Estudantes do componente Artes na Construção Civil, do Técnico Subsequente em Edificações, elaboraram uma análise crítica a partir das duas imagens acima. A primeira, trata-se da icônica fotografia de Mario Fontenele sobre o marco zero da nova capital, de 1957. Por sua vez, a segunda, exibe o cartaz do filme A cidade é uma só?, de 2001, realizado pelo diretor ceilandense Adirley Queiroz. Será que a letra “X” que ambas as imagens carregam representa o mesmo sentido? Apresentamos algumas reflexões feitas pelas alunas Gabriela Almeida e Bruna Oliveira Silva sobre o tema. Confira abaixo:
Gabriela Almeida, Estudante do Curso Técnico Subsequente em Edificações.
Esta resenha trata do filme “A cidade é uma só?”, de autoria de Adirley Queirós. De 2011, o documentário-ficção retrata em seus 107 minutos relatos de personagens que viveram a época da construção de Brasília, a nova capital brasileira. O filme se baseia na ocasião em que um jingle circulou no início dos anos 70, pela televisão, entoado por crianças de escolas primárias, que convidava o público a contribuir para uma cidade melhor. Sob o nome ‘A cidade é uma só’, o cântico idealizou a ação denominada como Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que fez com que muitas famílias que moravam no centro da cidade fossem removidas para um novo local ‘decente’.
O diretor, Adirley Queirós, morou desde pequeno na cidade de Ceilândia, local para onde muitas famílias foram removidas, e trouxe a seu filme personagens que vivenciaram a formação da cidade e que a refletem. A construção de Brasília envolveu grande quantidade de mão-de-obra trazida, ao longo dos anos, de todo o país. Os candangos, como são chamados os construtores de Brasília, passaram a morar com suas famílias nas proximidades das obras da zona central, gerando grande concentração de baixa renda com condições de sobrevida precárias. Assim foi realizada uma campanha que os convencesse a mudar-se para uma região que seria uma cidade harmonizada e que traria dignidade a essas famílias: Ceilândia. A campanha era, na verdade, uma ação de desalojamento daquelas famílias que foram expulsas por “enfearem” a nova Cidade. Aos moradores da então vila IAPI restaram duas opções: ou se deslocavam para Ceilândia ou escolhiam outro local de moradia. No entanto, a cidade foi constituída do zero por esses moradores, não havendo ali qualquer infraestrutura ou preparo para os acolher.
Os relatos de Nancy e do personagem Dildu, que faz campanha para se eleger a deputado distrital com financiamento próprio, denunciam que a cidade unitária, pregada pela Campanha, nunca existiu. Os ecos desse acontecimento afetaram tanto a vida de Nancy e de sua família, que foram removidos da vila IAPI, até chegarem na atualidade - bem exemplificada pela vida de Dildu. Esse personagem, que mora na Ceilândia e trabalha em Brasília, enfrenta diversos entraves para a sua candidatura. Ele aproveita a cultura local ceilandense – o rap, para criar um jingle, que representa a verdade da sua campanha eleitoral.
Por fim, o símbolo que estampa o cartaz do documentário - “X”, pode ser interpretado a partir de dois pontos de vista diferentes, a depender de quem o olha. O “X” pode ser o ponto de nascimento da capital ou, do prisma dos moradores da vila IAPI, a demarcação das suas casas para remoção. Pode ser, ainda, a ressignificação da violência sofrida por esses moradores removidos nos anos 70, que Dildu ressalta em sua campanha em prol de propostas por melhores condições de educação, saúde, acesso a concursos públicos, no intuito de que a cidade seja, de fato, uma só. Se a eleição Dildu ocorre, não é sabido, porém o que se constata no final do documentário e, respondendo à questão inicial é: a cidade, de fato, não é uma só.
Bruna Oliveira Silva, Estudante do Curso Técnico Subsequente em Edificações.
Esta resenha trata do documentário “A cidade é uma só?” de Adirley Queirós, de 2011”. O documentário foi realizado para comemorar os 50 anos de Brasília, e tem como foco principal a segregação espacial característica de Brasília e como esta se procedeu por meio da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que ocorreu em 1971 e tinha como objetivo remover as comunidades de menor poder aquisitivo dos arredores de Brasília e redirecioná-las para o que atualmente conhecemos como a Ceilândia.
Adirley Queirós nasceu em Morro Agudo de Goiás, em 1970. Assim como uma série de brasileiros, a sua família fora para Brasília, mais precisamente para a Ceilândia, em 1973, em busca de novas oportunidades. Durante a adolescência, Adirley Queirós se tornou jogador de futebol tendo, inclusive, atuado em clubes de segunda e terceira divisão do Distrito Federal. Após cerca de dez anos trabalhando como jogador profissional, uma contusão o obrigou a deixar o esporte e, assim, começou a dar aulas de reforço em matemática, física e química. Logo depois conseguiu assumir um cargo público em um hospital de Brasília. Aos 28 anos estudou comunicação voltada para o cinema na Universidade de Brasília e para o seu trabalho de curso elaborou o seu primeiro curta-metragem “Rap, o canto da Ceilândia”, sendo contemplado com uma série de prêmios. Atualmente, segue trabalhando como cineasta e os seus longas-metragens, A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014), também foram premiados.
O documentário A cidade é uma só? é de extrema importância por uma série de questões, primeiramente, pelo fato de o documentário ter sido realizado para comemorar o aniversário de Brasília e ao invés de termos como cenário os famosos cartões portais modernistas da cidades, nos deparamos na maior parte do documentário com a Ceilândia, espaço representativo para grande parte da população de Brasília, afinal, uma enorme parcela da população está localizada nas cidades satélites.
Em segundo lugar, o fato de o documentário trazer como centro a Campanha de Erradicação de Invasões, que escancara de forma necessária a segregação socioespacial que vivemos em Brasília (segregação esta que ocorre atualmente de forma muito mais silenciosa do que como fora com a CEI), e explicita como a cidade não é uma só, e como ela nunca chegou a ser uma só. A partir do momento em que Brasília começou a ser concretizada, a cidade fora marcada como a Brasília modernista e o entorno marginalizado e populoso.
Um terceiro e crucial ponto do documentário é como a realidade e a ficção se entrelaçam e confundem o espectador, o real e o imaginário se misturam ao ponto de o telespectador se confundir e questionar cada minuto do documentário. Este questionamento é importante para gerar um senso crítico no telespectador e para que o mesmo (quando conhecedor da realidade de Brasília) associe a sua história ao que está sendo passado e questione a sua relação com a cidade.
Trazer o rap, como jingle da campanha do Dildo, é um elemento que exalta uma das maiores representatividades do entorno de Brasília, afinal, o rock teve maior alcance na Brasília tombada e, no entorno do Distrito Federal, por sua vez, o rap sempre foi um dos maiores meios de expressão.
Cada vez mais é necessário que falemos sobre a distribuição socioespacial de Brasília, tendo em vista que a segregação é um problema atual. As pessoas precisam morar e para que o façam com dignidade é necessário que existam políticas de expansão territorial voltadas para aqueles de menor poder aquisitivo. Enquanto não houver políticas urbanas inclusivas, haverá a segregação, haverá o domínio da grilagem, haverá a expansão irregular das cidades e não haverá apenas uma cidade, afinal, a cidade não é e não tem sido uma só.