz os bens dos brancos. Há violência imaginária porque ele imagina uma espécie de expropriação mítica dos expropriadores, mas não há exteriorização, não há luta, não há guerra.
O hippy constitui também um caso diferente. Ele não só não entra em luta aberta com a sociedade, como se isola, afasta-se. Procura construir uma sociedade própria, separada, não violenta, erótica e tolerante, onde evita a competição e a confrontação.
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Outros movimentos lutam contra um adversário, mas estão abertos ao seu apoio. Eles procuram, sobretudo, convencer, converter. O movimento de Martin Luther King era deste tipo. Tinha como objectivo a integração e a fraternidade entre negros e brancos. Os inimigos não são os brancos, mas os racistas. E o ser racista é um modo de pensar que os brancos podem abandonar.
Vejamos agora o caso de um movimento que, depois, se tornou uma verdadeira potência de guerra: o Islão. Maomé, uma vez tida a revelação, quer só pregar a sua fé. São os naturais de Meca que o perseguem, e é por isto que ele se refugia na Medina, mas também aqui são eles que o atacam continuamente. Além disso, no início, ele pensava tornar-se reconhecido como profeta tanto dos hebreus como dos cristãos, porque o seu Alá era o mesmo Deus dos hebreus e dos cristãos. Foram eles que o recusaram como profeta. É só a seguir a estes episódios que os habitantes de Meca, os hebreus e os cristãos, são definidos como «infiéis a converter». Depois da conquista de Meca, todos esperavam por massacres e vinganças. Contudo, ninguém foi morto.
Passemos agora a Lutero. No final da Idade Média as pessoas eram literalmente obcecadas pela ideia de pecado e de inferno. Os pregadores lembravam que os homens eram maus por causa do pecado original e, por apenas um pecado mortal, a alma seria condenada a uma eternidade de tormentos. Lutero sabe que o homem é mau. E está ciente da sua própria malvadez. Então, pergunta-se, angustiado, como pode salvar-se. Até que, ao ler a Epístola aos Romanos, de São Paulo, tem a revelação. Os homens não podem tornar-se bons, não podem eliminar de si próprios cada rasto de maldade e, por conseguinte, mereceriam a danação. Mas isto não sucede porque Cristo os redimiu. Não pelos seus méritos, mas porque os ama.
Basta, por isso, a fé em Cristo para se ser salvo. O cristão não deve angustiar-se, deve antes estar contente, feliz, dançar de alegria, agradecer ao seu Senhor.
Aquilo que Lutero lança pela Europa é uma mensagem de alegria e de esperança. Ele espera que todos a acolham, que a Igreja aceite reformar-se. É a recusa da Igreja de Roma - e a condenação de Lutero — que mete em movimento o confronto. É neste ponto que, para Lutero e os seus seguidores, se constitui o inimigo.
Também o Cristianismo, nos seus princípios, se considerava um movimento no interior do Judaísmo. Tiago, o Justo, e os cristãos
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judaizantes não pensam em deslocar-se para Jerusalém. Será São Paulo a fazê-lo, depois da conversão, mas também ele não renuncia a dirigir-se aos hebreus. São os doutores da lei que o rejeitam e condenam a sua nova e perigosa heresia.
Quanto mais estudo o início dos movimentos, o momento da revelação, da descoberta, do nascimento, mais me dou conta de que não existe ainda o inimigo. Pelo contrário, há o sonho insensato de se poder rebelar contra as mais sacras tradições, de violar as leis, de derrubar os poderes constituídos e pensar em não encontrar oposição, iludindo-se em poder convencer os outros com a palavra.
Mas, os chefes da instituição desafiada reconhecem o perigo e reagem, rejeitando categoricamente a proposta de diálogo, o pedido leviano e ameaçador.
No início, não existe o inimigo, há antes a ilusão de que todos se podem convencer facilmente, de que todos podem aderir à nova fé, pacificamente, sem problemas. No seu estado nascente, o movimento não é particularmente agressivo. Pelo contrário, ele é utópico, ingénuo, megalómano, privado de sentido da realidade. Pretende transformar o mundo, instaurar o reino de Deus na Terra, onde o lobo vive ao lado do anjo, e ignora com desdém as necessidades, os interesses, as tradições, as leis, as hierarquias existentes. Estas, por isso, reagem assustadas e procuram destruí-lo.
Destas posições incompatíveis nasce frequentemente um confronto violento, por vezes sanguinário. Os cristãos perseguidos não estavam em condições de responder de um modo agressivo. Ao contrário, os muçulmanos transformaram-se num exército combatente. Muitos movimentos nacionais obtiveram a independência do seu próprio país com lutas violentas. Pensemos na guerra da libertação nacional dos Estados Unidos contra os ingleses, na guerra do Vietname do Norte, na guerra da Argélia contra os franceses.
Há uma excepção: a libertação da índia sob a direcção do Mahatma Gandhi acontece de forma pacífica. Gandhi consegue-o porque inventa uma estratégia de luta que produz os seus efeitos na opinião pública inglesa, graças à sua imprensa livre. Depois, uma vez obtida a independência, quando o confronto entre hindus e muçulmanos fica confinado internamente, a violência rebenta na índia.
Gostaria de fazer uma última observação que deriva da nossa experiência quotidiana. Em todos os grupos de que fazemos parte,
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a solidariedade forma-se à volta de um objectivo comum, de uma meta. E aumenta quando as coisas vão bem, quando entrevemos o sucesso. Não há absolutamente nenhuma necessidade de um inimigo. Somente as mentalidades paranóicas, apenas os violentos, têm sempre necessidade de ter um inimigo a destruir.
Não é portanto verdade que o movimento nasça contra um inimigo e que se explique com a existência de um inimigo. O movimento, sobretudo no início, não é cimentado no ódio, mas sim numa grande meta, numa grande esperança, num grande sonho.
Recordemos a lenda do grande inquisidor de Dostoievski, na sua obra Os Irmãos Karamazov. Estamos em Espanha. O grande inquisidor assiste à queima dos hereges que condenou à fogueira e apercebe-se que entre a multidão está lá Jesus Cristo, que o olha com uma repreensão muda. O inquisidor ordena que o prendam. E, quando o tem em frente a si, preso com correntes, acusa-o dizendo-lhe: «Tu deste-nos um Evangelho de amor, mas, para manter unida a Igreja, para governar, é preciso a força. A Tua doutrina é incompatível com o mundo. Se for aplicada destruirá a Igreja. Por isso, devo condenar-Te à morte».
Dostoievski tem razão. A Igreja é possível só com uma hierarquia, uma disciplina, das recompensas e das punições. Com a condenação dos hereges. Contudo, também é verdade que sem o evangelho de amor, sem o sublime ensinamento de Cristo, não teria nunca nascido. Foram as palavras do Discurso da Montanha, as palavras do perdão e da esperança, que alargaram o coração dos homens. Foram elas que lhes deram a força para construir os mosteiros, as instituições eclesiásticas, o papado, e para suportar, por fim, a inquisição.
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ESTADO NASCENTE E NIRVANA
Viena, Dezembro de 1975.
Fui convidado a ir a Viena pelo cardeal Koenig para um encontro em que participam, entre outros, Raimundo Panikkar e Mary Daily, uma teóloga feminista radical.
Fiz a minha exposição ontem à noite. E esta manhã, às cinco, Mary Daily acorda-me com um telefonema. Está furiosa. Diz-me que não dormiu porque não consegue perceber como é que eu podia saber aquilo que ela tencionava ler esta manhã no meeting. Fala de um modo agitado, compreendo-a com dificuldade. Proponho-lhe encontrarmo-nos ao pequeno-almoço, às sete.
Chega acompanhada de Raimundo Panikkar. Está furibunda. Tira algumas folhas de um saco enorme. É a sua comunicação. Contém catorze pontos, nos quais defende a necessidade de superar o modelo católico tradicional, afirmando que Deus é mãe e não pai. Mas não compreende como é que dez dos seus pontos correspondem, logicamente, às minhas formulações expostas no dia anterior, no mesmo meeting. É evidente que a plagiei.
Digo-lhe a sorrir que não sou capaz de ler o pensamento das pessoas que conheço, quanto mais o das desconhecidas. Olha-me atónita.
Confrontamos os dois textos. É verdade. Muitos pontos são estruturalmente análogos, apesar do assunto ser obviamente diferente. Explico-lhe que a assonância é compreensível porque, no Ocidente, todos os movimentos na fase nascente têm uma estrutura e categorias semelhantes. Por conseguinte, teria sucedido o mesmo se ela tivesse confrontado o seu texto dactilografado com um texto dos anabaptistas, ou dos anarquistas, ou dos franciscanos, ou mesmo, dos irmãos muçulmanos.
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Ela olha-me estupefacta, enfia no saco as suas papeladas e reforça que isso é impossível porque o feminismo é totalmente novo.
Intervém, então, Raimundo Panikkar, que tinha ouvido tudo a sorrir. Procura convencê-la de que é impossível copiar um trabalho não publicado. Mas ela está fora de si, não se deixa convencer.
Mary Daily foi-se embora e Panikkar diz-me que quer discutir o meu texto. Apreciou-o muito, considera-o muito importante. É verdade, a estrutura fundamental de todos os movimentos, no Ocidente, tanto quanto ele pode recordar, é a mesma. E, em todos, há aquilo a que eu chamo de estado nascente. Contudo, a extinção, o nirvana do Oriente, é algo totalmente diferente.
Paradoxalmente, dever-se-ia falar de «estado moribundo», diz a sorrir. Por consequência, a minha teoria não é universal. Diz respeito ao Ocidente, sobretudo ao Ocidente religioso, de Zaratustra (NT) aos dias de hoje, mas não ao Oriente.
Pergunto-lhe onde irá depois daquele encontro. «Vou para Benares», responde-me, «vou banhar-me nas águas do Ganges sagrado. Um dia, tu também deverias vir».
A observação de Raimundo cravou-se-me na cabeça tal como um prego. Obriga-me a reflectir de novo sobre a teoria do estado nascente no plano teórico. Que relação existe entre o estado nascente e o nirvana? Existe um modelo teórico que possa explicá-los aos dois?
nt. Zaratustra ou Zoroastro, fundador do zoroastrismo ou masdeísmo. Religião primitiva da Pérsia antiga, cujos ensinamentos estão contidos no Avesta. É uma religião dualista, que obriga o homem a escolher entre o Bem e o Mal, atendendo ao Juízo Final, depois do triunfo definitivo do Bem.
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NÃO HÁ NADA MAIS PRÁTICO DO QUE UMA BOA TEORIA
Catânia, Abril de 1976.
Cada um de nós traz consigo a marca dos seus anos de formação. Eu venho da psicanálise e, por isso, sempre desejei reconduzir a teoria dos movimentos ao esquema psicanalítico, mas encontrei algumas dificuldades.
Primeira dificuldade: na psicanálise cada comportamento é reconduzido à activação de experiências infantis através da regressão. Não apenas as neuroses e psicoses, mas também a arte, a religião e todas as actividades criativas em geral.
Pensemos nos escritos de Freud sobre Gradiva ou sobre Leonardo. Até mesmo o enamoramento é habitualmente considerado como uma espécie de reedição da relação simbiótica com a mãe, o efeito de uma regressão, ainda que não patológica.
O que poderia ser, à luz da teoria psicanalítica freudiana, o estado nascente? Uma regressão a um estádio muito precoce do desenvolvimento da libido, quando o sujeito não está completamente separado do objecto, e pelo qual experimenta uma dilatação do eu, uma experiência de omnipotência.
Mas, por acaso é possível, digo a mim mesmo, que tudo aquilo que é novo, criativo, original, tenha de ser sempre de origem infantil? Tenha de ser sempre um retorno ao estado de latência? Em psicanálise não existe o «novo», apenas o reencontrar de algo que se perdeu numa infância mais ou menos longínqua. No máximo dos máximos, segundo a corrente junguiana, a activação de qualquer coisa que já existe sob a forma de arquétipo.
À psicanálise falta o próprio conceito de novo, de criação ex nihilo (NT). Falta-lhe o conceito de mutação.
NT. Ex nihilo nihil significa do nada, nada, isto é, do nada, nada pode vir, nada foi criado; tudo//
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Segundo problema: Freud introduziu dois instintos, o da vida e o da morte, o Eros e a Agressividade. E o sujeito experimenta prazer se descarregar tanto num, como no outro. Mas, se eu firo um amigo meu e se reforço um inimigo meu, experimento desprazer. Dizemos então, com clareza, que o sujeito experimenta prazer quando dirige o amor ao amigo e o ódio ao inimigo. Se faz o oposto sofre.
Terceiro problema: na teoria dualista, a nevrose nasce da ambivalência. Uma relação ambivalente é dominada pela desordem, sem lógica, casual, terrivelmente flutuante. Mas que relação tem a ambivalência com o prazer e a dor Freud não o diz. Pode presumir-se que se apresenta como sofrimento. Um sofrimento tanto maior, quanto mais importante é o objecto. Para evitar este sofrimento, o sujeito procurará reduzir a ambivalência.
Com que meios o sujeito reduz a ambivalência? Melanie Klein diz-nos que os mecanismos principais são os persecutórios e os depressivos. Os primeiros descarregam a agressividade sobre o inimigo, os outros sobre si mesmo, sob a forma de sentimento de culpa.
Contudo, existe um limite, que uma vez ultrapassado, faz com que o mecanismo persecutório deixe de funcionar. A não ser que alguém aceite enlouquecer de verdade. E há também um limite, que uma vez ultrapassado, faz com que o mecanismo depressivo produza a autodestruição.
Chegados a este ponto, todos os caminhos se encontram bloqueados. Os mecanismos da psicanálise já não funcionam. Cresce a ambivalência, cresce o sofrimento e não existem soluções. É neste momento que se coloca em funcionamento um processo de um tipo completamente novo, que a psicanálise não estudou. E são possíveis duas soluções. Uma é o estado nascente, em que emerge um novo objecto de amor, não ambivalente. A outra é o nirvana, em que os objectos são despedaçados. Uma vez desaparecida a ligação aos objectos, também a ambivalência não produz mais dor.
Duas soluções, não uma! Eis a resposta ao problema colocado por Raimundo Panikkar. O Ocidente escolheu a primeira, o Oriente a segunda!
Por conseguinte, para explicar uma explosão colectiva que faz aparecer um novo partido, um novo deus, um novo culto, um novo chefe,
o que existe teve um princípio de que procede. Este aforismo foi tirado de um verso de Pérsio (Sátiras, III), adaptado por Lucrécio, e sintetiza a filosofia de Epicuro.
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uma nova esperança, não é necessário imaginar que exista uma experiência infantil a que se tenha de voltar. Não é necessário imaginar que já tenha existido primeiramente um conflito crónico entre duas classes em luta. O novo surge quando a velha estrutura, a velha forma, o antigo objecto de amor, individual ou colectivo, se tornou demasiado ambivalente. Quando as forças que se rebelam já não podem ser refreadas, nem com mecanismos persecutórios, nem com mecanismos depressivos, nem pela guerra, nem pela repressão, então, a vida irrompe, encontrando um novo caminho, como um rio que derruba as barreiras e escava um novo leito, modelando de novo a estrutura do território.
São importantes os corolários que podem tirar-se na teoria do enamoramento. Muitas vezes, enamoramo-nos de uma outra pessoa, quando nos sentimos negligenciados pela pessoa amada. E não o fazemos porque existe um vazio de afecto, mas porque aumenta a ambivalência que atinge o ponto de ruptura. Então, a libido investe num novo objecto e abandona o velho.
O novo modelo permite-nos ainda compreender porquê. Quando uma pessoa se enamora de outra, não se põe a odiar aquela que já não ama. O mecanismo psíquico é este: reduzindo-se tanto o investimento emotivo, quanto a ambivalência, esta deixa de produzir desprazer.
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O QUE É A INSTITUIÇÃO?
Catânia, Dezembro de 1976.
Como acontece a passagem do movimento para a instituição? Durkheim diz-nos que o estado de efervescência colectiva não dura porque é demasiado esgotante. A passagem verificar-se-ia por uma espécie de esgotamento energético. Weber descreve a passagem do carisma no estado nascente ao carisma institucional mediante a objectivação. Isto quer dizer que o carisma destaca-se da pessoa para aderir a símbolos e objectos transferíveis. Assim, o carisma do chefe passa ao descendente através «do sangue», ou então, é consagrado a uma outra pessoa mediante o ceptro ou a coroa, ou ainda, é-lhe atribuído com ritos legais.
E, se nós não pensarmos nos grandes estados de efervescência colectiva das massas, mas nas acções dos pequenos grupos, se não pensarmos na transmissão do poder, mas na transformação da comunidade ardente de paixão numa organização quotidiana, apercebemo-nos que ambas as metáforas de Durkheim e de Weber são inadequadas.
Eis, digo a mim mesmo, duas pessoas apaixonadas. Cada uma delas vive a outra como se fosse o seu chefe carismático, também no sentido em que uma vê na outra pessoa «sinais» inconfundíveis de carácter extraordinário. Ambas se sentem parte de um «nós» solidário. Em certos momentos sentem ser a meta da mesma entidade viva, sentem ter uma só alma.
Então, por que razão prometem, juram, uma à outra, amor eterno? Porque sentem que a sua ligação não está completa se não lhe juntarem a vontade, o compromisso, o pacto. Por esta razão querem casar-se. Para reforçar, com uma decisão solene, em frente da colectividade, a sua união. Por esta razão, no estado nascente, existe já o embrião da instituição.
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O «amo-te» é ao mesmo tempo uma promessa e um compromisso. O enamoramento tem em si mesmo, desde o início, algo que tende a estabilizá-lo, a torná-lo permanente, a transformá-lo numa instituição. Não tem nada que se esgote, como quereria Durkheim, não tem nada que se objective, como quereria Weber.
Direi ainda mais. Até para nos apaixonarmos é preciso uma adesão da vontade, mesmo que seja momentânea. Exactamente como acontece na hipnose. Nós resistimos ao amor, dizemos que não, até um certo momento em que «nos rendemos», até quando a nossa vontade se coloca, também ela, ao lado do amor, querendo-o, aceitando-o. Então, abandonamo-nos, e é nesse momento que acontece o «amor à primeira vista», o «arrebatamento».
No estado nascente, além disso, existe o dilema. O indivíduo está dilacerado entre o velho e o novo. O que faz pender a balança definitivamente na direcção do novo? O que corta o dilema como a espada de Alexandre cortou o nó de Górdio? - A vontade.
A vontade é a «chave de ouro» da instituição. Ela escolhe e torna irremediável uma das duas alternativas, colocando em movimento uma cadeia irreversível de consequências.
Além disso, no estado nascente não existe apenas o processo de fusão, existe também o de individualização. Todos os membros têm o seu projecto pessoal de vida. O projecto colectivo nasce, por isso, de entre os debates, perorações, conflitos. No campo do amor, os dois apaixonados têm também projectos diferentes, por vezes incompatíveis. Têm os pontos de não retorno.
Com o pacto, cada um deles saberá que o outro não lhe pedirá aquilo que não pode pedir. Esta certeza, encontrada no desespero, constitui o ponto final da confiança recíproca: a instituição de reciprocidade. Sei que amo e não posso não amar, sei que tenho um limite que não posso não ter, e aceito-o. Mas aceito-o com todo o ímpeto da minha paixão, da minha dedicação, sem reservas. O pacto é um abraço, é um juramento.
O ponto de não retorno é algo de essencial (um valor), ao qual não podemos renunciar sem nos trairmos a nós mesmos e ao nosso amor. Dado que os amantes querem realizar os seus desejos profundos e não se conhecem ainda, muitas vezes, pedem ao outro para ultrapassá-lo. Ele, desespera-se ainda mais, não pode ceder, e o amor corre um risco mortal.
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Para que se possa consolidar um amor recíproco, é necessário que cada um aceite o ponto de não retorno do outro e o tome como verdadeiro limite, comprometendo-se a não o ultrapassar. É este o pacto.
O pacto, ao estabelecer um limite às exigências mútuas, instaura o direito inalienável de cada um. Confirma, com um compromisso solene, a unidade dos amantes e, ao mesmo tempo, estabelece o valor e o respeito da sua diversidade. O pacto é a essência da instituição. Só o pacto, enquanto funda os direitos inalienáveis, se torna no ponto de partida para reorganizar a existência quotidiana.
É graças a esta extraordinária dinâmica, que o grupo no estado nascente, se conseguir ultrapassar as provas, cria uma visão comum do mundo e um código de comportamento que lhe assegura a duração. A primeira corresponde à ideologia dos grandes movimentos. O segundo, à sua carta constitucional, aos seus estatutos.
A energia criativa e fluida do estado nascente objectiva-se em estrutura, transforma-se em princípios, regras, pactos, normas, compromissos solenes. Estes pactos têm o poder de durar precisamente porque nascem no clima incandescente da paixão, o momento máximo da união e do impulso criativo.
Esta solução do problema da instituição permite dar o peso justo aos interesses, ao cálculo racional, à mediação, à negociação, que são uma parte tão importante no nascimento das formações sociais, quanto o estímulo à solidariedade e à fusão.
A solidariedade e a fusão são mais intensas, importantes, no início do processo que chamámos de estado nascente. As normas e o pacto são indispensáveis ao seu desenvolvimento e à organização sucessiva. São indispensáveis para que aquilo que nasceu, viva e dure no tempo.
É, por isso, um erro pensar que basta a espontaneidade do estado nascente para criar uma instituição. Mas é um erro igualmente grande pensar que basta o cálculo racional dos custos/benefícios.
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A DESCOBERTA DE UM NOVO PLANETA
Catânia, Março de 1977.
Confiei à editora Il Mulino o meu livro Movimento e Instituição. Penso que dei um contributo à Sociologia. Pelo menos, identifiquei e descrevi um objecto social novo, que ninguém nunca estudou até hoje. É o objecto social que se inicia com o estado nascente, que depois se transforma em movimento e produz uma instituição.
Ele pode ser das dimensões mais diversas. Desde o casal que se forma com o enamoramento à seita, à igreja, até aos que eu chamei de civilizações culturais:, o Judaísmo, o Cristianismo, o Islão e o Marxismo. Inúmeras instituições nascidas de movimentos que, no entanto, dão a sua linguagem aos movimentos sucessivos que surgem no seu interior para as desafiar.
Mas, é exactamente dos seus desafios, dos novos sonhos, das novas esperanças, que brota a linfa vital para a instituição. É precisamente esta linfa que permite às civilizações durarem durante séculos, durante milénios.
Este objecto social, se bem que o tenhamos todos visto, nunca foi descrito e nunca recebeu um nome.
Tentemos confrontá-lo com outros objectos sociais bem identificados e com uma clara paternidade. O primeiro é a Gemeinschafi de Tõnnies. Em italiano a expressão é traduzida como comunità (comunidade) e indica uma formação permanente, tradicional, constituída de pessoas que compartilham hábitos e valores, com um sentido de pertença. Disso temos um exemplo na aldeia ou na cidade antiga - a polis. Podem-lhe também ser incluídos os povos que têm uma forte consciência étnica.
Ao contrário da comunidade, a Gesellschafi, a società (sociedade) de Tõnnies é artificial, voluntária. Ela não nasce nem do impulso
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ardente do estado nascente, nem da tradição. Ela surge da livre vontade dos associados e do contrato que estipulam.
O exemplo mais típico desta formação social é a empresa que nasce de um pacto estipulado por pessoas com interesses económicos. Não é necessário que tenham tradições ou valores comuns. Não é necessário que tenham os mesmos fins universais, não é necessário que se amem ou que se estimem. Basta que lhes convenha associarem-se para perseguir um determinado objectivo pessoal.
É assim que Hobbes e Locke imaginam que nasça o Estado. Ele surge de muitos indivíduos em luta entre eles - homo homini lupus(Nt) - os quais, descobrem que é do seu interesse unirem-se para terem a vida segura e poderem fazer os seus próprios negócios em paz. Um acto que não pressupõe nenhuma afinidade, nenhum sentimento de solidariedade, nenhuma comunhão afectiva, mas apenas a descoberta da vantagem prática que dele deriva. Este princípio foi depois adoptado como fórmula geral do pensamento jurídico, ético, político e sociológico dos anglo-saxónicos.
Em resumo, a comunidade descrita por Tõnnies é caracterizada pelo sentido de pertença e pela partilha de valores, contudo, não nasce, não se forma, existe em virtude da tradição. A sociedade nasce, forma-se, mas não é cimentada por emoções colectivas e por valores.
Quando Durkheim estabelece a diferença entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica segue um pouco a mesma distinção. A solidariedade mecânica cria-se num grupo de indivíduos que, precisamente porque vivem lado a lado por toda a vida, de geração em geração, pensam e sentem do mesmo modo. Têm em comum ideias e valores. Pelo contrário, a solidariedade orgânica nasce da complementaridade dos interesses recíprocos.
A primeira é típica das sociedades primitivas, imóveis, tradicionais. A segunda é típica das sociedades modernas e dinâmicas.
Seguidamente, Durkheim apercebe-se que existem estados de intensa solidariedade fundada sobre valores, sobre emoções, mesmo nas sociedades modernas. São os momentos criativos a que ele chama efervescência colectiva e da qual podem nascer os ritos que reactivam a solidariedade. No entanto, a Durkheim nunca lhe passou pela cabeça
NT. Homo homini lupus (Plauto, Asinaria, II, 4, 88) significa: o homem é o lobo do homem. Alusão à ferocidade com que os homens procuram prejudicar-se mutuamente.
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que todas as comunidades, os povos, as nações, os partidos, as igrejas possam começar debaixo do estímulo da solidariedade mecânica e depois consolidarem-se através da solidariedade orgânica.
Do mesmo modo, Weber pensa que o poder carismático, baseado na paixão e na fé, é típico das sociedades antigas, e o poder legal é típico das modernas. Ele, além disso, descreve a passagem do carisma no estado nascente ao carisma institucionalizado ou objectivado, mas defende que ele está sempre ligado a uma pessoa e ao poder. Ele não pensou que pudesse ser uma força que gera, cimenta, auto-organiza uma comunidade.
Ao contrário, o novo objecto social por mim descrito tem uma história de vida. Inicia-se com uma rotura, uma explosão de esperança, depois cria um campo de fusão e de solidariedade e através de projectos e pactos torna-se estrutura. No final transforma-se numa formação quotidiana, tradicional.
Os outros autores faziam-lhe sempre uma fotografia, uma fotografia instantânea. A comunidade de Tõnnies é a fotografia instantânea de uma comunidade tradicional, como a solidariedade mecânica de Durkheim. A sua efervescência colectiva, pelo contrário, é uma fotografia do movimento. Hobbes e Locke fotografam o momento em que se forma a instituição.
Contrariamente, o objecto social que eu descrevi é uma comunidade vista no seu ciclo vital. Poderemos mesmo chamá-lo de movimento-instituição.
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A VIRAGEM.
A DERROTA DAS BRIGADAS VERMELHAS
Milão, Maio de 1978.
As Brigadas Vermelhas mataram o presidente Moro. As pessoas perguntam a si mesmas o que é que eles querem, o que acontecerá.
Comecemos pela primeira pergunta: O que é que eles querem? Escrevi-o num editorial do Corriere della Sera. Querem instaurar uma ditadura marxista-leninista na índia. É o que sempre quiseram os movimentos marxistas revolucionários desde a sua origem, no ano de 1967.
Não podem existir dúvidas a propósito disso porque eles repetiram-no de todos os modos, de todas as formas. Querem fazer exactamente aquilo que fizeram os seus modelos: Lenine, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, os comunistas vietnamitas.
A diferença entre as Brigadas Vermelhas e os outros movimentos surgidos nos anos sessenta/setenta, está no tipo de análise política e nos meios adoptados. As Brigadas Vermelhas escolheram a luta armada clandestina. Elas querem impelir o Estado a uma dura repressão que crie as condições para uma mobilização armada de toda a esquerda. Visam criar uma guerrilha revolucionária do tipo da cubana. Elas pensaram sempre que a situação italiana fosse semelhante à sul-americana. Além disso, acreditam que têm um forte consenso popular e a total adesão da base comunista.
Na verdade, a gente comum considera-os como pouco mais do que bandidos. E os comunistas, mesmo que lhes tenham simpatia, pensam em conquistar o poder de uma maneira diferente, isto é, penetrando gradualmente as instituições, a cultura, a escola, a magistratura, até obterem a hegemonia sobre a sociedade.
E agora passemos à segunda pergunta: O que acontecerá? A resposta apresentou-se-me clara, esta manhã, quando vi desfilar, logo depois
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da notícia da morte do presidente Moro, um único e imenso cortejo em que estavam misturadas as bandeiras vermelhas do Partido Comunista, as brancas e azuis da Democracia Cristã e as bandeiras dos outros partidos. Nunca tinha acontecido antes. Durante dez anos apenas desfilaram bandeiras vermelhas. Isto quer dizer que todas as forças políticas se coligaram contra elas e que as Brigadas Vermelhas ficaram completamente isoladas.
Se, até hoje, tiveram algum apoio nas fileiras da extrema esquerda, se acreditavam que podiam mobilizar a população, hoje, sabem que têm toda a gente contra. E isto, para a sua teoria da guerrilha, é uma catástrofe. O guerrilheiro, repetiram continuamente, deve mover-se «como peixe na água», contando com conivências, cumplicidades, apoios secretos. «Agora, já não há mais água.»
Estou convencido de que isto é o fim da luta armada e que é também o fim da época dos movimentos marxistas revolucionários em Itália.
A era dos movimentos iniciou-se em 1967 com o movimento estudantil e continuou com o sindical. Expressou-se em partidos como o Manifesto, Trabalhadores para o Socialismo e Luta Continua.
Reacendeu-se com o movimento dos independentes de 1977, que deu muitos recrutas ao partido armado. Este período durou assim tanto tempo porque sempre teve apoios, cumplicidades, conivências na extrema esquerda marxista e católica.
Hoje tudo acabou. As Brigadas Vermelhas, privadas de protecção e de perspectivas, acabarão destruídas pela magistratura e pela polícia.
Acaba uma época. Noutras nações, nos Estados Unidos, em França, na Alemanha já acabou faz tempo. Na Itália continuou até hoje porque o marxismo tinha um enraizamento mais profundo, comparável apenas ao alcançado em alguns países latino-americanos, ou nos países do Leste. Mas agora, até nós estamos a alinharmo-nos de novo com os outros Estados do Ocidente.
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A MUDANÇA DE ÉPOCA DOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS
Nova Iorque, Outubro de 1979.
Enquanto estava a escrever Movimento e Instituição, alguns dos meus colegas perguntaram-me por que razão junto com os movimentos políticos e com os éticos eu coloquei também os religiosos. São uma coisa do passado, diziam-me. Agora tudo é político. Não, respondia eu. As civilizações culturais não desaparecem em poucos anos, e as grandes categorias do espírito ainda menos.
Por isso deixei o capítulo sobre movimentos religiosos. E tive razão. Pelo contrário, estou convencido de que eles terão um peso muito importante no futuro.
Para começar, iniciou-se um processo de revitalização do Islão. A crise petrolífera de 1973 não poderia nunca ter acontecido se não se lhe tivesse juntado uma nova solidariedade islâmica.
Comecei por isso a estudar a história islâmica e os movimentos que enriqueceram esta religião. Estou igualmente convicto de que o Irão, pela sua história político-religiosa singular, está destinado a ter um papel importante.
Quando rebentaram as primeiras revoltas e Khomeini apareceu em cena, eu pedi à Comissão Fulbright uma bolsa de estudo para realizar uma viagem pelas principais universidades americanas. Queria ver como os meus colegas estavam a estudar este fenómeno.
Os americanos devem ter ficado muito estúpidos com a minha indagação, e acreditaram que eu me interessasse pelo problema hebraico-palestino. Deduzo-o do facto de eles não se terem poupado a esforços para procurar-me encontros com pessoas do mundo hebraico-palestino.
Despreocupado com o equívoco fiz a minha volta pelas universidades. Só que não encontrei ninguém, digo ninguém mesmo,
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que se ocupasse da revitalização do Islão. Os meus colegas, fechados na sua especialidade, concentrados ao máximo sobre o mundo americano, não compreendiam sequer o problema que lhes colocava.
Eu penso que na área coberta pelo Islão, os movimentos revolucionários islâmicos estão a tomar de uma forma funcional o lugar dos movimentos marxistas.
Durante toda a primeira metade do século foi o marxismo que canalizou os protestos, as esperanças, as utopias dos povos oprimidos, e sustentou os seus nacionalismos antiocidentais. No Irão, até ao último momento, muitos pensavam que subiria ao poder o partido comunista Tudeh (NT) e não o clero xiita.
Mas o marxismo está em decadência, e o Islão está-se a revitalizar. Esta é a razão que fez com que o Islão desse a sua linguagem ao projecto revolucionário dos iranianos. E penso que será o Islão, mais que o marxismo, quem recolherá e exprimirá o ressentimento antio-cidental dos Países do Terceiro Mundo, onde existe esta religião.
Também o Cristianismo se está a revitalizar. Pelo menos na Polónia. Não pode imaginar-se o SoLidarno (Solidariedade) sem a Igreja Católica. Foi o catolicismo polaco que, trabalhando durante decénios na oposição de uma forma obscura, a um certo ponto, deu a sua linguagem de resgate ao movimento sindical de Gdansk e lhe atribuiu, também, uma força que desafia o império soviético.
O Solidariedade é o exacto correspondente do movimento revolucionário xiita. Ambos mostram-nos, pela primeira vez neste século, que a civilização cultural marxista já está incapaz de dar a sua linguagem aos movimentos e é incapaz de os assimilar.
Até hoje tinha sempre conseguido fazê-lo. Começou com a China, onde o sino-marxismo de Mao Tsé-Tung derrotou o nacionalismo de Chang Kai-Chek. Depois em Cuba, onde Fidel Castro aportou ao marxismo a partir de posições liberais, no Vietname, no Camboja de Pol Pot, nos regimes marxistas leninistas africanos do Benim, de Angola e da Etiópia, até ao golpe de estado marxista do general Najibullah, no Afeganistão. Um século de vitórias ininterruptas, de uma expansão progressiva inexorável.
nt. Tudeh significa povo em árabe. Povo era a designação pela qual o partido era conhecido, facto que é comum entre os partidos ou movimentos de ideologia marxista-leninista. Para o efeito, atente-se também nos exemplos que Alberoni dá nesta obra, com relação ao nome de alguns partidos italianos (no subcapítulo «Prever o Futuro» e «A Derrota das Brigadas Vermelhas»).
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Depois, repentinamente, duas religiões antiquíssimas, a Cristã e a Islâmica - dadas como destroçadas, acabadas, sepultadas - acordam de novo e dão a sua linguagem aos movimentos políticos. Estes revoltam-se contra o comunismo, contra o marxismo, contra a União Soviética e vencem.
Está iniciada uma nova fase da história.
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VIAGEM PELO AMOR E PELOS SENTIMENTOS.
UMA LINGUAGEM PARA O AMOR
Valência, Julho de 1980.
O livro Enamoramento e Amor está a ter um sucesso mundial. Exactamente as ideias que, há dez anos atrás, levaram Tom Burns e a editora Penguin Education a recusar a tradução, hoje, garantem-lhe o triunfo. O que mudou? Apenas a minha linguagem?
Em parte. Ao falar com Roland Barthes, tinha-lhe dito que conseguiria expor a teoria do enamoramento sem sacrificar a riqueza e a força da linguagem amorosa.
E consegui-o. Em Enamoramento e Amor estão os Fragmentos de um discurso amoroso, mas dentro da moldura férrea da teoria do Movimento e Instituição.
Basta isto para explicar o sucesso? Não creio. O livro apareceu num momento histórico especial - quando o grande empanturramento de ideologia marxista, colectivista, feminista já se tinha transformado em indigestão e estava a deixar as pessoas duvidosas, perplexas, desgostosas.
Tinham-se convencido, quiseram convencer-se, que o único motor da história, das vicissitudes humanas eram os interesses da classe e a luta de classes. E de que a única acção digna e nobre a realizar era a política. Os sentimentos individuais, a paixão de amor, o tormento do ciúme, a consumição por uma só pessoa, não tinham e nem podiam ter absolutamente nenhum valor.
Depois, foi a psicanálise que explicou, de todos os modos, que o amor, o enamoramento, a paixão total e exclusiva por uma só pessoa não são outra coisa senão uma forma mórbida de sensualidade. Um impulso desviado da meta, como dizia Freud, ou melhor, uma forma de regressão profunda à primeira infância.
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E as feministas viam na relação exclusiva, simbiótica, entre mulher e homem, uma forma de alienação feminina, uma renúncia à própria liberdade, à própria autonomia. Um reviver na sua própria sujeição às categorias masculinas do amor romântico.
Até os hippies, os doces e tolerantes hippies, tinham tido a pretensão de meter entre parênteses a paixão amorosa para mergulharem na promiscuidade da vida comunitária. E procuravam fazer desaparecer o ciúme. Para quê ser-se ciumento, possessivo, quando pode ter-se em comum tanto o sexo como a espinela (NT)?
Assim, no final, quem se apaixonava já não sabia mais que nome dar àquilo que experimentava. Quem era ciumento, envergonhava-se dos seus sentimentos e calava-os. Em compensação, qualquer que fosse a relação sexual, era sempre considerada uma forma de amor.
Então, por que não intensificar, expandir o próprio amor com a troca de casais, com o amor em grupo? Por que não fazer um «casamento aberto», onde se pudesse ter relações com todos os que se quisesse, com a condição de o contar depois ao seu marido ou à sua mulher? Para quê ficar ligado à absurda fidelidade tradicional?
Os casais envergonhavam-se de existir, tinham a impressão de ser uma espécie sobrevivente, destinada à extinção.
A alta cultura ideologicamente muito marcada, politizada, psicanalizada, laconizada, tinha acabado por lhes tirar a linguagem com que denominar as próprias experiências, os próprios desejos, e até, os próprios medos.
Foi neste universo devastado, saqueado, falsificado, corrupto, já tornado afásico, que o meu livro Enamoramento e Amor apareceu e que contou novamente a todos o sentimento mais antigo, aquele que conheciam da tradição milenária, aquele que era cantado nas canções e na poesia. O livro exprimiu aquilo que, intuitivamente, todos sentiam e pensavam, mas que ninguém ousava dizer.
Como na história do Fato novo do Rei, em que existe um menino que diz em voz alta, unicamente por ingenuidade, aquilo que todos vêem: «Mas o rei vai nu!»
E então, milhares de mulheres, milhares de homens de todo o mundo que se envergonhavam de estar apaixonados, que ocultavam as suas palpitações, que fingiam não ser ciumentos, que já nem sabiam dizer:
nt. Espinela ou espinel é um aparelho de pesca com vários anzóis presos à mesma linha.
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«amo-te, amo-te só a ti entre todas as pessoas do mundo», encontraram de novo a palavra. E puseram-se a gritar, a chorar, a falar, como se um taumaturgo os tivesse curado.
E eis-me aqui em Valência, depois de tantas outras cidades, na grande aula magna da universidade, com os corredores cheios de estudantes, os altifalantes ligados sobre a praça, duas mil pessoas que ouvem as minhas palavras num silêncio religioso e que, de vez em quando, aplaudem quando sentem proclamar em voz alta algo que na realidade já conhecem no seu íntimo, algo que já pensaram.
E as raparigas, com os olhos cheios de lágrimas, querem tocar-me, e alguns homens, hesitantes, gostariam de colocar-me perguntas.
Porém, como o efeito já tinha sido atingido, poderiam mesmo não ler mais o meu livro. Eles reencontraram o essencial.
E a teoria? Mas para que querem que lhes seja precisa a teoria! As pessoas não querem teoria, querem uma ajuda, querem um caminho.
Tenho muitas dúvidas de que também os sexólogos, também os psicólogos, também os sociólogos queiram, na realidade, uma teoria. A teoria interessava-me a mim para dar ordem ao mundo. Foi a alavanca para chegar à palavra por que todos esperavam.
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A AMIZADE
Milão, Janeiro de 1983.
Enquanto o enamoramento surge do estado nascente e se impõe ao indivíduo antes que ele tenha podido verificar a reciprocidade, a amizade forma-se um pouco de cada vez, com o suceder-se dos encontros, sobre a base do princípio da realidade.
O amigo, o verdadeiro amigo, é aquele que compreende, com o qual podes abrir-te, em quem podes ter confiança, que está do teu lado, que te faz justiça. A amizade é, por isso, amor, mas amor moral. Daqui a definição: a amizade é a forma ética do Eros. Por consequência, se o amigo trai a confiança, a amizade desaparece e nunca mais pode ser reatada.
Enquanto o enamoramento é incerteza, palpitação, a amizade é certeza e confiança. Enquanto o tempo do enamoramento é compacto, espasmódico, o da amizade é granular.
Os apaixonados que estão afastados um do outro sofrem, e ao reencontrarem-se, querem saber tudo o que fez o outro. Pelo contrário, dois amigos que se reencontram, também depois de muito tempo, têm a impressão de continuar o discurso do ponto em que o tinham deixado. O enamoramento é exclusivo, a amizade é reticular. Nós podemos ter mais do que um amigo que, por sua vez, tem outros amigos, e não sofremos com isso.
Contrariamente ao que muitos pensam, a amizade está presente tanto nos rapazes, como nas raparigas, tanto nos adultos, como nas crianças, e a sua estrutura permanece a mesma.
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EROTISMO
Lausana, Fevereiro de 1984.
Aceitei leccionar um curso na Universidade de Lausana. No final de cada lição, os estudantes rodeiam-me, querem saber algo mais sobre temas a que eu fiz face. Querem saber do amor, da amizade. Confrontam as suas experiências com o que eu escrevi em Enamoramento e Amor e em A Amizade.
As raparigas ao falar são mais desinibidas, os rapazes são mais tímidos. Seja como for, todos estão interessados em descobrir os seus próprios sentimentos, todos desejam conhecer-se.
Isto encoraja-me a prosseguir o caminho que escolhi.
E depois do enamoramento e da amizade deveria estudar o erotismo. Porém, se há uma linguagem do enamoramento e uma linguagem da amizade, quando se passa às experiências eróticas encontram-se pelo menos duas linguagens: a linguagem dos poetas e a da pornografia. Eu tenho, por isso, de inventar uma linguagem apropriada para escrever sobre ele, e isso não será fácil.
Existe então uma diferença de sensibilidade entre rapazes e raparigas. Apercebo-me disso quando tenho de identificar-me com as personagens dos romances ou dos filmes, ou tenho de perceber o significado profundo de uma confissão.
Assim, convenço-me que raparigas e rapazes idênticos na inteligência e nas paixões, idênticos também na amizade e no enamoramento, são diferentes no plano erótico. Uma diferença que tem, de imediato, importantes variações no curso da história, e que foi ora sobrevalorizada, ora subvalorizada.
Nos últimos anos procurou-se minimizá-la. Pensemos na moda do unissexo ou naquelas feministas que atiravam à cara dos homens o facto de não serem como eles.
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Contudo, recentemente, as modas fizeram aumentar de novo o dimorfismo sexual. Stallone e Schwarzenegger são a imagem de dois supermachos. A ex-mulher de Stallone, Brigitte Nielsen, era há alguns anos atrás, efébica e sem seios, e hoje, graças à cirurgia estética, tornou-se numa supermulher com duas mamas gigantes.
O erotismo volta a marcar as diferenças de sensibilidade entre masculino e feminino, mais do que qualquer outra característica. Volta a manifestar a sua antiga essência.
O erotismo masculino é mais visível. O homem é excitado pelas formas físicas, pela visão da relação sexual. Digamos que o erotismo masculino brota de uma visão erótica do corpo da mulher.
O erotismo feminino é mais influenciado pelos sentimentos, pela paixão, pelo valor, portanto, por uma visão ética, estética e social do homem.
O homem experimenta um fortíssimo prazer sexual, genital, até mesmo por uma mulher pela qual não tenha nenhum interesse emotivo, ou que na realidade despreza. Isto é de tal forma verdade que ainda hoje, depois da revolução sexual, que facilitou o facto de se ter relações com o outro sexo, os homens continuam, tal como antes, a dirigir-se às prostitutas.
A mulher continua sempre a procurar no homem uma qualquer qualidade física, moral ou social. Assim, pode sentir-se atraída quer por um homem importante, quer por um campeão desportivo ou uma vedeta, porque todos eles têm um valor reconhecido pela sociedade. Ela pode, igualmente, desejar muito um homem belo, mas porque vive a beleza como um sinal de excelência.
A pornografia é constituída pela visão de muitos actos sexuais entre pessoas, sempre diferentes e anónimas, e é um género fundamentalmente masculino.
Pelo contrário, o romance cor-de-rosa, a telenovela e a soap opera (nt), onde contam imenso os carácteres das personagens, as relações amorosas, as dificuldades a superar, são o seu correspondente feminino.
Também a memória erótica dos dois sexos é sensivelmente diferente.
Os homens recordam com uma impressionante exactidão os pormenores das experiências sexuais. Ao pensar nelas, revivem a excitação. As mulheres, geralmente, recordam a relação erótica no seu conjunto
NT. A Soap Opera é uma série dramática de televisão ou rádio, muito popular, que trata da vida quotidiana e dos problemas de um grupo de pessoas.
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e, por isso, também as circunstâncias do encontro, os comportamentos, o ambiente, as palavras, a música.
Ao aprofundar as diferenças, descubro que elas aparecem numa idade precoce. As meninas analisam e discutem, muito mais do que os rapazes, as situações amorosas e a sua sexualidade desenvolve-se, naturalmente, para o amor. Nos rapazes a sexualidade chega, muitas vezes, como algo de estranho. O rapaz pode estar apaixonado por uma rapariguinha, a quem não tocaria de leve nem com um dedo, e masturbar-se em frente a uma revista pornográfica.
Nas raparigas, pelo contrário, com o despertar da puberdade, o erotismo olha para cima: sonha com as vedetas, os actores, com aqueles que emergem na comunidade juvenil. No seu seguimento, as mulheres também conservam esta especial propensão para quem emerge, para quem tem sucesso. E, precisamente por isto, quando escolhem o homem para amar são mais exigentes do que os próprios homens. Por exemplo, não lhes basta que um homem seja bom, querem também que ele sobressaia em algumas actividades.
Os rapazes não olham para cima, mas para o seu lado. Apaixonam-se pela própria companheira de carteira, que vêem transfigurada, lindíssima. E, provavelmente, ela está a pensar numa vedeta ou num rapaz mais velho.
Durante a puberdade e a adolescência os rapazes e as raparigas têm, por conseguinte, pensamentos e comportamentos amorosos assimétricos.
Homens e mulheres, tanto na adolescência, como na idade adulta, têm uma tendência que os associa: a infidelidade. São igualmente infiéis. Mas, também aqui, há uma diferença. Os homens estão prontos a trair com qualquer que seja o tipo de mulher que os atraia sexualmente, as mulheres traem apenas quando acham que vale a pena.
Na relação de cortejamento a mulher mete o homem sempre à prova. Por exemplo, espera que ele saiba decifrar se a sua recusa é um não de verdade ou é um convite para continuar a fazer-lhe a corte.
Estas diferenças só desaparecem quando o homem e a mulher se apaixonam.
O enamoramento, o estado nascente amoroso, é idêntico nos dois sexos. Ambos transfiguram o seu amado, que vêem como único, insubstituível, não comparável a nenhuma outra pessoa. Os dois vêem o amado como um rei, uma rainha.
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Contudo, o enamoramento chega aos homens, como algo de imprevisto e desconcertante, e às mulheres, como o acontecimento mais importante das suas vidas. Acolhem-no com entusiasmo, estão frementes, extasiadas. É por isto que uma mulher apaixonada floresce, enquanto que o homem fica surpreendido, embaraçado e perde a sua ousadia.
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VIAGEM PELA MORAL.
A NASCENTE DA MORAL
Milão, Março de 1986.
Neste período, encontro muitas vezes na Universidade Estatal, para onde entretanto me transferi, Salvatore Veca. Discutimos o tema da moral. Temos na cabeça dois problemas diferentes. Salvatore, como os seus colegas filósofos, procura estabelecer como se faz para se poder emitir um juízo moral correcto. Eu, pelo contrário, pergunto-me qual é o objecto da moral e como nasce a motivação para agir moralmente.
Partamos de um exemplo. Kant disse-nos «age com base no princípio que quererias erguer para norma universal». Mas, se eu sou um político nazi ou comunista, pensarei em erguer para norma universal o extermínio dos hebreus ou dos capitalistas.
É esta a moral? Não, não o é, porque o seu fim é perverso.
Deixemos agora de lado os comunistas e os nazis. Olhemos para nós mesmos. Seguindo a ideia de Kant, eu encontro um preceito que me parece justo erguer para norma universal. Mas, depois, quando estou cercado de problemas existenciais, por que razão deverei segui-lo se tenho de renunciar à vantagem que dele me viria ao agir de forma contrária? Kant dá-me uma indicação sobre como posso construir um imperativo moral, contudo, não me dá nenhuma motivação para respeitá-lo.
E o mesmo faz o utilitarismo de Bentham. Por que razão devo agir de modo a tornar máxima a felicidade colectiva? Mesmo que conseguisse demonstrar que, desta forma, também satisfaria um pouco o meu interesse, não se deduz daí, de modo algum, que deva contentar-me com tão pouco. E, se eu, pelo contrário, preferisse ganhar muito mais, enganando os outros?
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Qualquer que seja o preceito moral, implica que eu tenha já aceite um dever para com os outros, implica que haja já um impulso que me leva a fazer-lhes bem, ou então, que me impeça de lhes fazer mal.
Em que consiste então o fim moral, o objectivo máximo da moral?
Intuitivamente, nós sabemos que o acto moral é este ou aquele quando não tem como objecto nós mesmos, mas os outros. É sempre em favor dos outros, sejam eles os nossos pais, os nossos filhos, os nossos irmãos, os nossos concidadãos. Aqueles que têm necessidade, que sofrem, ou aqueles que amamos, e em relação aos quais sentimos compaixão, ou então, em relação a todos os seres humanos e até mesmo aos animais.
Para que exista uma moral, o primeiro mandamento deve ser o querer bem a alguém, e esse alguém, não sou eu. A moral pressupõe o altruísmo e, por conseguinte, o amor.
É incrível o mandamento de Cristo: «Ama o teu inimigo». Não é um imperativo limite, irrealizável, mas a própria pré-condição da acção moral. Eu posso agir moralmente para com uma só pessoa se, de algum modo, a amar, ou se, pelo menos, não a odiar.
A esta altura torna-se mais claro para mim por que razão os marxistas querem absorver a moral na política. É para destruir a moral. Moral é odiar o inimigo de classe.
O dever, só por si, não define a moral. O dever de obter o escalpe ou a cabeça de um inimigo, o dever de ter que odiar os inimigos da pátria ou da classe social, o dever de ir para a guerra, não são primariamente morais.
São costumes históricos, ou então, trágicas necessidades da vida e da sobrevivência. Mas, recebem o seu valor moral do exterior, de um propósito positivo, de um amor. Geralmente, um amor virado para a colectividade, para a tribo, para a pátria, para a igreja.
Nós temos objectos de amor individuais e colectivos. Os colectivos compreendem todos os membros da comunidade. Quando dizemos que amamos os «nossos», não nos referimos a indivíduos singulares, mas a todos os membros da nossa comunidade. Apercebemo-nos disso na guerra. Sofremos pela morte de um dos «nossos» e ficamos felizes com a morte de um dos «inimigos».
Também o amor pelos familiares é um amor colectivo. E até mesmo o amor dos amantes tem uma dimensão colectiva. Naturalmente,
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neste caso, uma vez que a comunidade é formada apenas por duas pessoas, a perda de um indivíduo coincide com a sua destruição.
No estado nascente, em que o grupo não está ainda definido e delimitado, o amor tende a abranger todos aqueles que se convertem ao movimento. Portanto, é um amor aberto, potencialmente universal. Este tipo de amor teve uma grande influência na formação do universalismo ético. O Cristianismo das origens sentia um impulso de amor que abarcava todos aqueles que pudessem tornar-se irmãos em Cristo, e que não é muito diferente do amor que exorta a umma islâmica (NT).
Com a institucionalização do movimento e a criação de um inimigo, esta abertura restringe-se, mas o impulso universalista nunca lhe falta completamente. Mesmo que em seguida todos possam, «potencialmente», tornar-se cristãos e ser acolhidos como irmãos. Para que esta potencialidade se torne em acto é necessário que os pretendentes se adaptem a certos comportamentos morais. No Cristianismo medieval, no Judaísmo e no Islão, a moral coincide com estes vínculos de admissão e pertença.
Quando desaparece o preceito imposto por uma igreja, por uma hierarquia ou por uma lei escrita, ele surge então, fiado na razão, como acontece na moral universalista moderna.
Para Kant, para Bentham, os eleitos são todos aqueles que sabem pensar, todos aqueles que são dotados de razão. Mas, também no caso deles, continua a existir um impulso, primeiro uma motivação, pré-racional. É o universalismo da fraternidade do iluminismo que toma o lugar da fraternidade cristã, e que abrange todos os seres humanos.
Também neste caso, por isso, a moral não pode ser definida somente da razão, mas sempre, e também, do impulso amoroso, altruísta, que estabelece uma ponte com o outro e o transforma num valor, num objectivo.
O que é então a moral?
É agir racionalmente de acordo com o amor. O amor é o estímulo primário e estabelece o objectivo. A razão assegura que este objectivo se cumpra. Não basta experimentar sentimentos de amor, é preciso agir afectivamente pelo outro, realizar o seu bem.
NT. Umma, palavra de origem árabe que, no contexto, significa nação.
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POLÍTICA E MORAL
Milão, Junho de 1986.
Na competição desportiva cada um exalta a sua equipa, o seu campeão e desvaloriza o adversário, mas não lhe atribui um juízo moral negativo.
Quando eu era rapaz, os italianos torciam por Coppi e por Bartali(NT). Cada um dos adeptos estimava que o seu herói fosse mais forte, mais corajoso, mais inteligente. Contudo, o adepto mais fanático de Coppi, não dizia que Bartali era um ladrão, um delinquente, um patife, uma pessoa repugnante ao ponto de a mandar para a cadeia. Isto, ao invés, é aquilo que fazemos habitualmente no campo da política.
Na outra noite, durante um jantar, a discussão resvalou para o terreno político e alguns convidados começaram a falar de um conhecido líder. Diziam que ele é uma figura imunda, ignóbil, um corruptor que já deveria estar na prisão há anos. Percebi, pelos rostos fechados da dona da casa e do seu marido, que pensavam de modo contrário. Para eles, aquele líder era corajoso, nobre, desinteressado, admirável.
O ser partidário político é uma paixão. O amor e a admiração que experimentamos pelo nosso líder são da mesma natureza daquela que sentimos pela nossa mulher ou pelo nosso marido. Por consequência, se alguém fala mal deles, ferimo-nos, ofendemo-nos, fazem-nos mal.
Porém, nunca insultaremos a mulher de quem nos convida para jantar. Não diremos ao nosso anfitrião, em frente aos seus amigos, que a sua mulher é uma ladra, uma mulher moralmente repugnante
nt. Fausto Coppi e Gino Bartali foram dois grandes ciclistas italianos, sobretudo na década de 40, que triunfaram nas mais prestigiadas competições velocipédicas.
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e que precisaria ser encarcerada na prisão. A etiqueta ensinou-nos a respeitar a sua paixão, como ele deve respeitar a nossa.
Mas, não o fazemos quando se trata de política, isto porque não admitimos que a política seja uma paixão. Estamos convencidos de que a nossa escolha é fruto de motivações racionais, baseadas em factos rigorosos. Àqueles convidados nem lhes passou pela cabeça que a dona da casa e o seu marido, duas pessoas inteligentes e cultas, pudessem pensar de forma diferente da deles.
A política é uma paixão feita de amor e de ódio. Como a guerra é baseada na contraposição de amigo e inimigo e, precisamente como na guerra, o juízo moral também não é sereno, objectivo, mas é usado como se fosse uma arma. Os nossos são sempre corajosos, desinteressados, generosos; os inimigos são ávidos, ferozes, desumanos, cruéis, e quando alguém se alia a nós, torna-se como nós, absorve as nossas virtudes morais.
De pequeno que me apercebi disso. Ao ler Salgari ficava com a ideia de que os «cortadores de cabeças» do Bornéu fossem uma população medonha, selvagem e cruel. Depois, um dia, no semanário Domenica dei Corriere, vejo uma ilustração que representa os Dayak a lançarem-se contra um grupo de ingleses em fuga, e a legenda dizia mais ou menos isto: «Os corajosos cortadores de cabeças do Bornéu, aliados das tropas heróicas do Eixo, metem em fuga os inimigos».
Percebi então, com uma clareza absoluta, que em guerra, seja quem for que esteja do nosso lado - mesmo que seja o criminoso mais monstruoso - transforma-se imediatamente, aos nossos olhos, num ser moralmente elevado. Enquanto que quem passa para o inimigo — mesmo que um instante antes o tenhamos considerado um santo -torna-se um demónio.
Quando pensamos em termos políticos, não proferimos um juízo moral objectivo. Os juízos morais estão subjugados às nossas paixões. Seja o que for que um amigo faça, é sempre bom, mas, seja o que for que um inimigo faça, é sempre abjecto.
A objectividade moral, a capacidade de ver a indignidade dos nossos e as virtudes do inimigo, é uma conquista atribuída a poucos, e é fruto de um longo exercício ou de uma evolução espiritual.
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MIMESE
Milão, Novembro de 1986.
Li o último livro de René Girard. Eis finalmente uma teoria dos sentimentos séria depois de Freud! E é também a única que mete em discussão a psicanálise estruturalista de Lacan!
Lacan tinha-se apercebido que toda a parafernália das fases - oral, anal, fálica, genital - e dos Complexos - de Édipo, de Electra - excogitados por Freud, eram somente uma linguagem para demonstrar os mecanismos universais presentes no homem. E que estão sempre presentes toda a vida, não apenas na infância. Na sua linguagem, os complexos pertencem ao imaginário, e os mecanismos psíquicos ao simbólico.
Girard defende que todos estes mecanismos se reduzem, em resumo, a um só: o conflito triangular. Há alguém que luta com outro alguém pela posse de qualquer coisa que ambos desejam. No Complexo de Édipo, o filho luta contra o pai pela posse da mãe.
Ele diz que o ser humano não tem uma substância dele, um valor dele, um ser dele, recebe-o dos outros. Assim acontece também no que respeita aos desejos. A criança deseja a bola que vê nas mãos do irmão porque, identificando-se com o irmão, estabelece o seu próprio desejo. Apreende o desejo do irmão. E dado que quer aquilo que o outro também quer, confronta-se com ele.
Tudo aquilo que nós consideramos bom, belo, desejável, aprendemo-lo ao identificarmo-nos com alguém que nos mostra tal coisa como desejável. Marilyn Monroe não é admirada porque é bela. Ela é bela porque todos a querem. E todos a querem porque cada um vê que o outro a quer. E, dado que todos a querem, eu deverei confrontar-me com os outros para tê-la. E perderei o desafio.
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O desejo, por conseguinte, conduz à violência. Cada pessoa deseja exactamente aquilo que lhe é vedado pelos Mandamentos: «os bens» e «a mulher» do outro.
Visto que todos querem as coisas dos outros, rebenta então a luta generalizada, homo homini lupus. É esta a «peste» que grassa em Tebas quando chega Édipo. É a violência difundida, caótica, homicida.
Esta luta recíproca só pode acabar se todos, identificando-se uns com os outros, encontrarem um único objecto a que possam atribuir a culpa, sobre o qual possam desencadear a sua violência unânime: o bode expiatório. A unanimidade da violência lançada contra um único culpado, o bode expiatório, faz desaparecer a violência recíproca.
Desta forma, os homens encontram-se, miraculosamente, reconciliados. O sacrifício, o acto sanguinário, traz paz e serenidade, como se um deus se tivesse manifestado.
Por esta razão, nos primórdios de todas as sociedades, há sempre um assassínio, como Freud bem intuiu. É do acto sanguinário que nascem os costumes, a ética. E a vítima, que produziu a paz, torna-se uma divindade.
Mas também existem desejos não miméticos? Girard inclina-se para a não existência. A mim, ao contrário, parece-me que os há.
Um homem só e esfomeado não deseja a comida mesmo que a não veja, nem que seja em fantasia, com um outro a comê-la? Evidentemente que sim. O rapaz abandonado numa ilha deserta, quando encontra uma mulher, descobre o desejo sexual mesmo que não haja outro homem com quem possa identificar-se? Direi claramente que sim.
Mas Girard engana-se, sobretudo quando aplica o seu mecanismo ao enamoramento. Claro que há pessoas que só desejam apaixonadamente um homem ou uma mulher se existir alguém que os admire ou os deseje também. Existem também uns «Don Juans» que não amam se não houver um marido ou um amante a vencer, e que perdem todo o interesse pela mulher que tanto cobiçavam quando o derrotam.
Mas não é este o mecanismo base do enamoramento. Nós podemos enamorarmo-nos de alguém que não é desejado ou admirado de uma forma particular por ninguém.
Não é o outro, não é o rival que guia o nosso olhar. É uma força interna, uma aspiração, um sonho, o encontro com símbolos do passado e os símbolos que antecipam a vida que queremos viver.
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Nós desejamos aquela pessoa, e só ela, independentemente dos desejos, dos pensamentos, das indicações dos outros. Ao contrário, é ela que encarna, prodigiosamente, todos os rostos por nós vistos e desejados na vida. Nela, vemos a nossa mãe, as actrizes que admirámos, as mulheres que desejámos. Então, já não temos mais necessidade de procurar o nosso ser numa terceira pessoa, porque o encontrámos no nosso amado. Por conseguinte, no enamoramento, supera-se o triângulo, libertamo-nos da mimese. Quebra-se o encanto descrito por Girard.
Estas observações são fundamentais para a teoria da sociedade. Para Girard, a ordem social nasce quando todos se coligam contra o bode expiatório. Então, sucede-se a paz. Mas porquê e de que forma nascem as leis e as instituições? A sua teoria não o explica.
Mas fá-lo o nosso modelo do estado nascente. Do estado nascente não emerge apenas uma sensação de alívio e de paz, mas também um objecto de amor colectivo, ao qual as pessoas se dedicam, se sacrificam, e ao qual confiam uma missão salvadora. Não desaparece apenas a luta, a história; o passado e o futuro são repensados. São fixados os direitos, as sanções e condições, estabelecidas as leis. É projectada de novo a convivência social.
Em conclusão, Girard explica muitos dos conflitos psicanalíticos e, em particular, aquele que provém do Complexo de Édipo. E, explica ainda muito bem, o papel do sacrifício, do bode expiatório, a ambiguidade para com o poder, a natureza invejosa das relações humanas.
Mas nada disto ajuda a perceber a origem, a génese das formações sociais estáveis: partidos, igrejas, religiões, nações. Sobre esta questão o modelo do estado nascente é claramente superior.
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INVEJA
Milão, Fevereiro de 1987.
Estou a escrever um livro sobre os invejosos. A ideia surgiu-me, especialmente, ao ouvir usar as palavras inveja e ciúme de uma forma completamente errada. Quantas vezes temos ouvido dizer: «O Mário tem ciúmes do Luís porque ele teve uma promoção», «A Rosanna tem ciúmes da Júlia porque ela é mais bonita».
Na realidade, não se trata de ciúme, mas de inveja. As pessoas usam a palavra ciúme no lugar da palavra inveja porque, ao dizer que o Mário é invejoso, tem-se a impressão de estar a acusá-lo, de o condenar. O ciúme é admitido na etiqueta, a inveja não.
As pessoas, por conveniência, moderam as palavras para encobrir um sentimento reprovável. Todavia, ao continuarem a confundir um sentimento com o outro, acabam por não perceber o que sucede, por não conhecerem as pessoas, e portanto, por concluir actos errados.
Os sentimentos não são pertença só dos estados emotivos momentâneos, são também dos processos mentais e dos sistemas de relações sociais.
Vejamos então em que diferem a inveja e o ciúme.
No ciúme é-nos subtraído um objecto de amor que nós consideramos nosso. Mas ele não nos é tirado pelo uso da força - de um ladrão ou de um bandido. O nosso amado está de acordo em ver-se livre dele — está do lado do ladrão. O ciúme, por isso, tem a forma de um triângulo em que no vértice, estamos nós, e na base, eles: a pessoa que amamos e o rival, unidos pela cumplicidade.
A expressão «tenho ciúmes de» refere-se tanto ao amado como ao ladrão. O ciúme não tem um só objecto - ele tem sempre dois,
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mas o público, a multidão, a sociedade, estão ausentes. Eu posso ser ciumento mesmo na mais absoluta solidão.
Ao contrário, a inveja tem necessidade de um público. Eu tenho inveja de alguém que me ultrapassou defronte a uma colectividade, a uma opinião pública que o aplaude a ele e não a mim. Aqui Girard tem razão. Na inveja está sempre presente uma terceira pessoa. Primeiramente, aos olhos desta terceira pessoa - o público, a comunidade - eu e o invejado estávamos no mesmo plano, tínhamos o mesmo valor. Depois, ele superou-me.
Ora dêmos um exemplo: imaginemos que, em tempos, eu e Fiorello fôssemos dois animadores de um clube de férias. Eu pensava ser tão simpático e tão bom quanto ele. Mas, a certa altura, ele tem sucesso e eu não. Vai à televisão, todos o admiram, e eu acabo ignorado, como se não existisse.
Dado que o tomei como medida do meu valor, sinto-me uma nulidade e pergunto-me: o que é que ele tem a mais do que eu? O que lhe faz merecer todo aquele sucesso? Não consigo encontrar uma razão convincente. Isto significa, digo a mim mesmo, que o mundo não premeia com base nos méritos, nas capacidades. O mundo é injusto e cego.
A inveja tem a sua raiz precisamente na modalidade em que surge o valor: são os outros que estabelecem o nosso valor social, e são eles também os juízes que podem engrandecer-nos, e nós exaltamos, ou então ignorar-nos, e nós precipitamo-nos na incerteza, na angústia.
Nós confrontamo-nos com os nossos semelhantes, com aqueles que conhecemos, que executam o nosso tipo de trabalho, que se encontram ao nosso nível. Se ninguém sobe ou desce, somos tranquilizados no nosso valor e confirmados na nossa identidade. Mas, se um deles tem sucesso, se é exaltado, então a minha identidade vacila. Experimento uma sensação de impotência e de angústia. Atormento-me e procuro dizer a mim mesmo que eles estão enganados. Procuro contrariar a opinião pública que se colocou do seu lado. Procuro desacreditá-lo. Faço-o para me convencer e para os convencer a eles também. Mas é uma luta desigual, porque ninguém me acredita, e até mesmo eu sou tomado pela incerteza. Então, envergonho-me da minha mentira, envergonho-me da minha inveja. O invejoso é um indivíduo isolado que luta contra a opinião pública e perde.
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Se o ciúme e a inveja são assim tão diferentes, será também muito diferente o seu efeito sobre a vida do casal.
Se eu me apercebo que a minha mulher me trai com outro, sinto-me uma nulidade, o que quer dizer que ela encontra no outro qualidades, valores, que não encontra em mim. Eu posso, porém, lutar contra o rival, travar com ele um duelo sedutor. Procurar reconquistá-la pelo meu amor, mostrando-me mais interessante, mais grandioso do que ele. Em suma, tenho a esperança de recuperar o terreno perdido para o inimigo e começar de novo a subir a encosta.
Passemos à inveja. No casal, a inveja manifesta-se quando um membro tem sucesso, faz carreira, e o outro não. É a sociedade que, com os seus prémios e os seus juízos, irrompe na vida do casal e torna desiguais duas pessoas que se consideravam de valor semelhante porque, no momento privilegiado do enamoramento, tinham-se libertado da influência dos outros e olhavam só para eles mesmos.
Apenas um grande amor pode repelir o ataque de inveja, porque cada pessoa regozija-se com o sucesso do amado como se fosse o seu, e sofre com o insucesso do outro como se fosse o próprio. O casal procede como uma colectividade solidária, inatacável.
Se, pelo contrário, o amor não é assim tão completo e forte, a sociedade mostra-se mais potente do que o indivíduo. O seu juízo insinua-se no casal e cria-lhe diferenças e rivalidades. A comunidade desagrega-se então, e o casal está perdido.
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INVEJA E POLÍTICA.
Milão, Outubro de 1987.
Quando o invejoso se dá conta de que alguém, que ele julgava ser do mesmo nível que o seu, o supera, tem sucesso, é admirado, é tomado então de uma inveja furiosa. A partir desse momento, faz de tudo para desvalorizá-lo, para desacreditá-lo. Usa todos os instrumentos em seu poder para modificar o parecer da opinião pública.
Mas, dado que ele está só e os outros são muitos, a sua tentativa falha. Os outros, ouvindo-o, apercebem-se da sua frívola tentativa e acham-no um invejoso. É então que ele próprio perde a sua segurança e entra em crise.
O invejoso é um indivíduo isolado que luta contra a opinião pública e perde.
Contudo, se o invejoso, em vez de estar sozinho, consegue arrastar para o seu lado muitas pessoas; se dispõe de meios de propaganda potentes; se é apoiado por uma colectividade organizada, pode ser bem sucedido na sua obra de calúnia e de desvalorização. Então, as pessoas deixam de o julgar como um invejoso.
No final dos anos 20, Freud tinha-se tornado numa celebridade internacional e muitos médicos vienenses tinham-lhe inveja. Mas, se falavam mal dele, não eram ouvidos, e portanto, roíam-se todos de inveja, em silêncio.
Com a chegada ao poder do nazismo, tanto na Alemanha, como na Áustria, dá-se início a uma violenta propaganda anti-semita. Todos os invejosos têm então a possibilidade de denegrir, de desvalorizar Freud e a sua obra, até ao momento em que a psicanálise é declarada ciência judaica e, por isso, colocada à margem da lei.
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A inveja individual para com Freud desaparece no grande rio do anti-semitismo colectivo.
O mesmo sucede com a inveja em relação aos ricos, quando se transforma em luta de classes. Primeiro, o indivíduo isolado queria apregoar que o rico não valia mais do que ele, mas ninguém lhe dava ouvidos. Unido aos outros, graças a uma ideologia oportuna, pode então acusá-lo de aproveitamento e combatê-lo numa guerra santa. Na Revolução Francesa, a enorme inveja acumulada contra os aristocratas pôde, finalmente, encaminhar-se nos ideais revolucionários e expressar-se com a guilhotina.
A inveja torna-se social, legítima, nobre, quando se transforma numa acção política, isto é, quando alimenta o confronto entre duas colectividades com uma ideologia que justifica a violência. A política, em todas as suas formas, é por conseguinte o canal fundamental em que se exprimem, de um modo legítimo, os sentimentos invejosos.
A transformação da inveja individual em violência colectiva explica por que razão todas as sociedades são percorridas, de tempos a tempos, por ondas de agressividade que se descarregam contra um certo grupo, grupo este que se torna, desta forma, no bode expiatório.
Algumas destas agregações de agressividade são espontâneas, mas, muitas vezes, são guiadas, encaminhadas por alguém que tem interesse em instrumentalizá-las.
Vejamos um exemplo: quando cai a fortaleza de São João de Acra, os Templários não têm mais qualquer missão na Terra Santa. Todavia, tornam-se cada vez mais ricos e poderosos na sua pátria, suscitando muitas invejas. Por esta razão, Filipe o Belo (Nt) pôde desencadear contra eles uma terrível campanha de difamação e de perseguição, e aniquilar-lhes e confiscar-lhes as suas riquezas.
Também a Inquisição espanhola se alimenta da inveja em relação aos árabes, em relação aos judeus, e depois, da própria inveja que surge dentro do país, entre pessoas rivais.
Não muito diferente é a estratégia adoptada pelos príncipes alemães e por Henrique VIII, na época da Reforma: fazem render a inveja contra os mosteiros ricos. Mas, as ondas de perseguição invejosa
nt. Referência a Filipe IV, rei de França, que foi o grande responsável pela extinção da ordem dos Templários.
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aconteceram também na Revolução francesa, na mexicana, na russa, ou mesmo no processo Dreyfus (nt) e no Macarthismo.
Ainda hoje, a normal competição política é alimentada pela inveja. Quando um partido vence as eleições e se apodera dos lugares de poder, suscita uma violenta inveja nos partidos derrotados. Esta inveja, no entanto, não se manifesta como tal, mas como competição política. Os derrotados têm a possibilidade de criticar, de desvalorizar, de difamar os vencedores com a sua propaganda, bem como de preparar a sua própria desforra.
Nt. Referência a Alfred Dreyfus, militar francês de origem judaica, protagonista de um escândalo político de grande projecção — acusado de entregar documentos secretos aos alemães. Foi condenado sem provas em 1894, mas o processo foi várias vezes a tribunal, acabando em 1906 com a sua absolvição e reabilitação. Este processo dividiu a França em dois campos, levou ao ressurgimento do antisemitismo e desencadeou a agitação anticlerical que contribuiu para a separação da Igreja do Estado francês.
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PRESSÁGIOS.
O CHEFE CARISMÁTICO
Milão, Dezembro de 1987.
Também o termo chefe carismático é usado consecutivamente de forma despropositada. Ele tem significados diferentes no início do movimento, quando este se consolida em instituição, ou gerou directamente um totalitarismo.
Durante o estado nascente, a fé no chefe carismático é fundada no convencimento interior revolucionário. Os membros do movimento rebelam-se contra as habituais formas de pensar, destacam-se da opinião corrente e reconhecem no chefe a pessoa que, melhor do que qualquer outra, os ajuda a exprimirem o seu novo modo de sentir.
Quando o movimento está consolidado, o chefe deixa de debater com os seus seguidores, lança palavras de ordem e, muitas vezes, não admite divergências. Assim, pouco a pouco, acaba por afastar aqueles que não obedecem.
Então, quando se apossa dos instrumentos do poder e dos meios de comunicação de massas, governa com a propaganda, manipulando as notícias, até chegar à constituição de um regime. Nesse momento, impõe o seu culto, a admiração incondicional, com os processos, com o terror. Foi o que fizeram Estaline e Hitler.
Sob a influência do nazismo, os alemães não eram imediatamente informados das derrotas do seu próprio exército. E não eram nem sequer informados do que era feito aos judeus. O regime só exaltava as suas vitórias e mostrava apenas a perversidade do inimigo. O mesmo método usavam os comunistas depois da Revolução de Outubro. O regime autoglorificava-se e exaltava o seu chefe infalível na expectativa do desmoronamento eminente do capitalismo.
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No entretanto, metade dos cidadãos tinham sido transformados em espiões. Os tribunais condenavam com provas falsas, constrangiam os acusados a confessarem com o uso da tortura. Todos viviam no terror, e o chefe, tornado o distribuidor arbitrário da vida e da morte, apresentava-se como um deus omnipotente e irascível.
Este tipo de chefe carismático, dotado de poder absoluto, sem limites, sem controlos, adorado por medo e sob o impulso de uma propaganda incessante, deveria ser simplesmente chamado de déspota.
O carisma no estado nascente é, por conseguinte, uma flor efémera, mas que é tanto mais efémera, quanto mais o sistema em que nasce estiver privado da tradição democrática. A democracia não é o resultado do movimento, mas das regras a que as pessoas se entregam para limitar a omnipotência do próprio movimento.
Pelo contrário, para sermos precisos, devemos dizer que a democracia é originada do impulso ideal do movimento, que produz participação, desejo de renovação, de reforma, e ao mesmo tempo, da desconfiança em relação ao movimento, à utopia, ao carisma. Por isso, põe travões, limites, à vontade geral do movimento, à sua pretensão de ser infalível. É graças a esta desconfiança que a democracia se implanta no mundo anglo-saxónico.
O carisma conserva mais demoradamente as propriedades do estado nascente, precisamente, nos regimes democráticos, nos quais deve confrontar-se com os limites e com os vínculos, deve dar continuamente provas das suas capacidades, e não pode transformar-se rapidamente em culto da personalidade e em despotismo.
Gandhi permaneceu um chefe carismático que todos nós admiramos, um mahatma, porque na Inglaterra existia a democracia e a liberdade de imprensa. Foi a opinião pública inglesa livre que o defendeu. Num despotismo tradicional ou num regime totalitário teria sido imediatamente acusado das mais ignóbeis infâmias e, posteriormente, teria sido morto.
A nível cultural, Gandhi deve, por conseguinte, ser considerado um líder carismático da civilização anglo-saxónica. Ele não é o resultado da civilização indiana. Na realidade, logo que terminou a ocupação inglesa, hindus e muçulmanos lançaram-se uns contra os outros e acabaram por matá-lo.
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MOVIMENTOS E CIVILIZAÇÕES
Milão, Março de 1988.
Seguindo o pensamento do filósofo alemão Spengler, podemos dizer que uma civilização é caracterizada por um modo de pensar, de sentir, por uma arte própria, uma literatura, uma matemática, uma filosofia, uma arquitectura, estreitamente interligadas. São a expressão de uma mesma forma de estar no mundo.
Uma civilização não é o produto de um movimento. As civilizações indiana, chinesa, grega, egípcia, romana não saíram de movimentos. Pelo contrário, elas tendem antes a rejeitar, a impedir a formação de movimentos. Têm modos de pensar, de sentir, têm concepções do mundo e do espaço que lhes dificultam a formação ou a elaboração.
Por exemplo: a civilização grega não tem uma concepção positiva do devir. Pelo contrário, a história avança degenerando-se — na realidade, primeiro existe a Idade do Ouro, depois a do Bronze, e por fim, a do Ferro. A perfeição, o apogeu do homem, é colocada no início — na origem. É dada pelos deuses, não é um produto do homem. Segundo Spengler, o grego ignora completamente o tempo histórico. Não existe passado e não aguarda um futuro. É portanto muito difícil que um movimento anuncie um novo mundo. Na melhor das hipóteses, espera por uma nova Idade do Ouro, um regresso do tempo cíclico. Não consegue imaginar algo que seja superior às origens.
Por isso, quando aparece o movimento dionisíaco na Grécia, o resultado não será a espera de uma renovação social, nem de um novo projecto político.
No máximo dos máximos, o grego acredita na edificação racional de uma sociedade melhor, como aquela que é proposta por Platão na sua obra A República.
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Na civilização hindu falta, em absoluto, a própria ideia de tempo histórico. Não pode, portanto, haver historicidade. A experiência extraordinária é projectada num passado completamente indeterminado. Poderá ter acontecido ontem ou há um milhão de anos atrás. Enquanto que a cura, a salvação, a beatitude, pode ser obtida de imediato.
O nirvana não é um estado individual ou colectivo alcançável no futuro. Ele, ou não é atingível, ou é-o hoje, imediatamente. Ele atinge-se por iluminação e não pode ser colectivo, não pode ser uma transformação profunda da sociedade. É, por definição, individual, pessoal, sem efeitos sociais. Por conseguinte, não pode gerar qualquer projecto renovador ou reformador. Se na índia surgiram processos do estado nascente e movimentos - como parece depreender-se pela existência de tantos cultos de salvação - de todas as vezes, a experiência foi produzida como revelação, como iluminação, que se esgota em si mesma, que se completa e contempla em si mesma.
É certo que também os seguidores de Mahavira (Nt1) ou de Buda se reúnem e constituem uma comunidade, um cenóbio. Dado que pensam do mesmo modo, identificam-se entre eles, reconhecem-se e projectam um modo de vida adequado à perseguição do seu objectivo, mas não sentem a missão de transformar o mundo, de o melhorar, de edificá-lo. E mesmo que lhes venha à cabeça fazê-lo, crêem-no inútil, e por consequência, abandonam a ideia dando ênfase ao carácter pessoal da experiência de iluminação.
O movimento, como nós o conhecemos, que se inicia com o estado nascente e que desemboca numa instituição, que lhe é o herdeiro e o guarda, é por isso um produto de algumas civilizações e não de outras.
Então, mas de que civilizações? O ponto de partida deve ser encontrado nas religiões masdeísta (de Zaratustra), hebraica e caldaica. Depois, continuou no Cristianismo e na Gnose (nt2). Em todos os casos, em religiões monoteístas, com componentes mais ou menos fortes de dualismo: entre bem e mal, luz e trevas, Deus e Satanás.
nt1. Mahavira (em sânscrito significa grande homem) é o título honorífico de Vardhamana, fundador da religião Jaina ou Jainismo (também um sistema filosófico indiano).
nt2. Gnose (palavra grega que significa conhecimento), doutrina esotérica da cultura greco-helenística, que propõe aos seus iniciados uma via de salvação baseada no conhecimento de certas verdades ocultas sobre Deus, o mundo e o homem. Nos escritos neotestamentários significa a compreensão carismática mais profunda das verdades reveladas (Gnosticismo).
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O tempo destas religiões tem uma direcção metafísica e ética. Começa com um estado originário de paz. Na religião masdeísta, o estado que precede a cisão do bem e do mal, no Judaísmo e no Cristianismo, o Paraíso Terrestre.
Segue-se-lhe uma queda, uma degradação que gera o mundo actual. Nas religiões iranianas, a queda é dada pela mistura da luz com as trevas, no Judaísmo e no Cristianismo, pelo pecado de Adão.
Mas, no futuro, acontecerá a redenção: a batalha final, o juízo universal, em que o mal será vencido, os corpos ressuscitarão. Aí, será o advento da nova Jerusalém. A Jerusalém celeste.
Este esquema - difundido em todas as religiões com origem no médio Oriente, no primeiro milénio antes de Cristo - nasce da percepção da imperfeição moral do mundo e da espera da sua redenção escatológica.
Foi este esquema que forneceu a moldura conceptual de base, as categorias estruturais que darão ao estado nascente a forma que nós conhecemos e produzirão o movimento típico do Ocidente.
Então, é espontâneo perguntar-se: na Grécia nunca existiu a experiência do estado nascente? Nunca houve movimentos?
Eu creio que o estado nascente seja uma experiência universal, uma propriedade do sistema nervoso humano. Portanto, ele existiu também na Grécia. A descoberta - a eureka de Arquimedes - é um estado nascente. E também na Grécia, o estado nascente colectivo produziu comunidades. As descobertas de Pitágoras criaram uma comunidade política. No mundo grego existiram também movimentos religiosos, como o de Diónisos e outros cultos dos mistérios.
Mas, a maioria das formações políticas e religiosas não saíram de um estado nascente. Roma não nasceu deste modo. Roma nasceu de um pacto, de uma decisão racional. Quem aderia e obedecia às leis romanas, tornava-se romano. O sulco traçado por Rómulo é o símbolo da inviolabilidade do pacto.
As comunidades de crentes começaram a formar-se sob a influência das religiões orientais. O próprio culto de Diónisos tem esta origem. Uma influência oriental está, provavelmente, por detrás da Eneida de Virgílio. A destruição de Tróia é uma perda, uma queda. A história é constituída pela cansativa subida do herói, Eneias, que prepara um futuro glorioso: o império universal de Roma.
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O acontecimento não é colocado num tempo apocalíptico, mas num tempo que o escritor já conhece. Contudo, a tensão é semelhante àquela das religiões de salvação. É por este motivo que, na Idade Média, Virgílio foi considerado um antecipador do Cristianismo.
A civilização que põe no seu centro os movimentos e se alimenta deles, nasce do encontro entre esta concepção religiosa do tempo com a subjectividade aparecida na Grécia com Sócrates, e a projecção racional Romana. O Ocidente emerge desta tríade.
A experiência de um novo início, a espera de uma renovação, a antecipação de um futuro maravilhoso, pouco a pouco, espalha-se sobre a terra, modela as instituições eclesiásticas e políticas. Santo Agostinho convida os cristãos a tomar como herança o Império Romano. Justiniano sonha com a sua renascença governada por leis imperecíveis. As ordens monásticas renovam-se periodicamente para realizarem um mundo mais cristão. Os franciscanos e os dominicanos têm projectos de evangelização e moralização da sociedade. Dante espera por um César que restaure a ordem e a justiça. Calvino quer instaurar a República dos Santos.
Este conjunto de movimentos e instituições, que constituem um processo histórico corrente, edifica a civilização cultural cristã. Um complexo institucional, nascido de movimentos, que dá a própria linguagem aos movimentos que surgem para o desafiar, e que, englobando-os, se enriquece e cresce com as suas contribuições.
As principais civilizações culturais são o Judaísmo, o Cristianismo, o Islão, o Protestantismo e o Marxismo.
Todas, em suma, brotam da mesma fonte. Jorram da Religião masdeísta e do Judaísmo. Depois é que aparece o Cristianismo -como uma heresia do Judaísmo - e o Islão, como um desenvolvimento profético de ambas. O protestantismo, que surge de uma cisão no interior do Cristianismo, apresenta-se como uma redescoberta da verdade cristã original. E o marxismo, não obstante o seu ateísmo, anuncia que da luta entre o bem e o mal, com o triunfo da classe eleita — o proletariado — emergirá um estado paradisíaco: o comunismo último. Além disso, não esqueçamos que Marx era judeu.
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É, contudo, errado pensar que tanto o estado nascente, quanto os movimentos, sejam uma manifestação ideológica ocidental. Dão-nos esse testemunho os movimentos aparecidos fora das civilizações culturais. Por exemplo: a religião de Amenófis III, a revolta de Vercingetorige (NT1) e a da rainha Boadicea (NT2) e muitas seitas de salvação indianas, mesmo se reabsorvidas pelo Hinduísmo ou pelo Budismo. Os cultos do cargueiro, a dança dos espíritos e as guerras índias, o movimento de libertação Ming e, no México, a profecia do regresso de Tezcatlipoca (nt3).
De facto, o estado nascente é uma propriedade universal da mente humana, como nos demonstra a universalidade do enamoramento. Mas, foi apenas no Ocidente, sob a acção de factores que temos examinado, que ele se tornou uma força capaz de construir comunidades permanentes, de modelar as grandes instituições até à formação das civilizações culturais.
NT1. Vercingetorige ou Vercingétorix foi um príncipe gaulês da tribo dos Avernus que capitaneou a grande revolta gaulesa contra César em 52 a.C.
Nt2. Boadicea ou Boudicca, antiga rainha guerreira de uma tribo britânica que liderou uma revolta violenta, originada na injustiça dos primeiros governadores romanos (cerca do ano 60 d.C.).
nt3. Tezcatlipoca (divindade náhua, que significa espelho fumegante ou fumegado), principal divindade do panteão mexicano, deus do Sol, senhor da luz e das trevas.
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A CIVILIZAÇÃO ANGLO-SAXÓNICA
Milão, Outubro de 1988.
Hoje, todos falam de modernidade ou pós-modernidade como se o sistema económico, político e cultural euro-americano fosse unitário.
Mas não é assim.
O mundo anglo-saxónico, formado pela Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Austrália, constitui um conjunto coerente, uma civilização totalmente diferente do mundo latino, do alemão ou do russo. Dado que esta civilização é dominante, planetária, nós acabamos por a fazer coincidir com o mundo ocidental.
É um grande erro.
A revolução política inglesa de 1600 é, em tudo e por tudo, um suceder-se de movimentos como aqueles que se deram no continente europeu.
Cromwell era um chefe carismático. Como era um movimento a guerra da independência americana com Washington, o seu chefe carismático. A civilização anglo-saxónica deveria, por isso, ser considerada um desenvolvimento da civilização cultural cristã ocidental.
No entanto, os intelectuais ingleses, em particular Hobbes e Locke, deram-lhe uma interpretação diferente. Eles negligenciaram intencionalmente o elemento utópico e construíram uma teoria racionalista e voluntarista do Estado. Este, não se forma para realizar valores mais altos, mas para garantir aos cidadãos a vida, a paz e a prosperidade. O soberano não deve sequer melhorar, nem guiar, nem educar o povo, nem mesmo mostrar-lhe objectivos nobres. Deve apenas cuidar dos interesses práticos, concretos, do povo. Se não consegue desempenhar esta tarefa deve demitir-se. Por isso, nada de menos carismático.
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A mesma coisa sucede nos Estados Unidos. As formas de eleição do presidente americano são, o mais possível, semelhantes a uma aclamação carismática. Os grandes presidentes, de Abraham Lincoln e Theodore Roosevelt a Franklin Delano Roosevelt ou John Fitzgerald Kennedy, foram chefes carismáticos. A sua linguagem era oracular, profética, religiosa. Mas nem sequer é preciso dizê-lo. A ciência política anglo-saxónica transforma-os em administradores de utilidade.
Uma civilização define a realidade nos seus termos e, para o fazer, encobre aquilo que não lhe serve. A civilização anglo-saxónica esconde o elemento passional, emocional, de fusão, escatológico, de que saiu e através do qual se regenera.
Um grande instrumento desta ocultação foi a economia política de Adam Smith. Ele mostra que a riqueza das nações nasce da aplicação da inteligência para concretizar o próprio egoísmo. Bentham completa a obra, mostrando que o altruísmo é apenas uma transição utilitária racional.
Oficialmente, por isso, tornam-se privados de importância o amor, a paixão, a fé, e a dedicação à pátria. A realidade, naturalmente, é diferente. Mesmo no mundo anglo-saxónico, o amor, a paixão, a fé, a dedicação à pátria continuam a ser essenciais. Mas, a elaboração cultural esconde-os e coloca em evidência apenas o interesse, o útil.
O último passo dá-lo-á Darwin ao colocar a concorrência na base da selecção natural que produz a evolução biológica. Por esta razão, nunca mais serão bem-aventurados os pobres de espírito, os débeis, os sofredores, e nem sequer os místicos, os visionários, os sonhadores. Mas são bem-aventurados aqueles que perseguem racionalmente a sua própria utilidade, que competem e vencem. E, todavia, Martin Luther King inflama as almas dos americanos com o slogan: «Eu tenho um sonho».
A política, a economia, a sociologia, a psicologia, a ética, a biologia surgem unificadas de modo semelhante pelo mesmo sistema de categorias. Os anglo-saxónicos não se perguntam por que razão cada indivíduo deve sacrificar o seu próprio interesse em favor dos valores. Para eles, isso é como que um dado adquirido e assumem, mais ou menos implicitamente, que daí lhes venha alguma vantagem.
No continente europeu, a evolução é completamente diferente. Mas em vez de limitar-se a corrigir os exageros anglo-saxónicos, precipita-se na direcção oposta.
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O maior responsável por isso é Rousseau que, no lugar do «pacto» de Locke, coloca o «contrato social», de que nasce a «vontade geral», que ele julga infalível. A infalibilidade que primeiro pertencia a Deus, é atribuída ao parlamento, ao chefe. É a premissa para o terror, para o despotismo.
Enquanto Hobbes e Locke reduzem o Estado a um contrato racional, Rousseau dá-lhe uma união mística em que se realiza a liberdade.
Este conceito é retomado pelo marxismo que confia ao partido a tarefa de redenção, não só do homem, como até mesmo da natureza. Prepara-se assim o totalitarismo soviético. Na Alemanha, esta tarefa de salvamento seria confiada ao partido nazi, em nome do povo e da raça.
A civilização anglo-saxónica e o mundo continental divergem progressivamente. A primeira explica tudo em termos de utilidade. O segundo sonha com saídas escatológicas e encaminha-se para o totalitarismo.
Por conseguinte, serão os anglo-saxónicos, com a sua desconfiança, a sua frieza, o seu utilitarismo, a encontrar a solução vencedora -a democracia. Esta alimenta-se do movimento, da utopia, do sonho de renovação e de reforma, mas desconfia da espontaneidade entusiasta, desconfia dos chefes carismáticos, desconfia do grupo que governa sem limites e sem freios. Desconfia igualmente de quem não respeita de forma sagrada a constituição, e por isso, coloca vínculos e contrapesos.
É por esta razão que seria precisamente a civilização anglo-saxónica a segurar bem alto a bandeira da democracia no período mais obscuro da história europeia, quando dominavam por todo o lado as ditaduras e os totalitarismos.
Com o colapso da URSS dá-se a «globalização», isto é, a hegemonia planetária da civilização anglo-saxónica, cuja expressão é a universalidade da língua inglesa, que domina incontestadamente nos negócios, na ciência, nas comunicações.
A civilização anglo-saxónica impõe, onde quer que seja, o seu modo de sentir e de pensar. Modela o cinema, a música, a pintura, a linguagem dos computadores, a moral, as próprias categorias científicas.
A ciência, que é hoje a única fé verdadeiramente sentida, está totalmente dominada pelos anglo-saxónicos. Nenhuma ideia filosófica,
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física, psicológica ou política é considerada como científica se não for aprovada e distribuída pela sua comunidade científica.
Uma civilização, no momento do seu predomínio, reconhece como válido apenas aquilo que sai de si mesma. Os gregos desprezavam a astronomia babilónica, a arquitectura egípcia e o monoteísmo hebraico, os quais também eram superiores no que respeita ao saber. Na Idade Média, os europeus consideravam científico somente aquilo que estava escrito em latim e tinha o imprimatur(nt) da Igreja. Não podiam pensar de forma diferente.
No horizonte cultural da civilização anglo-saxónica, em que as categorias explicativas científicas são exclusivamente utilitaristas, não há espaço para a compreensão de processos de fusão emotivos como o estado nascente, o movimento, o carisma, o enamoramento.
Daqui, a dificuldade em perceber um modelo teórico como o meu, em que movimento e instituição, fusão e pacto, estão em ambos presentes e em equilíbrio dialéctico. Lamento-o, mas dou-me conta da dificuldade.
É a própria língua que os bloqueia. Fá-lo ao exprimir a relação amorosa com as mesmas palavras que usa para falar de uma transacção comercial. Por exemplo: ao usar o you (você), como se fosse entre estranhos, ou com a expressão partners (parceiros) que transforma os enamorados em sócios de negócios. Apenas na linguagem religiosa os anglo-saxónicos conservaram a intimidade da fusão no thou (tu).
Por consequência, o enamoramento é confundido com o acto voluntário, com a instituição, ou seja, é o casamento que o sanciona.
Furio Colombo, ao comentar a recensão do meu livro Enamoramento e Amor, na New York Review of Books, observa: «Alberoni escreve enamoramento e o americano lê casamento, Alberoni escreve fim do enamoramento e o americano lê divórcio. O primeiro fala de processos emotivos, o segundo de decisões».
NT. Imprimatur, palavra latina que significa «imprima-se» e que o eclesiástico põe nas obras a autorizar a impressão.
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O FIM DA URSS E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS
Milão, Outubro de 1989.
Nos últimos dois anos escrevi Movimento e Instituição, para completar a minha teoria dos movimentos e para usar uma linguagem mais simples, não académica.
Uma obscura premonição dizia-me que estava para começar um novo período de movimentos. Queria estar presente com uma obra que também pudesse ser compreendida por um público mais vasto, e chamei-lhe então Génese, para sublinhar o aspecto criativo, gerador dos movimentos.
O livro saiu em Março, enquanto a minha percepção de uma mudança eminente se tinha acentuado. Enviei-o a todos os principais líderes políticos - Craxi, Occhetto, Andreotti, Ingrao, Martelli e muitos outros - convidando-os a uma discussão. Martelli respondeu-me com entusiasmo e Ingrao dizendo que naquele momento, não considerava oportuno um debate sobre movimentos.
No entretanto, um movimento popular deitou abaixo o muro de Berlim e os soviéticos deixaram a Alemanha Oriental. Tudo aconteceu em pouquíssimo tempo. Tem-se a nítida sensação de que todo o império soviético, o mundo inteiro comunista, vai ser abanado nos fundamentos.
Os sinais premonitórios existiam. Já os tinha notado quando o comunismo soviético foi desafiado na Polónia por um movimento católico - o Solidariedade - e no Irão e no Afeganistão pelo revivescer islâmico. Era o sinal de que a civilização cultural marxista já não conseguia dar a sua linguagem aos movimentos e era incapaz de os absorver.
Mas quais é que serão as consequências em Itália? Todos esperam uma crise do partido comunista. Alguns pensam deveras que desaparecerá. Mas eu tenho fortes dúvidas.
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O marxismo é uma civilização cultural como o Cristianismo, o Islão. Quantas vezes se disse que o Cristianismo estava acabado, que o Catolicismo estava ultrapassado! E, ao contrário, de todas as vezes, ambos sobreviveram, reformando-se, renovando-se. Pensemos em quantas transformações eles sofreram desde as origens.
É provável que o mesmo aconteça com o marxismo. Depois da crise inicial, aqueles que acreditavam nele, que durante anos e anos lhe foram fiéis, transformá-lo-ão, renová-lo-ão. Isto, porque não quererão renunciar à grande esperança que ele tem representado.
É mais fácil, por isso, que o comunismo italiano se limite a mudar o nome, que vá de encontro a uma evolução ideológica na acepção ocidental e liberal. Mudará o rosto, o aspecto, as palavras, conservando apenas o núcleo interno, isto é, a desconfiança para com o privado, o capitalismo. E continuará a ter confiança no público, no estadismo, na burocracia, no primado da política.
Contudo, os comportamentos estão a mudar, as pessoas já não têm medo do comunismo e da União Soviética. O fim da Guerra Fria significa, antes de tudo, isto: o fim do comunismo visto como se fosse um demónio.
Gorbachev continua a ser o secretário do partido comunista soviético, mas vendo-o, ninguém pensa nele como uma personagem perigosa ou como um déspota sinistro. Ele tem, inclusivamente, vindo a ser comparado com qualquer líder democrático ocidental.
Por esta razão, eu creio que um dos efeitos principais da queda da União Soviética será também o fim do medo dos comunistas, a sua transformação e a sua rápida integração no sistema democrático.
Isto quer dizer que em Itália torna-se possível aquele «compromisso histórico», tantas vezes procurado e tantas vezes adiado nos anos setenta e oitenta.
Craxi, Andreotti e os outros líderes políticos têm recusado o debate porque estão convencidos que o fim do comunismo signifique o triunfo total deles.
Mas enganam-se. O sistema italiano já não é polarizado pela Guerra Fria, já não é atravessado pela cortina de ferro. E, exactamente por isso, está destinado a transformar-se profunda e rapidamente, a ser assolado por movimentos.
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Ninguém pode saber quais serão os movimentos, mas é certo que eles virão por aí. Quem imagina uma continuidade política irá de encontro a grandes frustrações.
A sociologia é como a sismologia, a qual não pode dizer-nos quando é que acontecerão os terramotos e nem sequer onde eles terão lugar exactamente. Mas, pode indicar-nos as áreas mais prováveis em que eles podem acontecer.
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A PANTERA
Milão, Fevereiro de 1990.
Hoje, os jornais e a televisão falam da «Pantera» como de um novo movimento estudantil. De um outro Maio de 68. Mas não é verdade. As ocupações das escolas, que vêm sendo feitas, regularmente, no início de cada ano escolar, não são espontâneas, mas sim o resultado da agitação de grupos juvenis dos partidos de esquerda.
A Pantera é apenas uma agitação programada contra o projecto do ministro da Universidade, Ruberti, que prevê uma relação mais estreita entre universidades e empresas económicas. Esta proposta, que seria utilíssima para o desenvolvimento do nosso país, foi de imediato rejeitada com os velhos slogans do populismo católico e marxista: «Fora com as mãos do capitalismo da universidade!»
Os estudantes têm ouvido falar da época heróica das ocupações e pensam em reviver aqueles tempos gloriosos, tempos estes que lhes foram contados por professores com a nostalgia do Maio de 68. No entanto, nos seus comportamentos, nos seus slogans, não existe nenhuma ideia nova, nenhum debate, nenhuma esperança. Não há nenhum movimento no estado nascente.
Os jornalistas e os sociólogos continuam a confundir os movimentos com as agitações e as ocupações.
O movimento é, antes demais, uma transformação interior, uma revolução interior, uma revelação radical que, depois, comunicada e participada por outros, pode produzir maiores ou menores fenómenos de massas.
A essência do movimento não está nos fenómenos de agitação, na mobilização das multidões, nas concentrações. Ela está na irradiação
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de um modo de pensar e sentir diferente e revolucionário. A pregação de São Paulo, de Jan Hus, de Lutero ou de Zuínglio, era seguida, no início, por poucas pessoas, mas era já um movimento.
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O VAZIO DEIXADO PELO COMUNISMO SOVIÉTICO
Berlim, Novembro de 1990.
A queda do muro de Berlim e do sistema soviético não aconteceu sob o impulso de um movimento com grandes ideais. Aconteceu porque as pessoas tinham visto na televisão os bens de consumo ocidentais e perceberam que bastava andarem cem metros para ir comprá-los.
E, na verdade, as pessoas de Berlim Oriental, logo que tiveram autorização para ir à zona Oeste, foram gastar todo o seu dinheiro no grande armazém. Vi-os a vaguearem no KaDeWe (NT), como se fossem o Pinóquio no país dos brinquedos.
Por conseguinte, na minha linguagem, isto não é um movimento colectivo de grupo que crie solidariedade, novos ideais e novas instituições, mas um processo de agregado, como as migrações, as modas, em que se modificam os comportamentos práticos, mas não o modo de pensar e de sentir.
Claro que existiu também um embrião de movimento - o movimento das velas. As pessoas reuniam-se todas as noites, em volta das igrejas protestantes, com velas acesas, para demonstrar a sua própria oposição e o seu próprio desejo de mudança.
Mas não eram crentes. Não estavam tomados de alento por um regresso do espírito religioso. As chamas não simbolizavam as suas almas. Eram apenas um sinal de discórdia. O objecto, a meta da sua luta, não era um mundo melhor, mas simplesmente o acesso ao paraíso dos consumos ocidentais.
NT. Os KaDeWe são uns grandes armazéns de Berlim, dispostos em andares, que vendem todo o tipo de artigos, dos mais diferentes ramos.
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O movimento transcende, o que existe, faz entrever um mundo mais nobre e mais justo, e mobiliza as energias para realizá-lo. Até as guerras índias, até os cultos do cargueiro, mesmo prometendo os bens dos brancos, requeriam uma mudança radical. Anunciavam o regresso dos mortos, o que edificaria sobre toda a terra um novo reino de justiça.
Ao contrário, estes berlinenses de Leste, querem apenas os Mercedes, as máquinas de lavar, os sapatos, os frigoríficos, as peles dos ocidentais. Querem o dinheiro dos ocidentais. Mas sem mudarem, permanecendo eles próprios.
O capitalismo, para eles, é apenas um socialismo rico. Um socialismo onde te dão uma habitação luxuosa, um carro luxuoso, uma comida sumptuosa, férias mais longas, sem que tu faças nada demais ou de diferente daquilo que fazias antes.
É uma assistência de luxo. Uma assistência de milionários. É como se esperassem uma herança. E quem herda pensa só em gastar o dinheiro, não em ganhá-lo.
Os novos berlinenses não colocam o problema da produção, do mercado. Não se perguntam como fizeram os berlinenses do Oeste para produzir aqueles bens que eles querem. Não conhecem o trabalho, a dedicação, as apostas feitas para alcançar aquele bem-estar que eles contemplam com os olhos brilhantes. Não sabem que o bem-estar é um resultado, pensam que seja uma dádiva. Esperam que seja o tio da América e de Bona a sustentá-los.
Não sabem, esqueceram-no durante os cinquenta anos de regime comunista, que o capitalismo é uma contínua tensão, invenção, concorrência, iniciativa, trabalho, risco. E que é sustentado por uma ética das relações sociais, do crédito, da responsabilidade.
Em Setembro, em Villa d’Este, ouvi falar os jovens economistas americanos que enxameiam sobre os restos do império soviético com o intuito de ocidentalizá-lo. Estes pensam que em poucos anos sucederá por lá um desenvolvimento económico impetuoso.
Crêem, ingenuamente, que o povo ex-soviético tem a mentalidade dos americanos, dos franceses, dos italianos, dos ingleses. Acreditam que uma vez eliminadas as proibições comunistas eles se transformarão em empresários. Não perceberam que foram destruídos, nas suas cabeças, todos os princípios éticos, todos os valores que estão na base da economia ocidental e que são estes os valores que produzem um empresário.
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Na Itália, no final da guerra, a retoma económica aconteceu a partir de baixo com a invenção de novos bens de consumo adaptados à população. No pós-guerra faltavam as estradas, não havia aço, não existia dinheiro, não podiam desenvolver uma indústria automóvel. Contudo, as pessoas tinham necessidade de se deslocar e, por isso, todos tinham uma bicicleta, mesmo se velha e escangalhada.
Então, foi inventado um pequeníssimo motor de 50 cc, chamado O Cachorro, para aplicar na bicicleta. Em poucos meses, milhões de italianos ficaram motorizados a um custo insignificante. A etapa sucessiva foi a invenção e a produção das motorizadas(nt1) Vespa e Lambretta.
No sistema comunista, no lugar dos valores de iniciativa, de responsabilidade, de autonomia, foram insinuados os mecanismos mentais de um burocrata marxista.
Este procura fazer o menos possível, espera que tudo lhe seja dado e inveja quem faça melhor do que ele. Desconfia de quem tem iniciativa. Em face de um problema, em vez de procurar a solução, espera pela intervenção do Estado.
O Estado-patrão, o Estado-mãe, o Estado-polícia, o Estado-prisão, o Estado-espião, que te dá pouco, que na verdade te espanca, mas que em troca te dá segurança e não pretende que tu penses. Não há necessidade de pensar.
É esta a terrível herança devastadora do comunismo que deixa metade da Europa destruída, mais moralmente do que fisicamente. Gente passiva, sem valores, gente que não crê em nada, gente que se lamenta, gente que inveja. Gente que julga que a riqueza é um furto da burguesia e, por conseguinte, está pronta a roubá-la também.
Na Rússia, a privatização acontece deste modo. Os dirigentes de um Kombinat(nt2) industrial transformam-no numa sociedade por acções e tornam-se seus proprietários. Transformam-se assim em milionários incapazes, ignorantes, sem projectos, sem perspectivas, puros vampiros da economia. A outra modalidade para se enriquecer é a de pedir percentagens para deixar fazer aos Kombinat aquilo que eles quiserem. Isto é o mundo do crime, a mafia.
NT. O autor utiliza o termo scooter, também empregue por nós.
nt2. Kombinat, expressão utilizada nos países do Leste europeu para designar o agrupamento ou a união organizada de empresas com diferentes níveis de produção ou em diferentes ramos produtivos, assim como, de empresas de produção e abastecimento.
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Encontramos uma analogia com a Itália meridional, onde a riqueza sempre foi apanágio do poder político. Primeiro os príncipes, os nobres, depois os boiardos do Estado e os mafiosos cobradores de impostos.
Domina em todos eles o sonho de um enriquecimento rapidíssimo, sem cansaço, sem ideias, sem invenções. E, na grande massa da população cresce a esperança de um bem-estar do tipo do ocidental, a obter-se sem esforço, sem criatividade, sem risco, sem mérito, sem iniciativa individual.
Nos países do ex-sistema soviético não existirão progressos económicos milagrosos e rápidos, como sonham os economistas ocidentais. O verdadeiro milagre que é preciso desejar-lhes - e desejar-nos -é que venham ao Ocidente para adquirir os valores que geraram aquele bem-estar que eles ambicionam.
E para isto é preciso tempo. E os valores não podem comprar-se nos grandes armazéns.
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O MARXISMO ESTÁ MORTO?
Milão, Dezembro de 1990.
Muitos estão convencidos de que, com a dissolução da União Soviética, o marxismo também esteja destinado a desaparecer ou esteja já completamente morto. Os estados marxistas que sobrevivem - a Coreia do Norte, Cuba e a própria China - serão meras sobrevivências, destinadas a desaparecer mais cedo ou mais tarde, para dar lugar a um capitalismo florescente.
Mas será verdade? Dissemos que o marxismo é uma civilização cultural e estas duram sempre séculos, se não mesmo milénios. Logo, ou enganámo-nos - e o marxismo não era uma civilização cultural— ou então, ele revitalizar-se-á e transformar-se-á, desempenhando inclusive um papel no futuro.
O marxismo nasceu como um movimento voltado para a oposição ao desordenado processo capitalista do século XIX. Foi Engels, com a sua pesquisa sobre as condições da classe operária, quem deu a Marx o ponto de partida inequívoco para a sua teoria. Enquanto gera riqueza, o capitalismo dissolve todas as formas de vida associada, a comunidade, a família, as regras morais. É verdade que cria riqueza, mas, ao mesmo tempo, produz miséria, embrutecimento, delinquência. Numa palavra, gera a desordem social.
O capitalismo, defendem Marx e Engels, está condenado à destruição porque é incapaz de criar solidariedade social, normas sociais, valores que mantenham cimentada a sociedade. Fundado com base na pura concorrência - a luta de um contra o outro — o capitalismo, ao ser deixado sozinho, restabelece a situação do estado de natureza — homo homini lupus — o que torna a vida insegura, angustiosa, imprevisível.
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Marx enumerou diversas razões pelas quais o capitalismo, a certa altura, deveria desaparecer: a queda progressiva da taxa de lucro, a concentração capitalista que tinha colocado toda a riqueza nas mãos de poucas pessoas, o empobrecimento progressivo dos trabalhadores, o inevitável rebentar das crises. Mas, a verdadeira razão, a razão profunda pela qual Marx e os marxistas pensavam que o capitalismo não sobreviveria, reside nisto: não percebiam como ele tinha podido manter junta a sociedade.
E, se o capitalismo tivesse continuado da mesma forma, sem elementos correctivos, teriam tido perfeita razão. Mas o capitalismo tinha correctivos. De um lado tinha uma ética, como demonstrará Max Weber. Mas, sobretudo, ao criar a desordem, o capitalismo, pôs em andamento movimentos colectivos, sindicais, nacionais, políticos, que reconstituíram a solidariedade social que a pura concorrência capitalista destruíra. Foram estes movimentos que reconstituíram a fidelidade, a confiança recíproca, os ideais, em resumo, o tecido vivo da sociedade que permitiu o funcionamento do mecanismo capitalista.
No entanto, atenção, pois de cada vez que o mecanismo de desenvolvimento capitalista recomeça a funcionar por si - digamos assim no estado puro - o processo desagregador volta a prevalecer sobre o reconstrutivo e reaparece a desordem social. É por isto que, de cada vez que o processo de destruição criativa do capitalismo ultrapassa um dado limite, nascem movimentos que o refreiam e reconstituem a ordem. Por que razão temos de pensar que estes movimentos deverão renunciar ao uso até das categorias do marxismo?
É certo que é difícil de imaginar, depois das experiências desastrosas da União Soviética, que algum país procure substituir novamente o plano económico de mercado. Mas, é fácil imaginar que se possam inventar muitas outras formas de intervenção do Estado na economia, que se possam justificar em nome de Marx e de Engels e, por que não também em nome de Lenine, quando ele introduziu a NEP (NT), uma forma mista de economia privada e estatal. E não vejo por que razão não possam nascer partidos neocomunistas ou não possam reactivar-se formas de social-democracia estatal que sigam as mesmas linhas da tradição marxista.
NT. NEP — Nova Política Económica.
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Poderia por isso acontecer, também no marxismo, o que aconteceu com outras civilizações culturais, que a doutrina originária venha progressivamente a ser modificada, adaptada às diversas circunstâncias, fazendo-a mesmo remontar à própria fonte de inspiração.
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MOVIMENTOS DOS ANOS NOVENTA.
TENSÕES
Milão, Dezembro de 1991.
As pessoas já não suportam a gíria política. Não é a recusa de alguém em particular, é uma intolerância generalizada. Envolvendo tanto os jovens como os velhos, tanto as mulheres como os homens. Dei-me conta disso na outra noite no Circolo de Amicis ao participar num debate. Alguns políticos, ao falar, pareciam que repetiam pela milionésima vez frases privadas de sentido, slogans vazios.
As pessoas ouviam distraídas e aborrecidas. Uma parte do público levantou-se, outra parte protestava. Não são as palavras em si, o seu significado literal, que suscitam esta curiosa reacção, dizia-me. Mas o discurso político enquanto tal.
Parece que é feito de palavreado vazio, frases feitas, ditas sem convicção, sem arrebatamento. Às palavras já não corresponde nenhum significado, nenhuma convicção. É como se rezassem um rosário tibetano.
O sucesso de Bossi, de transmissões como as de Funari, derivam da linguagem que usam. Quando Bossi emprega a expressão milanesa attaccati al tram (nt) dá um sentimento de libertação. Faz-te rir e alarga-te o coração, como se ouvisses de novo a língua materna num país estrangeiro.
NT. A expressão em questão — que num sentido literal quereria dizer «agarra-te ao eléctrico» — tem alguns equivalentes em português, por exemplo nas expressões: «agarra-te à bronca» e «agarra-te ao pai». Esta expressão vulgar tornou-se francamente popular. Significa que as pessoas são deixadas ao acaso e devem, por conseguinte, «desenrascar-se». A expressão dá o tal sentimento de libertação e faz rir, como diz Alberoni, porque a elite política não costuma ter este tipo de linguagem. O facto de Umberto Bossi a dizer, revela um corte com os cânones instituídos do politicamente correcto, o que o faz aproximar-se da linguagem do povo e do próprio povo.
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A grande procura é: «fala como comes» — exactamente porque quando os políticos falam são entendidos como uma casta separada, desfasada da realidade. E a sua linguagem «enrolada», ou os golpes com que liquidam as perguntas espinhosas, é uma espécie de camuflagem da própria incapacidade de percebê-la. De perceber os próprios eleitores.
Deve ter acontecido algo de semelhante na União Soviética nos anos oitenta. As pessoas, a dada altura, já não podiam mais com as fórmulas, com os slogans, com o mesmo modo de frasear dos seus líderes. Deixaram de lhes dar ouvidos e predispuseram-se a ouvir vozes diferentes, linguagens diferentes.
Talvez seja por isto que eles preferiram Ieltsin a Gorbachev. Ouvi falar Gorbachev. O pobre homem é honesto, esforça-se ao máximo, quer levar o seu império para fora do lamaçal económico e cultural. Mas sufoca sob o peso da tortuosidade dos discursos do partido. Percebeu para onde deve dirigir-se, quer fazê-lo à séria, mas a marca indestrutível da linguagem comunista cria-lhe um obstáculo insuperável.
O mesmo tipo de recusa, face à linguagem da elite, aconteceu pouco antes da Revolução Francesa. Bastava ouvir algumas palavras, ou antes a simples entoação da voz de um aristocrata, para que as pessoas rejeitassem aquilo que ele estava para dizer. Enquanto que bastavam umas quantas palavras de Danton (Nt) para que o povo alinhasse com ele.
A linguagem incorpora a ideologia, um modo de ser. Bastam algumas palavras para revelar um novo mundo, um novo modo de sentir, de pensar, de viver. Bastam umas quantas palavras para separar o velho do novo.
Entre nós, em Itália, não sucedia algo de semelhante com o Maio de 68 quando os estudantes recusaram as argumentações dos professores, dos políticos? Também então, bastavam algumas palavras dos velhos professores, da gente do velho mundo, para perceber que coisas teriam dito a seguir.
Quando se observavam os jovens — como se vestiam, como usavam os cabelos, que coisas cantavam - percebia-se imediatamente que pertenciam ao novo, que estavam a construir uma nova era.
nt. Referência a Georges Danton, político revolucionário francês que desencadeou com os seus discursos provocadores o ataque à Bastilha.
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Então, a diferença era sinalizada, essencialmente, pelo canto, pelas roupas, pelas imagens e pelos sons. Hoje, é pela linguagem.
No período do Maio de 68 eram os jovens que não suportavam a linguagem dos políticos. Hoje, é mais grave, porque isso acontece com todas as idades.
Uma revolução não rebenta porque os jovens se põem contra os pais. Uma revolução rebenta quando todo um povo se coloca contra a sua classe política.
Ao observar os rostos dos políticos dou-me conta de que estão perdidos. Já não sabem como comunicar com os eleitores. Os instrumentos de convencimento, que usaram até agora, perderam toda a eficácia, ou melhor, viraram-se contra eles. Cresce a agressividade e eles atrapalham-se, não sabem como controlá-la.
Quanto mais perscruto as suas faces no ecrã da televisão, mais me convenço de que os chefes dos partidos de governo não se dão conta de que a agressividade está destinada a aumentar e que o processo é irreversível.
Não conseguem compreender que o espírito dos tempos mudou. E não o conseguirão porque vivem rodeados dos fidelíssimos que, para não perturbá-los, referem-lhes apenas aquilo que eles querem ouvir dizer. Perderam o contacto directo com as pessoas que, em tempos, os aclamaram e os levaram aonde estão ainda hoje.
Também aqui me vem à cabeça a Revolução Francesa e a União Soviética. Ou Cuba, no período que precede a queda do regime de Baptista. Os últimos a não perceberem, até ao fim, que a fractura era irreparável, foram precisamente os chefes. Exactamente aqueles que deveriam percebê-lo a tempo. Muito tempo antes.
Quando Craxi e Andreotti estavam na direcção dos movimentos, compreendiam a linguagem do povo e sabiam dar respostas adequadas às suas exigências, aos seus desejos, aos seus sonhos. Tudo era fácil, simples. O povo estava confiante, era empreendedor e criativo.
Os militantes de cada partido constituíam um «nós», uma comunidade com os seus próprios artistas, escritores, intelectuais, artesãos, operários, médicos e cidadãos, até mesmo vagabundos. Sentiam-se orgulhosos da sua própria identidade e dialogavam, confrontavam-se, competiam com as comunidades dos outros partidos. A competição - ou dialéctica, como preferiam dizer os militantes - fazia bem a todos.
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Hoje, os nossos líderes políticos não estão sequer em condições de ouvir os próprios eleitores.
Foi isto que destruiu tantos ditadores. A distância, o isolamento, a surdez, a presunção de saber aquilo que está bem para o próprio povo.
Paradoxalmente, é esta impossibilidade de perceber, que acontece de um modo cíclico, que salva a democracia. Que faz emergir novos líderes - uma nova elite - que compreendem e falam a linguagem do povo. É a nova elite, diz Pareto, que traz a linfa vital para fazer girar a roda da história.
Mas, se hoje sucede tudo isto, quer dizer que o grupo dirigente está destinado a ser subvertido. Bossi e Segni, com os seus movimentos, estão apenas no início. É a primeira onda de revolta. Seguir-se-ão outras, mas, para saber quais, é preciso esperar.
A sociologia pode intuir as tendências mas não tem a aspiração nem a tarefa de ser vidente.
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OS NOVOS MOVIMENTOS
Forte dei Marmi, Verão de 1993.
Estamos de novo em plena época de movimentos. Começou a Liga, que deu voz ao descontentamento do Norte e preencheu o vazio deixado pela crise da Democracia Cristã.
A Liga é um movimento que apresenta todas as características por mim descritas. O seu processo de historicidade baseou-se nas ideias de Alberto da Giussano e de Pontida. Tem um chefe carismático omnipotente, como Bossi, e, por agora, possui uma enorme força de arrastamento, como mostra a sua expansão nas regiões da Emilia e da Toscana.
Depois da Liga, rebentou o movimento referendado de Segni. Segni deu voz a uma intolerância difundida contra o sistema político existente. No entanto, não conseguiu dar uma estrutura organizada ao seu movimento.
Um outro líder tê-lo-ia conseguido fazer. Existiam todas as condições para tomar nas mãos o país inteiro: a revolta dos moderados, a espera de uma mudança extraordinária, a procura de um orientador.
Depois, pôs-se em andamento Di Pietro com o movimento Mãos Limpas. Por que digo que Mãos Limpas é um movimento? Porque as paredes de Milão estão cheias de escritos «Obrigado Di Pietro». Porque a gente comum vê em Di Pietro um justiceiro, uma espécie de Robin Hood. Se não fosse um magistrado, e se se candidatasse às eleições políticas, obteria uma avalancha de votos.
Mas também os outros magistrados surgem como heróis, como justiceiros. Contudo, não podem dar origem a um movimento político organizado, a um partido político que concorra às eleições. O seu peso político é determinante, mas somente enquanto destroem, pela via judicial, os partidos de governo.
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As incriminações, as detenções e sobretudo os avvisi di garanzia(nt) usados como arma política, no espaço de um ano, destruíram completamente o centro-direita do sistema político italiano. Desapareceram a Democracia Cristã, o Partido Socialista, o Social-Democrata, o Liberal e o Republicano! Todos os partidos que governaram ininterruptamente a Itália do pós-guerra.
O que permanece intacto sobre a cena? Essencialmente o Partido Comunista. Existe também, à extrema direita, o Movimento Social, mas continua a ser visto com desconfiança. O novo movimento da Liga norte é secessionista e, portanto, não pode recolher os votos dos meridionais.
Todos, por isso, prevêem que nas próximas eleições administrativas os comunistas não terão opositores e que conquistarão 90 por cento dos votos. E isto, precisamente depois da queda do sistema soviético, do muro de Berlim, depois da ruína da própria ideologia marxista comunista!
A maioria dos italianos que seguiu Segni no movimento referen-dário, que aprovou o movimento Mãos Limpas na sua obra, não se reconhece de modo nenhum na força política que está para tomar o poder. Por isso, cresce de dia para dia uma obscura sensação de medo, de mal-estar, e o desejo que a renovação começada tenha uma outra saída.
Digamo-lo em termos da teoria dos movimentos: os movimentos suscitaram uma esperança que está a dirigir-se para uma instituição que muitos rejeitam. No entanto, não têm nenhuma alternativa. Desejam uma renovação, mas não a que se está a preparar. Assim, esperam que aconteça alguma coisa.
À medida que nos avizinhamos das eleições políticas, esta sensação de perigo, de desilusão, esta espera crescerá e tornar-se-á uma potência explosiva.
Até um cego se aperceberia que, neste momento, basta lançar uma palavra de ordem, basta um líder para desencadear um movimento de centro-direita. Podiam tê-lo feito Segni ou Di Pietro. Mas não o fizeram.
Quem é que se mexerá?
nt. Avisi di garanzia, — expressão sem tradução adequada em português que aparece em Itália durante o período do movimento Mãos Limpas. Significa uma espécie de citação (intimação judicial) que avisa o indiciado de que vai ser alvo de investigação.
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FORZA ITALIA
Milão, Julho de 1994.
Apareceu um novo movimento, como era lógico que acontecesse. Ninguém, nem sequer eu que o tinha previsto e escrito no Corriere della Sera, podia imaginar que se chamasse Forza Italia e que a guiá-lo estivesse um empresário, Silvio Berlusconi.
Mas foi ele quem se mexeu. Foi ele, na realidade, que fez precipitar o processo em acto. Se Bossi, Segni ou Di Pietro tivessem sido mais hábeis, teriam conseguido obter o mesmo sucesso. Deveriam apenas ter-se apresentado como defensores do mundo moderado, como barreira contra o predomínio comunista.
Estou, contudo, desconcertado. Não houve um só jornalista, um só analista político que tenha interpretado a história recente italiana em termos de movimentos. Hoje, frente a um movimento maciço como o de Forza Italia, os meus colegas sociólogos explicam-no como efeito da propaganda televisiva de Berlusconi. E não são os únicos a crê-lo. Que os chefes e os militantes, intelectuais e não, do Partido Comunista, o digam, o gritem com desdém, não me surpreende. Faz parte da competição política. Mas que acreditem em tal, isso é que já me parece inverosímil.
Forza Italia é um verdadeiro movimento político. Berlusconi meteu-o em movimento porque as condições predisponentes eram favoráveis. Mas, depois, alastrou-se e, em grande parte, auto-organizou-se, com a formação espontânea de doze mil «delegações»(NT1). As poucas centenas de «funcionários com pasta»(nt2), que Berlusconi pôs em campo,
nt1. O autor utiliza a palavra afecta ao próprio movimento — Clube — que o tradutor optou por traduzir como delegação.
NT2. O autor utiliza a expressão funzionari con la valigetta que para nós não faz grande sentido se não se explicar que se refere a pessoas das áreas da economia, finanças e gestão habilitadas, a priori, para coordenarem a organização do movimento Forza Italia. A estas pessoas, pelo seu estatuto profissional, está-lhes, normalmente, associada a ideia de pasta.
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não teriam conseguido organizar nem sequer um décimo daquele número.
Ele mesmo não percebe ainda o que realmente aconteceu. Não sabia o que era um movimento. Deu a palavra de ordem que uma multidão de italianos esperava. Aperceberam-se do seu chamamento, reconheceram-no como seu líder. E agora, ele guia-os como sabe e como pode.
Mas, o movimento avança por conta própria, tal como um rio. Nas eleições europeias Forza Italia alcançou 30 por cento dos votos. E ele, sozinho, obteve cinco milhões de preferências. Nunca antes tinha acontecido na história italiana.
As oposições continuam a dizer que não se trata de um movimento, mas do efeito de uma acção publicitária televisiva. Uma tese privada de fundamento. Todavia, vem sendo repetida por razões propagandistas. Só que, à força de repeti-la, acabam por acreditar nela também as pessoas vigilantes, cultas. Basta observar as posições tomadas por Umberto Eco, que contudo é uma pessoa inteligente. Basta olhar para os sociólogos, que no entanto deveriam ser entendidos em fenómenos sociais.
Um dos efeitos mais importantes do movimento Forza Italia foi o de parar a expansão da Liga. Quando dois movimentos se sucedem, o segundo tem o poder de arrastar o primeiro, o qual já está a caminho da institucionalização.
O arrastamento acontece porque o novo movimento, suscitando um estado nascente, dá a impressão de poder levar a cabo a esperança do movimento precedente que, estando em vias de institucionalização, já produziu desilusões.
O movimento Forza Italia está a absorver a Liga, está a hegemonizá-la. E Bossi, que é um animal político, percebeu-o. Ele, além disso, é um chefe carismático totalitário e absolutamente sem escrúpulos. Não terá em consideração o mandato dos eleitores. Não terá em consideração nem sequer a opinião das personagens eminentes do seu movimento. Para fazer viver a Liga procurará subverter o movimento
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Forza Italia, Berlusconi e os seus. Mesmo se à custa de afimdar o governo, mesmo se à custa de aliar-se com os comunistas. Destruir Berlusconi é agora o seu pensamento fixo, o seu objectivo fundamental. E não haverá paz enquanto não o conseguir - admitamos que o consiga.
Expus este tipo de análise em diversos artigos no Corriere della Sera. Mas dou-me conta de que não foram percebidos. As pessoas, em política, não querem conhecimento, querem uma arma com que enfraquecer ou destruir o adversário.
Para que serve a minha análise, os meus estudos? Para que serve então a minha teoria dos movimentos?
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EQUÍVOCOS E ENGANOS
Milão, Março de 1995.
Esperam que a Liga se dissolva, esperam que se dissolva o movimento Forza Italia. Imaginam que alguém possa derrubar o poder de Bossi na Liga e tomar-lhe o lugar. Esperam que alguém possa derrubar o poder de Berlusconi e colocar-se à frente do movimento Forza Italia. Pobres sonhadores! Não conhecem a natureza dos movimentos, do laço entre movimentos e chefe carismático.
O carisma do chefe carismático é o primeiro a institucionalizar-se, a fixar-se. E, uma vez fixado, não pode mais ser modificado.
Num movimento institucionalizado, ninguém pode aspirar a tomar o lugar do chefe carismático. Movimento e chefe, depois de algum tempo, estão inexoravelmente ligados. Somente o chefe pode decidir retirar-se e consignar o carisma a um outro. Mas, mesmo neste caso, pode sempre pedi-lo de volta.
Apenas a morte do chefe desata este nó e deixa os seguidores livres para procurarem um novo chefe. Deixa-os livres para lhe encontrarem um sucessor carismático.
Para destruir o chefe, por conseguinte, é necessário destruir o movimento ou a instituição em que se encarnou. Mas a que preço?
A história já o demonstrou. Foi necessária uma guerra mundial para destruir Mussolini e Hitler. Também Estaline e Lenine perderam o carisma só depois do colapso da União Soviética.
É uma tentativa absurda e inútil procurar destruir um movimento, quando este está ainda vivo e fortificante, matando-lhe o chefe. Claro que um chefe de qualidades extraordinárias é difícil de substituir. Mas é uma ilusão pensar que com a sua morte, ou com a sua prisão, o movimento se dissolva.
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Perdido o chefe, o movimento, geralmente, revela um outro. Morto Jesus Cristo, a sua mensagem espalhou-se com São Paulo e os outros apóstolos. E todos os convertidos chamaram-se cristãos, e a religião Cristianismo, para que ficasse gravado na mente dos perseguidores e no tempo vindouro que Cristo estava vivo. Morto Hus, a revolta continuou com Martin Huska.
Uma vez que o movimento tenha começado a institucionalizar-se, a comunidade recém-formada inicia uma vida própria e torna-se rapidamente, e para todos os efeitos, uma «comunidade tradicional», tal como uma tribo, uma nação que existe há muito tempo.
Todos imaginam que, para formar uma tradição, sejam precisos decénios ou séculos. Não é absolutamente verdade. Bastam poucos anos.
Em Itália, o comunismo, nascido em 1921, tinha já uma tradição consolidada na época da Guerra de Espanha, em 1936. Com menos de dez anos, a Liga já tem a sua própria tradição. Dentro de cinco, dez anos, também o movimento Forza Italia terá a sua tradição.
Uma vez constituída, a comunidade inculca nos indivíduos os seus conceitos, os esquemas com que orientar o mundo. Fá-lo com a linguagem, com a propaganda, com os mil lugares comuns da vida quotidiana. Em poucos anos, transfere para os seus membros crenças, valores, medos, preconceitos, ódios, amores, preferências e repugnâncias.
Estes sentimentos penetram na sensibilidade, na moral, no gosto. Modelam o modo de pensar, enraizam-se na base dos sentimentos, das paixões, produzem simpatias e antipatias imediatas. Assim, basta um gesto, uma palavra, um símbolo, um cântico para desencadear reacções violentas de amor ou de ódio, de aceitação ou de rejeição.
A discórdia, o debate dos pequenos grupos e das assembleias inflamadas é típico da primeira fase do movimento. Depois desaparece rapidamente. Logo que se institucionalizam, o chefe e o grupo dirigente podem impor seja qual for a mudança de rota, sem que os seguidores a discutam. Ela torna-se a sua pátria, o seu partido, a sua igreja, e seguem-na sem mais dúvidas.
Os fascistas, uma vez chegados ao poder, teriam seguido Mussolini mesmo se ele tivesse introduzido em Itália um modelo de desenvolvimento soviético. Os comunistas soviéticos seguiram Estaline na sua aliança com o nazismo. E tê-lo-iam seguido mesmo se ele tivesse privatizado a economia, explicando que precisava de introduzir o mercado. Porque, afinal, a URSS era o seu horizonte de referência.
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Hoje, a Liga seguiria Bossi mesmo que ele se tornasse ultranacionalista, e o movimento Forza Italia seguiria Berlusconi mesmo se ele formasse governo com os comunistas.
Mas o movimento - qualquer pessoa pode opor-se-me - não é fluido, portanto, caracterizado por participação, discussões sem fim? É certamente, mas só nos inícios.
Os debates, as heresias e as excomunhões continuam por muito tempo apenas nos movimentos que depois se tornam civilizações culturais. De facto, nas civilizações culturais, surgem continuamente novos movimentos que voltam a colocar em discussão os dogmas ou as instituições existentes.
Na história do Cristianismo, os valentinianos, os monofisitas, os nestorianos, os donatistas e os arianos constituem outros tantos movimentos que disputaram a hegemonia da civilização nascente. Durante muito tempo parecia que deveria prevalecer Ario, o preferido da corte de Constantinopla. E só em seguida é que venceu Atanásio, com o apoio de Santo Ambrósio e do imperador Teodósio.
Quando, pelo contrário, um movimento é de dimensão mais restrita, quando não deve englobar instâncias demasiado diferentes e numerosas, é rapidamente enquadrado pelo grupo dirigente. E, muitas vezes, os debates dizem respeito só a questões tácticas e marginais. É o chefe que decide.
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MOVIMENTOS E CRIAÇÃO MUSICAL
Forte dei Marmi, Março de 1996.
Neste momento histórico está em acção um verdadeiro acordar religioso.
Vimo-lo com o aparecimento do Solidariedade, na Polónia, com o expandir-se do integralismo islâmico, na Ásia e em África, com a difusão da New Age, nos Estados Unidos. E, na Europa, com o retomar da Igreja Ortodoxa, na Rússia e nos países eslavos. Mas hoje, está também a realizar-se uma renovação religiosa do Cristianismo.
O sucesso triunfal do Papa Wojtyla — onde quer que vá no mundo - é o símbolo da renovação que acontece dia após dia. Um sinal menos vistoso, mas igualmente importante, é constituído pelo movimento carismático e pelo renovamento do espírito.
Graças a este movimento, as igrejas, que tinham ficado vazias e tristes, estão novamente a encher-se de fiéis e de grupos musicais extraordinários. O aparecimento destes grupos musicais, que criam a sua própria música e os seus cânticos, é um outro sinal inconfundível que estamos perante um processo de tipo novo.
No curso da história, a renovação, a invenção musical sempre acompanhou a nascença de novos movimentos. O canto gregoriano é contemporâneo da afirmação do primado do papado romano; o renovamento musical do século XI é a expressão dos grandes movimentos reformadores da época. Os corais de Bach são a última manifestação do canto coral da Igreja Luterana.
No século XIX o melodrama recebeu um impulso considerável dos movimentos nacionais: em Itália, com Verdi, e na Alemanha, com Wagner. Os espirituais, dos quais surge a música afro-americana contemporânea,
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têm a sua incubação nos movimentos religiosos que vão conduzir à Igreja Baptista.
Numa época mais recente, a música dos Beatles, de Joan Baez e depois a dos Rolling Stones, nasceu no clima dos movimentos juvenis da época. As cores psicadélicas, as comunidades de hippies, a música do Woodstock, a revolução sexual e o pacifismo são manifestações da mesma esperança.
Uma outra característica dos movimentos é a grande proximidade entre criadores e desfrutadores, que podem quase inverter-se. Nos anos sessenta, quase todos os jovens tocavam guitarra e cantavam.
Neste momento histórico existem dois tipos de música popular: a música de discoteca e a canção.
A música de discoteca é compacta, ritmada, obcecante. Os indivíduos e os grupos anulam-se num estado de transe favorecido pelas drogas. Mesmo que a música seja criada por um compositor e escolhida por um disc-jockey, ela é essencialmente anónima, é a expressão de uma massa e é massificante.
Pelo contrário, a canção é essencialmente individual. Há sempre um autor, um compositor e um cantor. Seja ele a Madonna, Zuccero, Mina, Lucio Dalla, Renato Zero ou Pavarotti. Cada um tem o seu estilo, a sua mensagem, o seu próprio público. Mas não são a manifestação criativa de um movimento.
Todavia, de alguns anos a esta parte, apareceu também uma outra música, de tipo religioso, no âmbito dos movimentos de renovação católica.
Os protagonistas, neste caso, são geralmente um grupo de jovens que toca diversos instrumentos musicais e compõe quer a música, quer as letras dos seus cânticos. Cada um traz para o grupo a sua experiência e a sua própria capacidade e sensibilidade musical. E, uma vez que todos devem participar, solistas e coro alternam-se num jogo contínuo das partes e sempre com novas invenções.
Ouvindo-os, por isso, vem-nos à cabeça a origem da música gos-pel, ou do jazz, quando se formavam grupos espontâneos, em que cada instrumento entrava de forma criativa.
É o estado nascente da música, que emerge da capacidade de ligar tantas criatividades individuais, no foco do entusiasmo e da esperança colectiva. É só num segundo tempo que esta produção coral se organiza à volta de líderes e se submete a regras, a fórmulas, a géneros precisos.
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NO TERRITÓRIO DO SACRO.
SACRO E PROFANO
Milão, Maio de 1996.
Existem duas formas de olhar o mundo. Uma é a da racionalidade e da ciência. Ela mostra-nos um universo governado por leis impessoais e imutáveis.
Também os acontecimentos imprevisíveis - pensemos nos terramotos, no ponto em que cai um raio, na pedra que rola da montanha e atinge alguém que passa - são enquadráveis em fórmulas matemáticas. Estes eventos parecem-nos misteriosos apenas porque a nossa ciência está ainda demasiado atrasada.
Mas há também uma forma de ver o mundo como mistério, onde cada acontecimento é fruto de uma vontade, de um desígnio secreto, portanto, com um sentido moral, um valor. Onde tudo é milagre, graça.
Um mundo onde as leis naturais são apenas a manifestação exterior de uma potência criadora, que não se manifesta em laboratório, mas somente quando decide revelar-se. E que não pode perceber-se com o raciocínio, mas só com a intuição, com o impulso do coração, do amor, da fé.
Estes dois modos de ver o mundo correspondem à antiquíssima distinção entre profano e sagrado. Uma distinção que, no último século, o modo de pensar científico tinha relegado para um plano obscuro. Isto acontecia porque considerava o mundo religioso, o sacro, como fruto da ignorância, do medo, resíduo de uma mentalidade infantil ou primitiva.
Pelo contrário, durante um certo tempo, o totalitarismo científico sufocou também os protestos da filosofia quando defendia que é uma ilusão imaginar um mundo material
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independentemente do sujeito que o conhece. As cores não existem na natureza, são apenas uma percepção nossa. Mas, também as mesas, as árvores, os insectos, as montanhas, os planetas são recortados da nossa mente.
Para pensar num universo que continue depois da nossa morte, devemos acreditar que existem homens que lhe sobrevivem, que existem outras consciências escondidas nas profundezas dos espaços.
Ou então, devemos imaginar Deus. E se introduzimos Deus, tudo se torna possível. Porque Deus pode recriar o universo a cada instante com as suas leis naturais.
Na última parte do século XX, com o retomar do espírito religioso, tem vindo a restabelecer-se a separação. De um lado, o mundo natural, profano, onde são válidas as leis da natureza, onde tudo é causa e efeito, onde domina incontestavelmente a técnica, onde nós actuamos ao encontrar os meios adequados para realizar os nossos fins. Mas, ao lado disto, está o território do sacro, do mistério, do divino, do milagre, da oração, do valor, da moralidade. Este território não é, propriamente falando, «deste mundo».
Há uma descontinuidade absoluta entre Deus e o mundo, Deus e a natureza, Deus e a sociedade. É precisamente porque perdeu Deus que a sociedade moderna pôde imaginar que Jesus Cristo fosse apenas um homem exemplar, um modelo moral.
É exactamente porque perdeu Deus que a sociedade moderna pôde pensar que a vida religiosa se exprimisse completamente na solidariedade social. A caridade cristã não é solidariedade. É amor por Deus. Mas, não pode amar-se a Deus se Ele não te chama. Por conseguinte, a própria caridade é apenas um dom divino, uma graça.
Para encontrar Deus é preciso retirar-se do mundo, das suas vozes, das suas imagens, das suas seduções. É necessário fechar os olhos, os ouvidos, a mente e abrir o coração. Invocá-Lo. Desejar o Seu amor. Rezar e amar são a mesma coisa. Na oração nós invocamos Deus e Ele revela-Se-nos para que O possamos amar. Por esta razão, também a oração é graça.
As pessoas descobrem ou aproximam-se do divino somente nos limites da ordem natural. Nas catástrofes, quando a ordem natural é perturbada. Ou então, quando a transcende na criação artística, científica, filosófica. Ou na desventura, na doença, no desespero, em face da morte.
Ou ainda, quando se colocam verdadeiros problemas morais. Porque também a moralidade não é «deste mundo». A natureza não é boa,
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não é piedosa, não é justa. Cada ser vivo luta pela sobrevivência, segundo a lei do mais forte.
Enquanto que a moral impõe limites, deveres, sacrifícios, e pode pedir para amar o próximo, para amar o próprio inimigo, o coração da religião cristã é deveras a cruz, o sacrifício voluntário da própria vida por amor não aos bons, aos amigos, mas aos perversos.
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CIÊNCIA E MORAL
Milão, Junho de 1996.
A religião, a moral e a arte são fundadas em categorias diferentes das da ciência. A pretensão da ciência em ter a hegemonia sobre as outras é desprovida de sentido. Nós agimos na vida, criamos, trabalhamos porque somos impelidos por desejos, sonhos, valores.
Claro que a ciência pode explicar por que razão existem estes sonhos, estes desejos, e reconduzi-los a factores biológicos ou químicos. No futuro, poderá produzi-los à vontade, estimulando de forma oportuna o hipotálamo ou o córtex cerebral. Mas, fá-lo-á apenas se for movida por outros desejos, sonhos e valores.
Cada coisa pode ser vista desta forma dupla, do ponto de vista da ciência e do ponto de vista dos valores, e nenhum deles consegue absorver o outro.
A ciência não pode demonstrar o que é melhor e o que é pior, o que vale ou o que não vale. Deve observar os fenómenos e descobrir as leis que os regulam. Mas não pode estabelecer o bem e o mal.
A ciência é construída com base em conceitos próprios, é fundada em certas assunções a priori. Uma destas asserções diz que tudo funciona segundo o princípio da maximização dos lucros em relação aos custos.
Assim acontece na economia, onde a acção mais provável é a que traz vantagens económicas. Em biologia, sobrevive quem é mais apto em relação ao ambiente. Com este princípio também o altruísmo surge explicado com base no útil. No que é útil para o grupo, para os genes ou para a sobrevivência.
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Mas, do ponto de vista dos valores, nós podemos afirmar, com a mesma segurança que o altruísmo é o oposto do egoísmo, que a generosidade é bem e a avareza é mal, e nenhuma afirmação científica nos pode desmentir.
A natureza é indiferente ao bem e ao mal, à dor e à justiça. Contudo, o homem, mesmo pertencendo à natureza e seguindo as suas leis biológicas, aspira também a um mundo diferente. Ao mundo dos valores, da justiça, da bondade, da paz. A um mundo ideal.
E, com base neste ideal, julga-se a si mesmo e à natureza. Por isso, ele está, ao mesmo tempo, dentro e fora da natureza. Enquanto objecto da ciência está dentro da natureza, enquanto tem uma consciência e pensa em termos de valores e de moral, é-lhe de fora.
A moral é sempre uma avaliação a partir de fora. Uma apreciação do homem do lado de fora da natureza, é uma apreciação da natureza feita a partir de fora de si mesma. Nós queremos melhorar a nossa natureza como seres humanos e a própria natureza. A moral faz-nos transcender a natureza.
Aliás, cada transcendência, vista aos olhos da ciência, é por sua vez explicável cientificamente, isto é, como natureza. Nós, diz a ciência, para fugir à dor e à tensão, regredimos à infância e imaginamos o paraíso. Ou então, simplesmente excitamos no nosso cérebro as endorfinas que nos dão uma sensação de paz.
E de novo nós podemos responder que aquela mesma pesquisa científica partiu de um desejo de bem, de um sonho ideal. E teremos razão em ambos.
Cada descoberta científica, com o seu aparecimento, cria novos problemas. Abre, literalmente, um abismo à sua frente. Uma vez descoberto que a Terra gira em volta do Sol, o universo mostra-se-nos ainda mais misterioso porque é infinito. Uma vez descoberto que a velocidade da luz não é superável, compreendemos que estamos encurralados na Terra.
Como estamos enclausurados na Terra, estamos encerrados num paradigma científico. Não podemos sair dele. Por agora, é o único par de óculos que possuímos para ver o universo.
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Hoje, o paradigma dominante é o da evolução. Para a ciência, contudo, a evolução não pode ter nem uma direcção, nem um sentido. O sentido da evolução pode emergir apenas do valor, do raciocínio moral. Nós, no entanto, mesmo ficando no paradigma, podemos procurar o sentido e a direcção.
Se encararmos o processo evolutivo desta outra perspectiva, apercebemo-nos de que a primeira etapa no sentido do que é transcendente foi o aparecimento do sistema nervoso, da dor e da fuga à dor. Foi esta a primeira recusa do que existe.
Depois, chegou o homem, que distinguiu o bem do mal e começou a modificar o mundo, a procurar o antídoto para a dor, para as doenças. Recusou o que existe para realizar os seus sonhos e os seus valores.
Visto à luz da religião, a recusa da dor dos seres vivos e os sonhos e os valores do homem são o sopro do divino no universo.
Dissemos que a ciência e o valor são dois pontos de vista opostos e que nenhum deles pode absorver o outro.
Demos voz aos místicos e aos teólogos.
O homem, sozinho, não pode dar a si mesmo a fé porque a fé não é um produto da racionalidade, da vontade. A fé é amor apaixonado por Deus. E este amor é o próprio Deus que o suscita. O homem pode apenas predispor-se a encontrá-lo. Fá-lo rezando, esquecendo o mundo, esquecendo-se a si mesmo, tornando-se em nada à frente de Deus. É com um abandono total, uma aceitação total - criando um vazio -que Deus, quando quer, preenche o homem com a Sua Graça.
Voltemos a dar voz aos cientistas.
Deus - defendem eles - é um produto da mente humana, dos seus medos ou da sua infância. No futuro, poderemos manipular o cérebro com drogas, com implantações electrónicas. Poderemos, portanto, provocar o estado de fé ou o desaparecimento da fé. Poderemos provocar o estado de graça eléctrico e químico. Poderemos, com a técnica, fazê-lo ver Deus ou o Demónio.
Mas, não teremos dado nenhum passo em frente. Sabemos, na verdade, muito bem, que tudo aquilo que provocamos voluntariamente
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com o uso da técnica é artificial. Também hoje podemos criar paraísos artificiais com drogas, mas não deixam de ser artificiais. No futuro, o homem saberá que aquele deus não é Deus, e que aquele demónio não é o verdadeiro Demónio.
A realidade virtual é ilusão. A mesma razão científica que a cria revela-no-la e depois dissolve-a.
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DEUS, A NATUREZA E O MAL
Forte dei Marmi, Dezembro de 1996.
Cada religião depara-se com o problema do mal. O Cristianismo, que ensina a mansuetude, a não julgar, a perdoar, a amar, depara-se com ele de uma forma peculiar.
A natureza não é moralmente boa. É governada pela lei do mais apto e do mais forte, não pela lei do mais justo, do mais brando como queria a moral cristã. É regida pela violência e pela prepotência, não pela doçura e pela mansuetude.
Basta pousar o olhar sobre um qualquer canto da terra, mesmo que seja num esplêndido jardim, e vemos uma multidão de seres vivos que competem, que se devoram uns aos outros.
Bactérias que invadem o corpo dos animais, plantas que se defrontam e em que uma procura ser sobranceira à outra para aproximar-se da luz, carnívoros que comem os herbívofos. E não se lhes coloca, certamente, o problema de não fazer sofrer as suas vítimas.
E nós seres humanos não somos uma excepção no que respeita aos outros animais. Matamo-los, devoramo-los sem nos preocuparmos com o seu sofrimento. E, à nossa volta, somos atacados por micróbios, bactérias, insectos venenosos, devorados por doenças que provocam dores horríveis.
A nossa natureza psíquica também é violenta, cruel. Os homens, no decurso dos milénios da sua história, fizeram aos seus semelhantes todos os tipos de crueldade. Estrangularam-nos, empalaram-nos(NT), queimaram-nos vivos, esfolaram-nos, deixaram-nos morrer à fome, prolongando a sua agonia para aumentar o horror e o sofrimento.
NT. A empalação é um antigo suplício que consiste em espetar uma estaca pelo sesso (ânus) do condenado, e expô-lo assim até morrer.
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Esta crueldade não desapareceu apesar do homem ter alcançado um nível civilizacional mais elevado. Pode reemergir rapidamente mesmo hoje porque a agressividade é inata ao homem.
Por que razão a natureza não instilou nos seres vivos um limite, um travão perante a dor? Ou mais simplesmente, por que razão não inseriu no seu sistema nervoso um anestésico capaz de ajudá-los a não sofrer quando é indubitável a ameaça da morte?
É espontâneo dizermos que teríamos sabido fazer melhor, que teríamos sabido construir, pelo menos sob este aspecto, um mundo moralmente mais elevado.
Foi ao observar o sofrimento da natureza que muitos hindus negaram a existência de um deus pessoal e criador. E Buda considerou mais importante mostrar aos seres humanos uma forma de se afastarem da dor, não a forma de a aliviarem ou de a debelarem.
Mas quem reflectiu sobre Deus, chegou muitas vezes a uma visão dicotômica. Os gnósticos imaginaram que o universo fosse criação de um princípio inferior, um demónio ou um demiurgo. Como é que um Deus da perfeição e do amor poderia querer tanto sofrimento?
Como é possível conciliar a imoralidade da natureza com a ideia cristã de um Deus de amor?
É certo que o Deus do Cristianismo se sacrificou na cruz voluntariamente por amor aos homens. Mas por que razão se sacrificou? Não teria sido melhor se tivesse criado um mundo menos cruel?
A teologia cristã explica o sacrifício da cruz como expiação pelo pecado original. Mas como é que Adão podia tornar cruel a natureza? O homem pode ser responsável pelos seus próprios crimes, não daqueles levados a cabo por terramotos, por aluviões, por cancros.
A única resposta que consigo dar-me, a única que me volta à cabeça de quando em vez, é aquela que deram a si mesmos os místicos de Safed, como Isaac Luria e a sua escola. E essa é que Deus tinha decidido na criação - para eles na emanação - não manifestar-se a si mesmo plenamente. Não encher tudo com a sua presença. E a contracção, é a autolimitação de Deus que cria o vazio, o não ser, o zim(NT)
zum.
nt. O zim zum designa todo o processo da autocontracção, autolimitação de Deus até ao vazio. Pertence e relaciona-se com a doutrina cabalista. Isaac Luria e a sua escola foram dos primeiros a fazer-lhe referência.
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A natureza, segundo esta concepção, é então uma manifestação incompleta de Deus, onde prevalece não a sua presença, mas a sua ausência. Está impregnada do vazio de Deus, está ainda nas trevas. É claro que nela resplandece, transparece, a beleza e a glória divina, mas sempre de um modo incompleto.
Deus não coincide exactamente com a natureza. Em cada ponto há uma distância, uma ausência, uma transcendência. Quando a violência domina incontestavelmente, quando somos atirados para o sofrimento e para a dor, sentimos mais intensamente esta distância de Deus. O próprio Jesus, na cruz, não gritou: «Pai, porque me abandonaste?»
No Cristianismo, o ponto de encontro de Deus com a natureza é representado pela encarnação, que tem um duplo significado. Enquanto contacto com o inferior, com a natureza, significa sofrimento e morte. Enquanto contacto com o superior, com o divino, significa Ressurreição.
Cristo diz explicitamente que o seu Reino não é deste mundo. Mas os cristãos esperam o seu Reino, a nova Jerusalém. Um universo em que já não existe o mal, a dor e a morte.
Deus transcende a natureza. Mas, como é que nós, homens, podemos transcendê-la?
Só se não lhe pertencemos totalmente. Só se o espírito é, ele mesmo, uma centelha divina. A frase da Bíblia: «Deus criou o homem à sua imagem e semelhança» pode apenas querer dizer isto.
Por isto, às vezes, a alma sente-se em exílio no mundo e aspira desesperadamente ao Reino, onde já não existe a dor, a injustiça, a luta.
Por este mesmo motivo, o homem aspira constantemente a ir para lá do que existe, na direcção de uma perfeição e de um bem absolutos. E, por consequência, não pode fazê-lo a não ser que julgue a natureza, o mundo.
Por isso, quando nós julgamos, condenamos a natureza e a nós mesmos, e podemos fazê-lo apenas porque a transcendemos. É o sopro divino que nos consente ver as coisas a partir do exterior. É ele que nos dá a inteligência moral para levar a cabo este juízo.
Os seres humanos sempre souberam que a natureza não é boa, que é cruel, perigosa, injusta. Por isso os primitivos povoaram-na de entidades maléficas, de monstros, de demónios dos quais só se sentiam a salvo apenas no lugar consagrado ao deus. A cidade humana apareceu à volta do santuário, onde age a divindade que ordena o mundo e é o garante da moralidade.
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Somente ao inspirar-se num ideal, do qual um deus é o modelo derradeiro, o homem pôde lentamente dominar a natureza, usar o fogo, cultivar as plantas, domesticar os animais, proteger-se do frio com a construção da habitação, curar o seu corpo com a medicina. Foi sob a orientação do deus que o homem distinguiu o bem do mal, que descobriu a piedade e a virtude, a assistência e a ajuda.
E quando nós testemunhamos um moto de horror, olhando os sofrimentos de que a natureza está impregnada, ou aqueles que nós mesmos realizamos, fazêmo-lo porque, mais uma vez, a olhamos e vemo-nos do lado de fora. Olhamo-nos com os olhos de Deus.
Evidentemente que cada ser vivo, mesmo o verme que se torce quando é cortado, mesmo a mosca que procura escapar à aranha, foge à dor, rebela-se contra o que existe. É o conatus(NT), é o impulso vital que o leva a procurar uma outra dimensão. É o impulso vital que produz a diferenciação e a evolução. Deus está presente em qualquer que seja o ponto da natureza.
No entanto, só no homem é que o desejo de superação é consciente, espasmódico e traduz-se em acções viradas para a modificação da natureza. Por isso, também a ciência, e até a técnica, são modalidades desta elevação, manifestações da sua moralidade.
NT. Conarus ou Conario, termo latino que significa tentativa, esforço, impulso que determina um acto.
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TEMPO PARADO
Forte dei Marmi, Abril de 1997.
Estou no jardim, sentado junto à soleira da casa. Observo a natureza a despertar. A erva, as folhas das árvores são de um verde-claro, jovem.
De repente vem-me à cabeça uma das observações do filósofo francês Henri Bergson: para tudo o que surge no Universo, em algum lado, abre-se o registo do tempo.
Para Bergson tudo tem uma duração, tudo é submetido ao desgaste do tempo.
É verdade. No entanto a duração, digo-me, é inversamente proporcional à dimensão. Para um ser grande como o Sol, um ano nosso seria como um dia. Para um ser grande como uma galáxia, um milhão de anos seria como um dia. Em suma, para um ser grande como o Universo, todo o tempo que passou do Big Bang(nt) até agora, seria um instante.
Para um mosquito, para uma joaninha, um dia nosso, pelo contrário, seria um ano. E, para um electrão, um dia nosso é como a idade do Universo para nós.
O tempo está ligado à nossa fronteira, ao nosso estar aqui, ao nosso ser limitado. O tempo é a nossa limitação.
O tempo é longuíssimo, espasmodicamente dilatado na dor. Expande-se nas situações extremas, quando se detém a respiração, nas imersões, quando se sufoca, quando se avizinha a morte. Eu creio que o tempo seja a morte.
nt. BigBang, teoria da expansão do universo proposta pelo astrónomo belga padre George Lemaître, em 1931, e retomada pelo astrónomo russo-americano George Gamow, em 1940, destinada a explicar a origem e a evolução do Universo tal como hoje o concebemos.
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Ao contrário, uma grande alegria torna-o mais intenso, pleno, rico. Quando estamos loucamente felizes, quando, como no grande enamoramento, o nosso Eu se expande a abraçar o Universo com o qual nos sentimos em harmonia, então até o tempo parece desaparecer.
Recordo uma experiência, vivida em Pavia há muitos anos atrás. Eram os primeiros dias que passava com a minha mulher. Estou no jardinzinho defronte do castelo, repentinamente percebo que o tempo se parou. Digo «se parou» porque esta experiência fez-me vir à cabeça a frase de Goethe: «Pára-te instante, és belo!»
Sentia-me invadido por uma sensação de realização infinita. Não desejava mais nada, tinha tudo aquilo que podia querer. Mas, não era exultação, triunfo, e nem sequer saciedade. Era imobilidade.
E os objectos materiais, em particular uma fontanela que estava defronte de mim, mesmo permanecendo os de antes, tinham uma natureza e uma aparência diferente. Já não se transformavam, não passavam, «eram». Também o movimento da água da pequena fonte, de alguma forma misterioso, não era um mover-se, mas um estar.
Ao meu lado estava a mulher amada. Mas não podia dizer que a via porque observava apenas a terra, o canteiro, a fontanela. Estava concentrado neles. Contudo, sabia que ela estava presente, que estávamos juntos. Sabia também que a minha forma de ser estava conexa com o amor por ela.
Não sei, no entanto, se este estado teria continuado se eu me tivesse voltado para a ver. Penso que não, porque ela teria respondido ao meu olhar e teria começado um diálogo mútuo. Algo de evidente e não realizado. Teria surgido uma intenção, um programa e, em seguida, o tempo. O tempo como espaço do fazer, da meta, daquilo que é incompleto.
Disse que o tempo se tinha parado. Mas não quero dizer que tinha desaparecido. O tempo desaparece quando desaparece a consciência, quando desfaleces, quando te distrais, quando adormeces. Aqui, ao contrário, a consciência estava perfeitamente vigilante e activa. Estava, no entanto, concentrada nos objectos que eu observava, ignorando, esquecendo totalmente o vasto mundo externo. Era como se estivesse dentro de uma bolha colocada fora do seu fluir.
Também a expressão: «Pára-te instante, és belo», não é apropriada. Porque aquela experiência não era um instante. O tempo estava lá, mas parado, suspenso. Mas tinha uma duração.
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Contudo, uniformemente plena. Aquilo que eu observava, o canteiro, a erva, a fonta-nela, continuavam a ser, já não fugiam.
Nós pensamos na eternidade como num instante. Porque o nosso tempo é olhar para a frente ou para trás, ou então é um instante, um abrir e fechar de olhos fugidio, um quase nada.
Mas há também um tempo diferente. Onde não desejas nada porque tens tudo. E não existe nenhum cansaço possível, nenhum aborrecimento possível, nada para além do que estás a viver. Não existe mais sentido nem no passado nem no futuro. É apenas presente, que todavia não é um instante. É um durar pleno, satisfeito.
Tu sabes que é uma experiência extraordinária. No entanto, naquele momento, parece-te também extremamente natural e poderia continuar para sempre. Eu penso que seja isto a eternidade de que fala a religião, a eternidade que não é nem tempo, nem instante, mas o ser eternamente.
Este estado durou uma meia hora sem parar. Assim, pelo menos, o calculei eu depois. Em seguida voltei ao tempo comum.
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BUDISMO E ESOTERISMO
Milão, Maio de 1997.
Hoje vivemos de novo numa época sincrética. E, como acontecia há dois mil anos, muitos pensam que todas as diferenças, todas as específicas tradições religiosas encobrem, em substância, o mesmo ensinamento.
Está também a afirmar-se a tendência em acreditar que, em cada uma destas tradições religiosas, haja uma parte exotérica, manifesta, dirigida ao público. E uma parte secreta, esotérica, reservada aos iniciados ou aos eleitos. Enquanto a parte exotérica, popular, é fortemente diferenciada, a esotérica é substancialmente a mesma.
É aquilo que defende Elémire Zolla nos seus livros, incluindo o último, Saídas do Mundo. Segundo Zolla o sentido profundo, oculto, esotérico, de todas as religiões é a descoberta que tudo é aparência. Até o si próprio.
E, por conseguinte, o verdadeiro ensinamento é a libertação da ilusão da dualidade: Eu/Não eu, Ser/Não ser, Bem/Mal. O verdadeiro ensinamento é a saída do mundo.
O psicólogo Goleman, conhecido pelo seu livro A Inteligência Emotiva, vai mais além. No ensaio A Força da Meditação, defende que, no fundo de todas as religiões e de todas as correntes místicas, há um único ensinamento: a meditação.
A meditação consiste no concentrar-se totalmente em algo: uma palavra, um versículo, o pensamento de Deus. Ou num acto sexual. E, indo por graus sucessivos, chega-se a anular em si cada sensação, cada pensamento, cada separação entre o sujeito e o objecto. Sobe-se então para níveis sempre mais elevados de penetração (Jhana)(NT)
nt. Jhanã ou jnana, termo comum ao Hinduísmo e ao Budismo que significa conhecimento, sabedoria.
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e de distanciamento de si mesmo, das paixões e do mundo, até alcançar o Nirvana. E, para além deste, a cessação da consciência.
Esta nova concepção, que tanto fascina alguns ocidentais, é a reelaboração de uma tese budista. Para o Budismo, cada reflexão metafísica ou religiosa é inútil.
É por este seu carácter indiferente ou ateístico que o Budismo, hoje, tem sucesso no Ocidente. Ele não é nem sequer uma religião, mas sim uma forma de desvalorizar cada religião histórica.
Se a meditação é a essência verdadeira e profunda de todas as experiências religiosas místicas - hebraicas, islâmicas, hinduístas, budistas, tauistas, ocidentais e orientais - tira-se valor, manifesta-se não essencial, tudo aquilo que cada religião tem de específico. Perde importância a teologia, a poesia, a extraordinária florescência cultural que as acompanhou.
Pensai na incrível riqueza que o Cristianismo produziu. Da reflexão filosófica de Santo Agostinho ou de São Tomás, à poesia religiosa de Dante, ao amor por todas as criaturas de São Francisco, à arte italiana e europeia. À música. Nada disto interessa, não tem sentido.
O apogeu do Cristianismo, nesta perspectiva, é representado apenas na meditação dos eremitas que se retiravam para o deserto, tal como os ascetas indianos o faziam para as montanhas.
Um tratamento análogo sofre o mundo religioso hebraico, onde é ignorada toda a espiritualidade do Talmude. É apenas examinada a cabala, mas negligenciando a teologia extraordinária que procura explicar a presença do mal e da dor no mundo. A cabala é reduzida a instrumento de concentração e meditação. O resto é considerado sem importância.
Também a mística islâmica e o Sufismo têm uma longa tradição filosófica e poética. Para dar apenas um exemplo, recordemos a irmandade dos dervixes rotantes, fundada por Mawlana Jalal al-Din Rumi, talvez o maior poeta muçulmano. Toda a mística islâmica, tal como a hebraica, acompanha-se de riquíssimas e complexas elaborações teológico-poéticas.
Mas, aqueles que vêem no centro de cada religião a meditação, fixam a sua atenção apenas nas técnicas, para distanciar da própria mente todos os tipos de reflexões, todos os pensamentos.
O mesmo discurso é válido para o Hinduísmo que é também ele uma galáxia cultural de uma riqueza extraordinária. É errado, é redutor afirmar a identidade absoluta de todas as vias de salvação, jainista,
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budista, samkhya(Nt1) ou vedanta(nt2) A simples leitura do Bhagavad-gita(nt3) devia ensinar-nos isso mesmo. Nele Crixna mostra-se a Arjuna como um deus omnipotente e um amigo fraterno e ainda lhe indica diversos caminhos alternativos a seguir: a acção, o afastamento do mundo e dos desejos, mas também a devoção, o amor por ele. No Bhagavad-Cita existe ainda a luta entre o bem e o mal, nem que seja com a profunda consciência de que é uma ilusão. Porque tudo é do conhecimento de Deus, tudo já aconteceu. Existe por fim a presença de deus como avatar, encarnação, no momento histórico em que a ordem moral vacila.
Mas, nada disto tem importância para os teóricos do esoterismo absoluto, os devotos da meditação absoluta.
O mundo espiritual, a filosofia, a poesia, a teologia, a arte, a tradição religiosa são acessórios. Nada muda se, na concentração meditativa, se recitar Hare Crixna, seja louvado Jesus Cristo, La Ilahahil-lallah(nt4), um mantra (nt5) indiano. Ou também, se nos concentrarmos num fio de erva, ou então, se pensarmos num esqueleto.
É perfeitamente irrelevante que se parta do amor apaixonado por Deus, por uma garotinha, do acto sexual ou de um exercício acrobático de hata yoga. Poderia bastar uma droga, um fármaco, um aparelho que produz estímulos no cérebro: a «realidade virtual».
Mas o que sucede quando a meditação - e cada prática esotérica, cada procura de estados espirituais superiores - é separada da tradição cultural em que nasceu, das crenças entre as quais ela cresceu? Conduz na verdade aos mesmos resultados de beatitude, de pureza espiritual e moral mostrados pelos autores? Não.
Eu estou convencido que o seguidor do Vedanta, ao seguir a via param (superior)(nt6), possa chegar à experiência da fusão
NT1. Samkhya ou Samkia é uma das mais antigas escolas filosóficas do Hinduísmo. A sua doutrina é ateia e dualista.
nt2. Vedanta é a mais importante escola do Bramanismo.
Nt3. Bhagavad-Gita (conhecido também como a Canção do Bem-Aventurado) é um dos textos mais sagrados do Hinduísmo, incluído na epopeia do Mahabharata ou Maabarata.
NT4. La Ilahahilla 'llah é um dos princípios religiosos dos muçulmanos. Significa que não há outro Deus senão o Deus Alá, isto é, Alá é o único Deus existente. Curiosamente, este princípio aparece inscrito em árabe na bandeira do Reino da Arábia Saudita, por cima da espada, e, em forma de desenho, aparece também no centro da bandeira da República Islâmica do Irão.
NT5. Mantra, cada um dos hinos métricos que integram as séries de louvores aos deuses incluídas nos livros Veda.
NT6. Para ou parah significa a via de transcensão dos contrários e de todos os limites, relaciona-se com o Bramanismo.
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com o Brahman (NT). Creio que o asceta samkhya consegue libertar o Jiva, a alma absoluta, e alcançar o kaivalya, o absoluto isolamento. Do mesmo modo o budista hinayana(nt2) alcançará o nirvana, e o mahayana(nt3) o estado de Bodhisattva(nt4). Estou convicto que o sufi(nt5) pode reunir-se com o Amado, e Santa Teresa com Cristo.
Mas, o que encontra quem não crê em nada disto? Não encontra nada.
Separadas do grande tronco das suas instituições, do contexto em que nasceram, do tipo de civilização que produziram, as práticas religiosas tornam-se puros instrumentos de bem-estar.
Tornam-se técnicas de preparação desportiva, técnicas de autocontrolo para ter sucesso ou para poder segurar o sucesso. Formas de psicoterapia para revezar com os tranquilizantes, com os antidepressi-vos. E porque não, de vez em quando, com uma pastilha de ecstasy.
NT. Brahman, segundo o Hinduísmo, é a suprema essência, o principal centro ou alma do universo, a força que tudo invade, incorpórea, imaterial, invisível, incriada, infinita. A meditação procura a identificação com este princípio.
nt2. Hinayana (Pequeno Veículo) é um dos dois tipos diferentes de Budismo, também conhecido por Budismo meridional. É profundamente pessimista — consciente sobretudo do peso do sofrimento humano - e está, portanto, mais próximo do Budismo clássico.
nt3. Mahayana (Grande Veículo) também conhecido como Budismo setentrional. Ao contrário do outro tipo de Budismo, este põe a redenção ao alcance de todos. Mesmo assim, o Grande Veículo da verdade não oferece aos seus seguidores nenhum deus, mas um absoluto impessoal, em cujo ser inefável o verdadeiro iluminado eventualmente se perde ou se encontra.
NT4. Bodhisattva— uma personificação do ideal budista de iluminação. Os discípulos devem treinar para serem Bodhisattvas, e estes, chegam, em alguns casos, a ser objecto de veneração quase divina.
NT5. Sufi — os sufis, místicos muçulmanos, foram, em geral, os primeiros portadores da fé. O misticismo sufi ensina aos islâmicos como conhecer Deus no seu coração.
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ISLÃO
Milão, Junho de 1997.
Em França existem quatro milhões de muçulmanos, na Alemanha três, na Itália um milhão e meio, e o seu número está destinado a aumentar, porque diminui a fecundidade da população europeia. Continua a aumentar também o número de imigrantes do Norte de África e do Médio Oriente, e são quase todos muçulmanos.
Não é a primeira vez que o Islão se expande desta maneira. Toda a Ásia Menor, no século XIV, era ainda grega e bizantina. Depois iniciou-se a lenta penetração cultural islâmica, à qual se seguiram as conquistas armadas. Dois séculos depois os muçulmanos estavam às portas de Viena.
Na Indonésia a penetração também aconteceu pacificamente, com o comércio, os mercadores. Muitos muçulmanos não fazem segredo do seu projecto de conquistar a Europa da mesma forma.
Vós tendes necessidade da nossa mão-de-obra — dizem-nos eles -a nossa taxa de natalidade é mais alta, a nossa fé é mais viva, enquanto que vós diminuís de número, envelheceis, e tornaste-vos ateus ou indiferentes.
As conversões vão numa só direcção. Em África, o Islão avança às custas do Cristianismo. No Sudão, até através de massacres, como aliás aconteceu na Turquia, no início do século, com o extermínio dos arménios.
Hoje, em todos os países onde subiu ao poder o integralismo islâmico, os poucos cristãos são objecto de perseguições. Não podem, por conseguinte, crescer, porque a lei alcorânica prevê a pena de morte para o muçulmano que se converter.
Os intelectuais europeus sublinham sempre a grande tolerância do Islão relativamente à intolerância do Cristianismo, mas cometem um erro.
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O Islão foi tolerante só com as religiões que renunciavam a qualquer proselitismo, como o Judaísmo. Pelo contrário, foi absolutamente intolerante para com os muçulmanos que se convertiam ao Cristianismo. O Cristianismo nunca puniu com a morte a apostasia.
O Islão, fora da Europa e das nações com uma tradição cristã e democrática, tem pontos de vantagem indubitáveis. Consente a poligamia tradicional. Permite ao homem conservar a sua posição tradicional contra as ameaças do feminismo.
No plano político, dado que ignora a distinção entre Igreja e Estado, entre moral e leis, é mais simples, mais adequado a todos os regimes tradicionais do tipo feudal, patrimonial ou tribal, e que são a esmagadora maioria das formas de governação na Ásia e em África.
Ele permite criar um poder déspota legítimo, enquanto que a democracia europeia o coloca continuamente em discussão. A república islâmica, anunciada e, depois, realizada por Khomeini, é um despotismo teocrático.
Ninguém pode saber o quanto desta concepção tradicional islâmica poderá sobreviver intacta ao encontrar-se com a tradição europeia. Até agora, os dois mundos têm estado separados e em luta. É a primeira vez que se misturam e convivem. Eu penso que nascerão novos movimentos, novos sincretismos, novas sínteses.
Mas, é claro, nascerão também contraposições radicais, formar-se-ão partidos islâmicos que participarão na competição política, utilizando as liberdades ocidentais, sem contudo lhes reconhecerem a validade.
Um pouco como faziam os partidos comunistas, que utilizavam os instrumentos da democracia, propondo-se a derrubá-la logo que conquistado o poder.
Pode mesmo ser que, debaixo da pressão da penetração islâmica, aconteça uma reacção, uma renovação cristã. Já hoje se vêem mulheres e homens que trazem, cada vez mais frequentemente, uma cruz ao peito. Usam-na não como um berloque, uma moda, mas como um símbolo de pertença religiosa. Existem ainda outros sinais de revitalização religiosa cristã.
Nos próximos anos poderá suceder um verdadeiro confronto de civilizações entre o Islão e o Cristianismo. Incluindo-se também o Cristianismo ortodoxo eslavo. Com debates sobre os princípios, sobre os valores, com processos criativos e positivos, mas, infelizmente, também com confrontos armados.
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ÚLTIMOS ESTUDOS SOBRE O AMOR.
AMO-TE
Milão, Julho de 1997.
Dei uma forma sistemática ao meu pensamento sobre o enamoramento e o amor no livro Amo-te. Os meus colegas universitários acharão o título embaraçoso. Desta forma terão mais um motivo para não o citar.
Mas eu continuo pelo meu caminho. Finalmente consegui tornar claro que os processos que criam os laços amorosos são de quatro tipos.
O primeiro é o princípio do prazer. Nós ligamo-nos àqueles que nos dão prazer. É o processo que está na base do amor do menino pela mãe. Na vida adulta, os laços baseados no princípio do prazer são frágeis porque se interrompem quando o prazer cessa.
O segundo mecanismo é o de perda. Nós ligamo-nos principalmente aos objectos amados que nos escapam, que nos são tirados. Procuramos retê-los.
O terceiro mecanismo é a indicação. Nós temos tendência para desejar aquilo que nos é indicado pelos outros como algo dotado de valor. Pensemos no amor pela vedeta.
O quarto mecanismo é o estado nascente, que transfigura o objecto amado e permite que nos fundamos com ele.
Apenas quando se mete também em movimento o quarto mecanismo, o estado nascente, é que há o verdadeiro enamoramento. Se actua só um dos primeiros três, têm-se as paixões. Paixão erótica, no caso do princípio do prazer, paixão competitiva, se age o mecanismo de perda e, finalmente, paixão pela vedeta, se actuar apenas o mecanismo da indicação.
A actividade explorativa erótica está sempre em acto, mas, geralmente, pára ao nível da atracção ou da paixoneta. Em alguns casos torna-se um desejo paroxísmico: a paixão. Mas só raramente se torna em verdadeiro enamoramento, através do estado nascente.
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O verdadeiro enamoramento distingue-se da paixão porque é acompanhado da experiência típica do estado nascente: realidade-contingência, experiência metafísica, historicidade, e produz um laço muito forte, muito estável.
As paixões, pelo contrário, têm a propriedade de desaparecer bruscamente. A paixão erótica desaparece em face da frustração, a competitiva quando é alcançado o objectivo. Existem, então, outras formas de pseudoenamoramento como o amor de consolação.
Nós defendemo-nos do enamoramento. Contudo, quando as defesas se enfraquecem, temos as revelações imprevistas', é aquilo a que chamamos amor à primeira vista.
Se o processo continua, começamos a colocar-nos provas de verdade, para saber se estamos verdadeiramente apaixonados. E as provas de reciprocidade, para saber se também o outro o está. Então, tem início o processo de fusão, do qual deve emergir o projecto comum.
Entra-se assim na fase da luta com o anjo, uma luta dentro do amor, em que cada um é forçado a mudar. Isto porque cada um tem os seus sonhos, os seus desejos, os seus pontos de não retorno, mas juntos devem construir um projecto comum. A luta com o anjo termina com o pacto, no qual, cada um torna seu os direitos e as aspirações essenciais do outro. Deste processo nasce a convivência do casal.
Se, pelo contrário, os projectos individuais são incompatíveis, atinge-se um ponto de não retorno e tem lugar a renúncia, um processo extremamente doloroso.
O livro Amo-te trata também da conquista e da reconquista da pessoa amada, da formação do casal, das formas de vida em comum, da fidelidade e da infidelidade. Passa, então, a estudar a crise precoce do casal que, geralmente, se verifica quando num ou em ambos os membros, o processo amoroso não chegou até à fase do verdadeiro enamoramento.
A crise tardia do casal, ao contrário, é devida à evolução divergente e ao falhanço da co-evolução.
O livro termina com uma análise da dinâmica do casal que permanece apaixonado. Este é um dos problemas que tinha ignorado em todos os meus livros precedentes.
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AMIZADE E PRIMEIRO AMOR
Forte dei Marmi, Setembro de 1997.
Há já muito tempo que eu tenho a intenção de estudar o enamoramento na infância. Quantas vezes, ao analisar os sentimentos, me perguntei se as crianças se apaixonam? E o que é o seu enamoramento, se não podem romper com o passado? Se não podem iniciar uma nova vida em comum com a pessoa amada? Ou então, se o amor da criança é, como defendem alguns, uma forma de amizade e nada mais?
Finalmente consegui dar algumas respostas.
A primeira resposta que brota da minha pesquisa é esta: amizade e amor estão separados desde o início, desde o momento em que a criança tem cinco anos, mas ambos conservam as suas estruturas de fundo durante todos os anos vindouros.
Tanto a criança, como o adulto, apaixona-se quando tem de mudar, quando entra num novo ambiente social. Por isso, tem tendência para apaixonar-se aos três anos, quando entra na escola infantil. Aos seis, quando começa a escola primária. Aos dez, onze, quando vai para o segundo ciclo. O enamoramento é a porta que conduz a um novo mundo. É uma espécie de rito de passagem.
O enamoramento infantil surge, tal como no adulto, como um «amor à primeira vista». É feito de ânsia, de rubores, de desejo do outro.
Difere do enamoramento adulto porque não existe a sexualidade e também porque a criança, não sendo autónoma, não pode formar um casal que possa contrapor-se aos pais. No entanto, muitas vezes, o laço amoroso é firme, dura muito tempo.
Aí pelos sete, oito anos, a criança, ao crescer, compreende que os seus sentimentos não são sempre retribuídos. Então, tem medo, e defende-se do perigo da rejeição com a timidez.
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Para proteger os seus delicados sentimentos da interferência brutal dos adultos, a criança faz uso do segredo, e reage com a vergonha. A vergonha, portanto, é um mecanismo de defesa.
A amizade nasce no mesmo período do enamoramento. Também ela tem o máximo das probabilidades de aparecer nos momentos de mudança, quando a criança entra num novo mundo social.
A amizade, contudo, é completamente diferente do enamoramento. Em vez de aparecer de improviso, cresce pouco a pouco, consolida-se com a confidência, com a confiança. O amigo do peito é aquele a quem se podem contar os problemas amorosos, tendo a certeza de que não os irá revelar. A criança protege, de maneira zelosa, a sua intimidade e o amigo é o seu guardião.
A amizade e o amor são complementares desde a origem, e assim permanecem.
Por volta dos dez, onze anos, com o ingresso no segundo ciclo, as crianças entram na sociedade juvenil, melhor seria chamar-lhe a internacional juvenil, porque é semelhante em todo o mundo ocidental.
É uma sociedade distinta, com valores próprios, vedetas próprias, chefes carismáticos próprios. Os seus profetas, os seus chefes, os seus modelos são os cantores, alguns actores, alguns desportistas, mas de qualquer forma sempre gente do espectáculo e do entretenimento.
As rapariguinhas, nesta fase, começam a olhar para os rapazes mais velhos do que elas, e algumas têm fortes paixões eróticas pelas vedetas, sobretudo cantores.
Os rapazes, deixados de lado, descobrem nas revistas e nas cassetes de vídeo pornográficas a sexualidade, que fica, desta forma, tão dissociada do amor.
Os enamoramentos adolescentes são intensos, mas breves, porque os adolescentes estão à procura da própria identidade. Procuram afirmar-se a si próprios, por isso, estão pouco dispostos a moldarem-se nos desejos do outro. Por consequência, o processo de fusão do enamoramento interrompe-se, muitas vezes, de uma forma brusca e por motivos banalíssimos.
É por isso uma «patranha» que seja esta a idade dos grandes amores duradouros. Julieta e Romeu pertencem a uma outra época. Uma época em que as pessoas se casavam e constituíam uma família própria, ainda muito jovens.
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Hoje, os nossos rapazes têm ainda à sua frente quinze anos para pensarem nisso. O seu amor, por isso, será muito mais frágil. Os grandes enamoramentos, na maior parte das vezes, aparecem muito mais tarde, quando estão feitas as escolhas irreversíveis.
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SOBRE A SEDUÇÃO
Milão, Outubro de 1998.
O enamoramento é um fenómeno espontâneo, que dispara quando duas pessoas estão predispostas a iniciar uma outra fase das suas vidas. Quando cada pessoa entrevê na outra uma possibilidade de vida nova, superior, que realize da maneira mais profunda os seus desejos mais recônditos.
Como é possível, então, conseguir fazer apaixonar uma pessoa a frio, através de uma técnica?
Falo disso com a minha mulher Rosa, que se está a dedicar ao estudo de D’Annunzio(nt1), para o seu romance Sinfonia. D’Annunzio tinha uma força sedutora extraordinária. Eram bem poucas as mulheres que lhe conseguiam resistir.
Uma parte desta sedução era mérito da fama. Ele era o Poeta(NT2), adorado, idolatrado pelas mulheres, que lhe caíam entre os braços, como acontece hoje com as vedetas mais famosas e mais belas.
No entanto, D'Annunzio não era nem rico, nem belo. E não se limitava a aceitar as mulheres que lhe caíam nos braços. Apaixonava-se também por uma mulher que o recusasse. Quando isto acontecia, começava a fazer-lhe uma corte cerrada, até que conseguia fazer-se amar.
Isadora Duncan escreve que, também ela, sentiu o seu fascínio. E acrescenta que uma mulher, quando estava com ele, se sentia
NT1. Gabriele D’Annunzio, escritor e político italiano (1863/1938).
Nt2. No original o autor utiliza a palavra Vate (escrita com um V maiusculo). O tradutor optou por traduzir a palavra, apesar dela também existir em português e com os mesmos significados: vate, profeta, poeta.
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infinitamente importante, infinitamente bela. Sentia-se mesmo uma deusa, e tornava-se efectivamente uma deusa.
Para valorizar uma pessoa não basta dizer-lhe és bela, és magnífica, és sublime, mil vezes. Isso, pelo contrário, com o passar do tempo aborrece.
É preciso criar situações, nas quais, ela se torne, objectivamente, bela e sublime. Organizar, por exemplo, uma festa, na qual ela entre como uma deusa. Ou apresentá-la em público de modo a fazer-lhe sentir a admiração de todos. Não de uma forma a que seja simplesmente aplaudida, mas que suscite o aplauso. Não para venerar, mas para que suscite a veneração.
Depois, divertir, maravilhar, comover. O espírito humano tem horror à monotonia e à rigidez. A pessoa que está prestes a apaixonar-se quer tornar-se naquilo que não foi, naquilo que não pôde ser. E quer também ver no outro todos os seres com que sonhou.
O grande sedutor deve encarnar muitos papéis. Saber ser ora um desportista, ora um sábio, ora um guerreiro, ora um poeta, ora um estróina, ora um rapaz necessitado de ternura. O enamoramento é uma procura e um descobrir.
A pessoa que está para se apaixonar aspira a um mundo superior. O sedutor deve fazê-la entrever esse mundo, criando novas cenografias, onde ambos descubram partes desconhecidas deles mesmos e realizem desejos nunca antes formulados. Ou então criar, com o ambiente, a música, as palavras, os olhares, uma atmosfera encantada, que nunca mais poderá esquecer.
O sedutor faz, como artifício, aquilo que procura fazer, de uma forma espontânea, o louco apaixonado, quando é inteligente e criativo. Ele transforma-se, multiplica as suas actividades, procura mil caminhos, recomeça sempre do princípio, sem nunca ceder.
Transmite satisfação, entusiasmo, aflição, exultação, dor. Pensa apenas na sua amada e excogita muitas formas de ser para a interessar, para a divertir, para a tornar feliz. Se bem que aos seus olhos ela seja belíssima, ele faz de tudo para torná-la ainda mais bela e admirada.
Está pronto para fazer mil quilómetros de carro só para lhe dar um beijo, está a pé toda a noite só para vê-la sair de casa, de manhã. Transforma-se num bobo para a divertir, num guerreiro para a defender, e num amante apaixonado para a comover.
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O grande sedutor dá-nos, com a mestria, a melhor representação possível do enamorado, sem nunca cair nos estados de pessimismo que, pelo contrário, o verdadeiro enamorado atravessa.
A sua arte é, portanto, muito útil para quem experimenta um grande amor e quer, custe o que custar, a pessoa que ama.
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ESPONTANEIDADE E HÁBITO
Milão, Novembro de 1998.
Nenhuma relação de casal duradoura é possível sem a fase de fusão ardente do enamoramento, quando as personalidades são modeladas e capazes de um encontro profundo. Nenhum partido, nenhuma igreja pode nascer sem o entusiasmo criativo das origens, sem o sonho de um reino de Deus.
Não são a razão, o útil, o cálculo, a convenção, que criam a solidariedade social, pois ela é-nos dada no início, «por graça».
Contudo, se é assim tão importante a espontaneidade, é igualmente importante a instituição, o pacto, o acordo, a vontade. Se nenhum casal de apaixonados pode nascer sem o enamoramento, nenhum casal pode durar se a força do enamoramento não é dirigida para relações ponderadas e pretendidas. Se não está enquadrada em pactos, convenções, acordos, limites, procurados empiricamente e aceites precisamente graças ao amor.
Alguns, ao confundir o momento criativo com o institucional, defendem que no casal deve dominar, incontestavelmente, a mais desenfreada espontaneidade.
Dizem: «Sê espontâneo, age segundo os teus impulsos, diz aquilo que pensas. É sempre preferível a verdade à hipocrisia. Se estás mal-humorado, não te constranjas a ser gentil. Se estás irritado, responde torto. Se te dá prazer, insulta o teu interlocutor. Se o outro não te agrada, di-lo na cara. Se não concordarem um com o outro, discutam abertamente».
Tudo isto está errado.
Está errado já desde o início, na formação do casal, onde cada um deve compreender quais são os pontos de não retorno do outro.
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Quais os valores, os sonhos, essenciais para ele, aquilo que lhe dá satisfação e aquilo que lhe causa dor.
A vida de casal só é possível se conseguirmos tomar em atenção as exigências, os valores, os sonhos, os desejos do outro.
Eu sou feliz se a minha mulher é feliz, se se realiza no seu trabalho, tem sucesso. Sou infeliz se me apercebo que sofre, que está amargurada, desiludida, deprimida. Por isso, procurarei fazer tudo quanto me for possível para torná-la alegre, para ajudá-la a exprimir-se. Não posso colocar em primeiro lugar os meus impulsos, os meus maus humores, os meus caprichos.
A ordem do amor é diferente da ordem da indiferença. Aqui, não tem validade a contraposição espontaneidade/dever.
No amor eu sou espontâneo mesmo quando cuido do meu filho, mesmo quando me sacrifico por ele, quando o velo de noite. Sou espontâneo quando cortejo a minha namorada, quando a espero horas a fio na estação, quando passo uma tarde a caminhar para lhe comprar uma prenda.
Nas relações quotidianas as pessoas são muito prudentes no facto de darem o seu dinheiro a uma outra pessoa, mesmo que só por empréstimo. No momento em que o amor reclama que os dois enamorados sejam iguais, não pode, então, existir um pobre e um rico, um que tem necessidade e o outro que não lhe dá tudo aquilo que tem. Por esta razão eles acabam sempre por colocar os bens em comum. Mesmo que seja para se arrependerem em seguida, quando se deixam.
A espontaneidade da vida de casal assemelha-se à da dança. Quando vemos dançar dois bailarinos, temos uma maravilhosa impressão de naturalidade.
Mas, na base daquela espontaneidade e daquela graça, não existem duas espontaneidades separadas. Pelo contrário, há a procura voluntária de um acordo, de uma harmonia, de um entendimento perfeito, que se consegue com um longo estudo, experimentando e voltando a experimentar.
A espontaneidade é a flor que desabrocha da convergência das vontades.
Para que haja amor é preciso, por isso, a espontaneidade do início, mas também a tenacidade da vontade, o compromisso. Todavia, é preciso ainda algo mais, A transformação da própria decisão em hábito.
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Para continuar a agradar ao seu marido, uma mulher deveria preparar-se para ele tal como se preparava nos primeiros encontros, tal como se prepararia para o encontro com um amante. Isto só é possível se se tiver o hábito de o fazer. Se se tiver o hábito de se pentear, de se maquilhar, de vestir um roupão agradável todas as manhãs. De forma a que aquele gesto se torne num acto espontâneo, natural.
O mesmo deve fazer o marido. Se da sua infância lhe ficaram hábitos grosseiros, que não agradam à sua mulher, por exemplo: ser desordenado, arrotar, dizer palavrões - deve, então, desabituar-se. Deve adquirir novos hábitos adequados à nova convivência.
Devem criar-se novos hábitos e fazê-los tornarem-se uma segunda pele, ou melhor, uma nova espontaneidade. É o encontro desta nova espontaneidade, desta espontaneidade de segundo grau, que consolida o casal. Exactamente como para os dois bailarinos de que falávamos, que dão os passos de uma maneira sincronizada. E conseguem-no fazer porque cada um aprendeu a regulá-los pelos do outro, e agora é-lhes agradável, fácil, gostoso, fazê-lo.
Tudo o que eu digo não deve ser mal entendido, pensando que se possa criar o amor com a vontade e com o hábito. O amor surge só e apenas com o estado nascente, mesmo entre duas pessoas que já se conheciam, entre dois amigos, entre duas pessoas que convivam.
Se não existir esta brusca passagem de estado, que nos transforma a nós mesmos e ao outro em duas partes da mesma entidade colectiva, não nascerá um casal enamorado.
Mas, o casal só se torna estável se o processo de fusão for elaborado correctamente no pacto, e os compromissos do pacto transformados em hábitos. Só assim é que eles podem ser desenvolvidos com naturalidade, sem peso.
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PERMANECER APAIXONADO
Milão, Dezembro de 1999.
O estado amoroso não é um permanecer, um estar, mas sim um fazer-se, um tornar-se. O amor não dura porque se torna rígido, mas porque se renova, renasce.
Os anglo-saxónicos distinguem claramente o falling in love, o enamoramento, do being in love, estar apaixonado. O processo de enamoramento é necessariamente breve, senão mesmo instantâneo, como diz o verbo to fall(NT). Mas depois existe também um estado amoroso que perde algumas das características iniciais do enamoramento, e que lhe conserva outras.
Perde, do falling in love, o carácter dramático, espasmódico, a exultação gloriosa, o terror louco, o êxtase e o tormento. Perde a transfiguração do mundo. Em resumo, perde as qualidades específicas do estado nascente.
Mas conserva a ideia que a pessoa por quem estamos apaixonados, e que agora é a nossa mulher, o nosso marido, é a única pessoa no mundo que nos interessa verdadeiramente. Aquela que nos agrada mais do que qualquer outra, mesmo mais do que a vedeta ou o artista mais famoso. Pela qual, se pensamos que lhe aconteceu alguma coisa, se não a vimos voltar, somos tomados de pânico.
A psicanálise enganou-se ao explicar o enamoramento como uma réplica da relação do menino com a mãe. O menino não descobre a mãe, não se apaixona por ela. É, pelo contrário, a mãe que descobre o seu filho, se enamora dele e, depois, continua a amá-lo à medida que cresce.
NT. To fall e falling in love devem ser lidos como cair e cair apaixonado ou apaixonar-se respectivamente, o que é diferente de enamoramento ou estar apaixonado, em pleno estado de amor.
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É o que sucede ao casal apaixonado. Uma vez realizado o processo originário de fusão, as duas pessoas vivem a experiência do estar enamorado sem que exista mais o temor de não ser correspondido, mas com a alegria e a altivez do amor triunfante.
Depois, contudo, cada um deles continua a mudar, a desenvolver novos desejos, novos projectos, até ao momento em que a relação do casal pode revelar-se demasiado apertada, demasiado incómoda, enquanto que se apresentam outras possibilidades, outras alternativas. Até ao momento em que a evolução divergente produz uma factura demasiado grande entre o desejo e a sua satisfação.
Então, o laço começa a tornar-se um obstáculo e a pessoa fica disponível para um novo enamoramento. Na vida de todos os casais, mesmo na vida mais harmoniosa, existem períodos, às vezes meses ou dias, em que cada um deseja novas experiências, ou pensa ter-se enganado, ou está deslumbrado com o novo.
Mas, no par amoroso que dura muito tempo, esta propensão para enamorar-se, não se dirige para um novo objecto, não destrói a velha relação para instaurar uma nova no seu lugar. Isto porque o outro responde transformando-se por sua vez, o que preenche o vazio que se estava a criar, e as energias nascentes dirigem-se novamente para ele.
A co-evolução de que fala Jurg Willi é, na realidade, um contínuo encontrar-se.
Esta renovação do amor acontece quando ambos os cônjuges conservaram aberto o processo originário de fusão. Quando estão disponíveis um para o outro, sabem rapidamente mudar, sabem renovar-se e responder assim às novas exigências do outro.
E é mais fácil se ambos vivem a sua relação como algo que tem valor, e que cria valor. Se ambos aceitam até ao fim a sua vocação amorosa. Se dela estão orgulhosos. Se dão importância ao seu amor, ao facto de serem um casal, àquilo que estão a fazer juntos. Se se entregam juntos à vida, se lutam lado a lado. Se consideram o seu amor uma vocação artística, criativa.
Mais em geral, podemos dizer que na vida do par amoroso, continuam a actuar os mesmos mecanismos que agem no enamoramento: o prazer, a perda, a indicação e o estado nascente. E que por isso voltam a escolher como seu próprio objecto de amor a mesma pessoa.
Todos conhecemos por experiência o mecanismo mais simples, o da perda. Quando o nosso marido ou a nossa mulher não volta à noite,
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quando não nos telefona e não sabemos onde está, somos tomados pela angústia de perdê-lo. Ou então, quando alguém a corteja, apercebemo-nos do quanto ela é importante para nós. Então voltamos a experimentar os calafrios, a palpitação, o ciúme, o desejo pungente. São ondas, sobressaltos, jactos frescos de vitalidade que renovam o amor.
No entanto, por vezes, é o interesse de um outro qualquer que lhe faz a corte, a indicação, que volta a reactivar o desejo e o amor. Mas também existem momentos em que se acende, nem que seja por um momento, o processo de estado nascente.
Eu tive várias vezes, nos olhares da minha mulher, esta experiência. Numa recepção, numa festa, diviso, de longe, uma mulher que fala com outros, que ri. É de uma beleza pungente, que me fascina, que me faz bater o coração. É a pessoa mais bela que eu jamais encontrei, e sei que nenhuma outra me agrada e poderá agradar-me mais do que ela. As outras mulheres presentes na sala são-me totalmente indiferentes.
Contudo, ela parece-me infinitamente distante, inacessível, parte de um mundo a que eu nunca me conseguirei aproximar. Mas depois, subitamente, apercebo-me que estou a olhar para a minha mulher, que é ela, e então, invade-me uma onda de felicidade, de exaltação, de gratidão. É quase uma vertigem.
Quanto dura o estado em que não reconheço a minha mulher, não o sei, talvez só uma infinitésima fracção de segundo. No entanto, subjectivamente, parece-me que a sua duração é longa. Por isso, durante algum tempo, observo-a como se eu fosse um outro, um estranho, como se a visse pela primeira vez, e sinto por inteiro a emoção de quem se está a enamorar, e desespera por sentir-se amado.
Permanecer apaixonado, para mim, significa por isso conseguir voltar a ver a minha amada com os olhos maravilhados do início, no momento em que se me revela uma beleza e uma felicidade que nunca antes teria pensado em poder obter na vida.
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Obras de FRANCESCO ALBERONI editadas pela Bertrand
ENAMORAMENTO E AMOR;
A AMIZADE;
O EROTISMO
PÚBLICO & PRIVADO;
O ALTRUÍSMO E A MORAL;
GÉNESE;
O VOO NUPCIAL;
OS INVEJOSOS;
O OPTIMISMO;
VALORES;
AMO-TE;
O PRIMEIRO AMOR;
TENHAM CORAGEM;
AS NASCENTES DOS SONHOS.