Secretaria da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul apresenta:

O Livro


Direcionado ao público infantojuvenil, Heróis do Quintal conta a história do menino Samu, que enfrenta a separação dos pais e nesse processo se depara com as culpas que as crianças carregam na infância e adolescência. A vida do menino é inundada por muitos silêncios, ruins e bons. Até que ele conhece Mira, sua nova, criativa e inventiva amiga da nova cidade para onde a família se muda. A espevitada garota não só o recebe e apresenta a vizinhança, mas conta a ele tudo sobre os Heróis do Quintal. Juntos, os dois aprendem o que significa de verdade ser um herói, tanto na vida dos outros como na sua própria, através dos Mandamentos dos Heróis.

 

Sobre o Autor Jonas Piccoli


Jonas Piccoli é gaúcho, nascido em 1978 na cidade de Caxias do Sul. Possui graduação em Produção Cênica e pós-graduação em Literatura Infantojuvenil. É ator, diretor, roteirista, dramaturgo, dentre outras atividades artísticas. Em 2004 fundou o Grupo Ueba Produtos Notáveis, companhia teatral, e desde 2014 também atua na coordenação do Centro Cultural Moinho da Cascata. A sua primeira obra literária, Ethel Druhn, foi lançada na Bienal do livro do Rio de Janeiro em 2003 e desde então o autor lança seus títulos pela Editora Ueba, com selo próprio. Destaque para os livros: O Incrível Caso do Sumiço das letras, As Aventuras do Fusca à Vela, Fábulas do Sul e O Aviador de Sonhos. Como autor convidado, já participou de inúmeras feiras do livro, sendo o escritor homenageado em diversas delas. Também levou seus livros para centenas de salas de aula, visitando escolas e trabalhando com alunos de diversas faixas etárias. No quesito dramaturgia, já são dezenas de textos encenados, no Brasil, Chile, Venezuela, Uruguai e Itália.

Que tal curtir um trecho do livro?!

Capítulo 01 – O som do silêncio

Atenção General: Estou aqui na trincheira, senhor. Resolvi vir aqui para traçar novos planos, pois a situação de pacificação não está tendo êxito - toda a área ao redor está em bombardeio. Tenho pouca munição e estou sozinho... Tenho todos os equipamentos necessários, senhor, mas escuto daqui os sons da guerra. Peço instruções... senhor... espere... mais uma granada:

- Blam!

...

Depois do estouro houve um silêncio absoluto, como se a atmosfera ficasse pesada e o cheiro da batalha se condensasse ainda mais no ar. O silêncio começava a gritar mais alto do que qualquer outra coisa.

Lá estava eu: pequeno, no canto do quarto, de paredes azuis e prateleiras com diversos brinquedos. Eram aviões, carros de polícia, bonecos de soldados de plástico, tudo em profundo silêncio, enquanto eu, usando um velho capacete de construção pintado de verde, segurava meio cabo de vassoura para me defender, envolto em uma precária construção de travesseiros e lençóis.

O quarto ao lado tinha uma decoração sóbria e elegante, dominada por um enorme guarda-roupas preto, de madeira, que ocupava completamente uma das paredes, estas de cor marrom claro; no centro, uma cama imensa ladeada por dois abajures em cima de duas mesas de cabeceira cuja aparência combinava com o guarda-roupas; ali, um de cada lado, permaneciam ligados. Ainda se podia contemplar um tapete fofo nos pés da cama e uma porta que dava para o banheiro da suíte.

Apesar da aparência solene do quarto luxuoso e organizado, eu sabia que o cômodo desmoronava em ruínas.

Ouvi mais uma vez a porta batendo com a saída do meu pai: era com tanta força que parecia o estouro de uma granada. A minha mãe, que acabara de expulsá-lo do quarto, estava sentada na beira da cama segurando o rosto com as duas mãos, como se sua cabeça pesasse mil quilos, e soltava um profundo e longo suspiro.

Na época, eu não conseguia entender por que duas pessoas que viviam juntas brigavam tanto. Afinal, se havia desentendimento entre nós na escola, era simples: ou íamos para a diretoria, ou, o mais comum, nós mesmos conseguíamos chegar num acordo. Esse envolvia, normalmente, que voltássemos a ser amigos, ou às vezes que nos tornássemos inimigos declarados de vez, mas nunca que ficássemos dias e dias a fio em conflito ininterrupto.

Eu me lembro de ter visto, na escola, uma briga no ano anterior, em que dois meninos começaram a se empurrar, às vezes trocando um ou outro soco no ar, incapazes de atingir o rosto um do outro; talvez não quisessem se machucar de verdade. O que mais me chamou a atenção naquela briga desajeitada, que mais parecia entre dois marrecos batendo o pescoço, eram os meninos que se reuniram ao redor, pois gritavam e levantavam os braços, como em um campo de futebol. Não sei que espécie de gol esperavam que acontecesse, mas a cena se dissolveu em segundos, no momento em que a diretora se aproximou com as mãos na cintura.

De um momento para o outro parecia que nada tinha acontecido ali. Não se conseguia perceber quem estava brigando alguns segundos antes.

Pensando nisso, os gritos dos torcedores dos marrecos não se comparam com os gritos que meus pais disparam um para o outro. Aliás, por que adulto tem de ser tão barulhento?

Bem, é justamente por eles serem assim, tão barulhentos, que quando se calam o silêncio me arrepia. É um silêncio estrondoso que só um casal consegue fazer. Um silêncio que abre uma vala no peito, um abismo.

O silêncio pode ser tão profundo que nele se escutam todos os sons que o compõem. Ouço as lágrimas escorrendo e as costas da mão passando sob a testa, como se quisessem retirar algo de ruim do pensamento.

Sim. As lágrimas que caem do rosto têm o seu som, que a gente escuta com o coração. Elas são como sonhos, em pedaços, que escorrem pelo rosto e se despedem da pessoa. Não se sabe se voltam para o espaço, se chovem como sonho em outra pessoa, mas ali estão: indo embora… pedaços de sonho, que caem como água de cachoeira de um rosto tão querido.

Hoje, as tropas do papai e da mamãe entraram em forte conflito, uma guerra intensa, onde só houve feridos e nenhum vitorioso.

Quando as lágrimas começavam a se tornar fortes como uma correnteza, o silêncio foi quebrado pelo rádio comunicador de alta frequência:

- Aqui é o general! Abandonar a missão! Repito, soldado, abandonar a missão! - disparou.

- Sim, senhor! Vou me recolher para a cama, quer dizer, trincheira, senhor!

Soltei o dedo do radinho, de onde se ouvia o chiado de estática, e, após um tempo de silêncio, uma nova mensagem dizendo:

- Samu... você está bem?

- Sim, Mira... Já estive melhor, mas estou bem.

- Amanhã no QG?

- Amanhã no QG.



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Este é o "Capitulo 1" do livro Heróis do Quintal de Jonas Piccoli!

Que tal curtir o restante diretamente no livro!?

Ilustrações de Fredy Varela

Que tal ler o Prefácio do Professor Décio Agliardi?!

Prefácio:


A obra que você tem nas mãos, caro leitor, não precisaria de prefácio, pois ela fala por si, é a expressão sensível e emergente de um escritor que sabe brincar com as palavras. Jonas escreve porque sabe que escrever é um ato de coragem.  

A irreverência de Jonas, esse artista múltiplo, pode ser vista no teatro, na literatura e noutras linguagens. Aquilo que a sociedade contemporânea do consumo batiza de inútil, é matéria-prima para a escrita que ele inventa. É uma narrativa que transita pela noção de normal e anormal, produtora de reflexão, preconceitos e alienação. Talvez, a utilidade deste texto literário é alertar de que os heróis do quintal são anormais, porque pensam e agem fora dos quadrantes que a sociedade definiu como mandamento.

Ao brincar com os mandamentos do herói, a narrativa pede licença para mentir, em ocasiões especiais, é claro; alertar de que os meninos não são mais fortes do que as meninas; convocar à valorização do Outro e a respeitar os animais. Ah! E a briga dos seus pais? A culpa não é sua. E se você estiver em perigo? Não, não banque o herói, peça ajuda.  

Os mandamentos 30, 01, 03, 20, 10, 14, 07, 32, 22 e 33, postos nesta ordem, são enigmas que o leitor terá que decifrar ou, talvez, o mandamento da desordem que insistimos em pôr em ordem, outro paradigma da sociedade contemporânea.

Leia com prazer e cuidado esta obra que tens nas mãos, afinal, ela foi escrita para o deleite de leitura.  


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Delcio Agliardi é professor e escritor. Foi patrono da 36º Feira do Livro de Caxias do Sul e ministra a disciplina Mercado editorial: editoras, escritores, ilustradores e designers, do curso de pós-graduação em Literatura Infantil e Juvenil - da Composição à Educação Literária, na Universidade de Caxias do Sul.


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