O terceiro evangelho é o mais extenso dos evangelhos sinóticos; na verdade, é o mais extenso livro do Novo Testamento. Mas o evangelho de Lucas é apenas a primeira metade de um relato mais completo, do qual Atos dos Apóstolos é a segunda metade.
Mateus apresentou Jesus como o rei messiânico; Marcos, como o servo sofredor, sempre ativo; e Lucas, como o homem perfeito, cheio de simpatia para com toda a humanidade, salvador de todos os homens, sem distinções de nenhuma espécie. A mensagem central do livro aparece em 15.32: “[...] este teu irmão estava morto, e reviveu; estava perdido, e foi achado”.
Mais do que nos outros evangelhos, o de Lucas frisa questões como a oração, o ministério do Espírito Santo (o que ele destaca, mais do que nunca, em Atos dos Apóstolos), o papel da mulher crente na comunidade cristã etc.
Lucas é o único autor sagrado do Novo Testamento e das demais Escrituras que não foi judeu. Isso testifica do fato que, em Cristo, “[...] não pode haver grego nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo e em todos” (Cl 3.11). Embora grego, o que se depreende da facilidade com que redigia no melhor coiné da época, não foi desprezado de modo algum pela comunidade cristã, a qual, quando Lucas surgiu em cena, já havia aprendido a jamais traçar fronteiras raciais entre os seguidores do Senhor Jesus. É verdade que alguns modernos sugerem a possibilidade de Lucas ter sido judeu nascido fora de Israel, mas isso é extremamente improvável.
No grego, seu nome aparece como Loukás, provável abreviação do nome latino Lucanus ou Lucilius. Portanto, parece que seu nome reflete a ideia de “luz”. De fato, como historiador disciplinado, humilde e modesto, ele lançou um facho de luz sobre a história da igreja. Que seria de nós sem Atos dos Apóstolos? Como poderíamos reconstruir os passos da igreja quando ela ainda engatinhava em Jerusalém? Ou como poderíamos saber de que maneira, de mera “seita” judaica, o cristianismo passou a ser a religião universal? Devemos isso e muito mais a Lucas.
Muitos se perguntam se Lucas foi um ministro ou um leigo. Nada há nas páginas do Novo Testamento que nos autorize atribuir a Lucas um ofício ministerial. Se o tinha, isso nem ao menos fica subentendido nas páginas sagradas. Como leigo, porém, Lucas deixou-nos a preciosa lição de que todo cristão, se for servo fiel do Senhor, mesmo que não seja pastor, nem diácono, nem evangelista, nem profeta, pode desempenhar importantíssimo papel na igreja do Senhor Jesus. Um pastor é apenas um “irmão em Cristo” que recebeu uma espinhosa tarefa. Pesam sobre eles grandes responsabilidades, e somente a graça de Deus pode sustentá-los na sua fiel execução. O Senhor disciplina-os mais severamente que a outros irmãos, mormente se forem “mestres” (veja Tg 3.1).
Que cada qual fique na vocação em que foi chamado. Não sejamos vaidosos, pensando que só poderemos servir no reino de Deus como ministros do evangelho.
Se Marcos foi o porta-voz de Pedro, pode-se aceitar que Lucas foi o porta-voz de Paulo, de quem foi companheiro e cooperador em muitos momentos da vida. Disso Lucas dá testemunho nas chamadas seções “nós” de Atos (16.10-17; 20.5-15; 21-1-18; 27.1—28.16). Mas foi muito independente deste em suas investigações históricas, mesmo porque Paulo não era uma das testemunhas oculares originais.
Não há certeza sobre o que sucedeu a Lucas após a execução de Paulo, em 67 d.C. Mas o prólogo antimarcionita, apenso em algum lugar ao seu evangelho, informa que Lucas continuou a servir solteiro ao Senhor e morreu em Beócia, na Grécia, aos 84 anos de idade.
William Ramsey, após pacientes investigações, chegou a certas conclusões acerca de Lucas. Uma delas é que o “médico amado” também foi um historiador maior do que Tucídides, Xenofonte ou Heródoto. E não somente por haver investigado acuradamente os fatos, mas também por ter sido o homem do momento, posto no centro do palco de cenas que haveriam de tornar-se imorredouras. Ele foi testemunha de alguns dos primeiros passos do cristianismo, quando este já se ia universalizando, devido aos esforços incansáveis de Paulo, imortalizado nas páginas lucanas.
Lucas também demonstrou possuir forte senso de ética profissional. Enquanto Marcos 5.25,26 escreveu: “[...] certa mulher [...] muito padecera à mão de vários médicos [...]”, Lucas, referindo-se ao mesmo episódio, disse apenas: “[...] e a quem ninguém tinha podido curar [...]” (8.43). Logo, ele não desprezou seus colegas médicos.
O autor do terceiro evangelho começa afirmando que já existiam escritos sobre o ministério de Jesus. “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram [...]” (Lc 1.1). É provável que se referisse ao evangelho de Marcos e as logías de Mateus, entre outros. Ele também consultou “testemunhas oculares e ministros da palavra” (Lc 1.2). Quem seriam essas testemunhas e esses ministros? Temos aí uma alusão direta aos apóstolo do Senhor. Além disso, Lucas afirma: “Igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação [...]” (Lc 1.3). Lucas não somente consultou as fontes escritas existentes, mas também Maria, mãe de Jesus, e os seus irmãos, além de homens e mulheres que acompanharam o Senhor em suas jornadas, como aquelas mencionadas em Lucas 8.1-3; e também consultou lecionários que já estavam em uso nas igrejas, bem como todo o material a que teve acesso.
Lucas afirma que daria a Teófilo “uma exposição em ordem” (Lc 1.3). Os documentos que chegaram às mãos de Lucas, embora fidedignos, estariam fora de ordem. Quantas versões orais ele deve ter ouvido. Então, como fiel historiador, ele examinou minuciosamente os fatos um a um, dispondo tudo em perfeita ordem cronológica, com o intuito de dar a Teófilo a “plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.4).
O Dicionário enciclopédico da Bíblia afirma: “A questão das fontes é a questão acerca dos elementos de composição”. Contudo o estudo do evangelho não se reduz ao estudo de suas fontes. [...] É evidente que Lucas usou material já existente. O prólogo e a estrutura do evangelho fornecem indícios a esse respeito”.1
Fontes do século II d.C. revelam que Lucas, companheiro de Paulo (veja 2Tm 4.11), o “médico amado” de Colossenses 4.14, foi o autor do terceiro evangelho e de Atos. No século XIX, porém, surgiram dúvidas sobre a autoria lucana desses dois livros, mormente por parte de F. C. Baur, da escola crítica de Tübigen, na Alemanha. Mas à luz das pesquisas modernas, iniciadas pelo arqueólogo William Ramsay, da Oxford University, chegou-se a conclusão de que Lucas e Atos foram escritos por uma só mão, a mão de um médico, Lucas. O especialista Broadus D. Hale afirmou: “No final do último século, apareceu uma obra que pareceu pôr fim a todos os argumentos”.2 Essa obra confirma a autoria lucana.
William K. Hobart, em The Medical Language of St. Luke, a partir de suas investigações ao comparar o vocabulário de Lucas-Atos com Hipócrates, Galeno, Discórides e Areten (médicos do mundo antigo), concluiu que o material lucano foi escrito por um médico. Tal autor utilizou-se de termos médicos, em contraste com os demais escritores do Novo Testamento, fazendo uso de palavras e locuções que somente um médico usaria, devido ao seu treinamento e hábito. Lucas revelou conhecimentos de medicina nestes textos de seu evangelho: 4.38; 5.18,31; 7.10; 8.44; 21.34, e também em At 5.5,10 e 9.40. Adicionalmente, em Mateus 19.24 e em Marcos 10.25 lemos acerca de um camelo passar pelo fundo de uma agulha (no grego, rafís, agulha de coser); mas Lucas 18.25 usa belónes, “agulha de cirurgião”.
Adolf Harnack, em Luke the Phisician, chama atenção para o pronome oblíquo “nós” em Atos 28.10, “[...] como que se referindo à participação do autor na obra de cura na ilha de Malta”. Apesar de a crítica moderna dizer que o autor de Lucas-Atos não tinha de ser necessariamente um médico, embora não haja elementos para negar a possibilidade, ele é a única figura do Novo Testamento a ser chamada de “médico” (Cl 4.14).
O vocabulário usado por Lucas, rico e elevado, a gramática precisa e o estilo nobre tem levado alguns críticos a concluir que a língua materna desse autor só poderia ser o grego. Além de raros empregos de “amém”, os dois livros não contêm nem vocábulos nem expressões semíticos. O prefácio do evangelho revela a formação helênica do autor. Essa origem não-semita pode ser vista em Lucas 6.47; 8.16; 11.33; 12.54 e 13.19.
O conteúdo social e cultural desses dois livros evidencia quem eram os destinatários. Acerca do estilo de Lucas, o dr. B. P. Bittencourt escreveu com muita autoridade: O evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos revelam um autor cuja pena é uma das mais versáteis do Novo Testamento. Já se fez menção ao prefácio do evangelho 1.1-4, que representa um período do mais puro grego, como o de Heródoto ou Tucídides [...] seu uso optativo, característica dos aticistas, mostra a sua capacidade literária. Lucas usa com muita propriedade os particípios, em construções idiomáticas.3 Há uma evidência de grande peso que marca a autoria lucana dos dois livros. Nas quatro seções “nós” de Atos (16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1—28.16) o pronome da primeira pessoa do plural indica que o autor foi, ao mesmo tempo, “testemunha” dos fatos descritos e companheiro de Paulo, personagem central desses textos. Broadus D. Hale nos informa o seguinte: “O autor de Lucas-Atos teve o cuidado de indicar, em cada prefácio, que houve ocorrências das quais ele não foi testemunha, e que seu material fora extraído de várias fontes. Seria improvável que alguém, tão cuidadoso ao ponto de reconhecer suas fontes, eliminasse ou mudasse os pronomes de primeira para a terceira pessoa...?”.4 Pois bem, os trechos com o pronome e aqueles sem são uma e a mesma coisa. Logo, vieram da mesma mão, a de Lucas. (Uma particularidade: o emprego do pronome oblíquo “nós” tem início em Atos 16.10. Assim, Lucas colheu de fontes diversas o conteúdo de Atos 1.5—16.9, conforme ele afirma no prefácio. Esteve com Paulo quando este foi preso em Jerusalém, e com o apóstolo passou em outros pontos da Palestina, mas principalmente em Cesareia, à beira-mar. Nessa oportunidade, pois, Lucas deve ter reunido muito material de que se serviu para compor seu evangelho.)
Os companheiros de Paulo, alistados nas “cartas da prisão”, em Roma — Efésios, Filipenses, Colossenses e Filemom —, foram Epafras, Epafrodito, Timóteo, Tíquico, Aristarco, Marcos, Jesus, chamado Justo, Demas e Lucas. Alguns deles não ficaram o tempo todo com Paulo, ou porque foram enviados a algum lugar pelo apóstolo, ou porque abandonaram não somente a Paulo, mas ao próprio evangelho. Mas 2Timóteo 4.11 informa-nos de que Lucas permaneceu com Paulo no cárcere frio, em Roma, por ocasião de seu segundo aprisionamento ali, quando caminhava para a morte. Sim, Lucas reúne todas as condições exigidas para a composição do terceiro evangelho.
O argumento teológico de Lucas-Atos também prova, por similitude, que o autor do terceiro evangelho foi o grande companheiro de Paulo. Lucas encaminha suas considerações na direção do universalismo (Lc 4.27; 24-47), da alegria plena (2.10; 8.13; 10.17-19; 15.5,7,32), da fé salientada (8.12; 18.8), do amor aos pecadores (15), da ênfase dada a mulher (1.26-38; 7.37; 10.38-42) e do estímulo à oração (3.21; 6.28; 11.2- 8; 18.1-14; 20.47; 22.40-46).
Os estudiosos catalogaram nada menos de 100 vocábulos tipicamente paulinos que também foram usados em Lucas e em Atos. 5
Embora nada realmente exista para impedir que Lucas tenha escrito desde bem cedo o seu evangelho, e até mesmo Atos dos Apóstolos, alguns críticos, como B. Weiss, afirmam que o grande empecilho para isso teria sido o fato de Lucas alterar a expressão “o abominável da desolação”, de Marcos 13.14, para a sua própria expressão, “Jerusalém sitiada de exércitos” (Lc 21.20). Para esses críticos, isso significaria que Lucas, sabedor de que Jerusalém já fora destruída, pois teria escrito depois do ano 70 d.C., substituiu uma expressão pela outra.
Mas esse raciocínio ignora o fato de que Jesus pode ter predito que Jerusalém seria cercada por exércitos e acabaria destruída; e que Lucas pode ter omitido a menção ao “abominável da desolação” simplesmente porque tal expressão seria ininteligível para seus leitores gentios, aos quais escrevia. Incidentalmente, Lucas ensina-nos que “o abominável da desolação” seria posto quando Jerusalém fosse “sitiada de exércitos”.
No relato de Atos, Lucas e Paulo aparecem pela primeira vez em Trôade. Mesmo assim, Lucas se coloca no grupo missionário mui indiretamente: “Assim que [Paulo] teve a visão, imediatamente procuramos [Paulo, Timóteo e eu] partir para aquele destino, concluindo que Deus nos [novamente os três] havia chamado para lhes anunciar o evangelho” (At 16.10). Ele faz o mesmo nas demais passagens em que usa o pronome pessoal “nós” (veja At 16.10-17; 20.5-15; 21.1-18; 27.1—28.16). Paulo foi quem o chamou por nome. Em Colossenses 4.14, Paulo o chama ternamente de “o médico amado”. Em 2Timóteo 4.11, ele testifica que Lucas não o tinha abandonado na prisão.
E, em Filemom 24, Lucas aparece como um dos “cooperadores” do apóstolo. Não há dúvida de que entre os dois havia fortíssimos laços de amor cristão e de que Paulo muito estimava a Lucas e vice-versa. Lucas, como médico que era, cuidou do alquebrado Paulo, sempre sujeito a perseguições, naufrágios e açoites.
Além disso, Lucas leva seu relato, em Atos, somente até o ponto em que Paulo estava prisioneiro em Roma, em sua primeira prisão ali. Sabemos que Paulo foi finalmente libertado, que ele encetou uma “quarta” viagem missionária, sobre a qual até podemos reconstruir muito de seus passos (veja o final do comentário em “Atos dos Apóstolos”). E sabemos, por fontes históricas extrabíblicas, que Paulo foi executado a mando de Nero, em torno de 67 d.C. Esses informes cronológicos levam-nos a fazer uma pergunta: Por que Lucas não foi além da primeira prisão de Paulo em Roma, se é que ele escreveu depois do ano 70 d.C.? Quanta coisa ele poderia ter escrito em seu relatório sobre o que transpirara desde a primeira prisão de Paulo em Roma até algum tempo depois da destruição de Jerusalém. A resposta óbvia a essa indagação é: Lucas não narrou os acontecimentos dos 10 anos entre 60 e 70 d.C. porque ele deve ter escrito Lucas aí pelos anos 60 d.C, e Atos dos Apóstolos 1 ou 2 anos mais tarde, no máximo.
Em 67 d.C. Paulo foi executado, e Lucas não menciona isso em Atos. E entre 60 e 67 d.C. devemos abrir espaço para a quarta viagem missionária de Paulo, repleta de muitos episódios.
Por igual modo, todos os argumentos críticos em prol de uma data posterior de Lucas são insustentáveis. Entre esses, mencionamos a teoria de que Lucas teria se inspirado em Antiguidades, de Flávio Josefo, obra escrita em 94 d.C. E há ouras teorias que chegam a pensar em fins do século I d.C. como a data da escrita de Lucas-Atos. Quanto um homem importante que se convertera a Cristo. Outros, como é o caso do primeiro autor deste livro, ajuntaram a isso que Lucas, antes de converter-se, fora reduzido à escravidão, adquirido por Teófilo, e deste acabara recebendo a situação de liberto. Essa posição não parece tão estranha quando lembramos que os antigos não adquiriam somente escravos ignorantes, para trabalhos braçais, conforme se fez no Brasil colonial e imperial até 1888. Muitos escravos dos dias de Roma eram cultos, como Epíteto, por exemplo, que foi um grande filósofo. Teófilo, pois, teria solicitado de Lucas, homem primorosamente educado e capaz, um médico, que investigasse os fatos relativos a Cristo e ao cristianismo primitivo, resultado daí o evangelho de Lucas e Atos dos
Outros estudiosos postularam uma tese bem interessante. Companheiro quase constante de Paulo, ao ver este aprisionado em Roma, tratou de defendê-lo. Sendo Teófilo algum homem importante nos círculos políticos, simpatizante do cristianismo, ou mesmo um cristão, narrou-lhe a verdadeira história do cristianismo, merecedor de ser considerado uma “religião lícita” por parte das autoridades do império, destacando o papel de Paulo, personagem principal de mais da metade do livro de Atos. Assim, Teófilo estaria armado com informações que provam a inocência do apóstolo. Esses intérpretes têm a seu favor o fato de Lucas terminar sua narrativa de Atos estando Paulo aprisionado pela primeira vez em Roma, aguardando julgamento. Sabe-se que Paulo foi inocentado nesse julgamento e que ainda realizou uma “quarta” viagem missionária, não narrada em Atos, mas subentendida em várias epístolas. Ainda a favor deles corre o fato de o evangelho de Lucas e Atos terem sido escritos no começo da década de 60 d.C., e Paulo só ter sido executado por Nero cerca de 67 d.C., o que lhe teria dado tempo de sobra para uma quarta viagem missionária. (A reconstituição da “quarta” viagem missionária de Paulo aparece no fim do breve comentário sobre Atos dos Apóstolos.)
Um terceiro parecer sobre Teófilo é que, em face do sentido desse nome grego, “amigo de Deus”, devemos ver em Teófilo uma personificação de todo o crente leitor de Lucas-Atos. Nesse caso, para que tal leitor tomasse conhecimento de “todas as coisas que Jesus fez e ensinou” (At 1.1) e dos atos subsequentes do Espírito, através dos ministros do evangelho. Contra isso não pesa a declaração lucana dirigida a Teófilo: “para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lc 1.4), pois outro tanto poderia ser dito acerca de qualquer outro crente de todos os séculos. O segundo autor deste livro pende mais para essa terceira posição, mas sem desprezar as outras duas.
Dos quatro evangelistas, Lucas é o único que vincula sua narrativa sagrada à história secular (2.1,2; 3.1). Nisso ele mostrou uma consciência histórica muito apreciada pelos estudiosos.
O universalismo de Lucas é uma das suas características dominantes. Não somente gentios são aceitos em pé de igualdade com os judeus, nem somente às mulheres é dado lugar de proeminência, mas também aos marginalizados da vida, como a pecadora (cap. 7), o publicano (cap. 18), Zaqueu (cap. 19), um dos ladrões da cruz (cap. 23) e o leproso samaritano que voltou para louvar a Deus (cap. 17).
Aliás, o louvor é um dos traços marcantes do terceiro evangelho. Começa e termina com louvor (Lc 1.9; 24.53), e há vários cânticos de louvor (1.46-55; 1.68-79; 2.14; 2.29- 32).
É igualmente destacada a importância da oração. Além das orações também registradas por Marcos e Mateus, há sete outras, exclusivas de Lucas (veja 3.21; 5.16; 6.12; 9.18; 9.29; 11.1; 23.46). Também há ali a oração de Jesus em favor de Pedro (22.32,46), três parábolas sobre a oração: a do amigo importuno (11.5-13), a do juiz iníquo (18.1-8) e a do fariseu e do publicano (18.11-13). E não podemos esquecer o notável ensino de Jesus sobre a constância na oração (11.9).
Lucas destaca a pessoa e a obra do Espírito Santo: João Batista é cheio do Espírito desde o ventre materno (1.15); o Espírito desce sobre Maria (1.35); Isabel e Zacarias são tocados pelo Espírito (1.41,42 e 1.67); Simeão fala por impulso do Espírito (2.25-27); o Espírito desce sobre Jesus, após o seu batismo (3.22), o conduz ao deserto (4.1) e o faz voltar à Galileia (4.14); Jesus exulta no poder do Espírito (10.21); antes de sua ascensão, Jesus ordena aos discípulos que aguardem o Espírito (24.49).
Lucas também acentuou a vida doméstica e as relações sociais (7.36-50; 10.38-42; 11.37-41; 14.1-6; 19.1-10; 24.13-15).
Há algumas parábolas registradas somente por Lucas, como a dos dois devedores (7.41-43); a do bom samaritano (10.25-37); a do amigo à meia-noite (11.5-8); a do rico tolo (12.16-21); a do grande banquete (13.6-9); a da ovelha perdida (14.16-24); a da moeda perdida (15.8-10); a do filho pródigo (15.11-32); a do mordomo injusto (16.1-9); a do rico e Lázaro (16.19-31); a dos servos sem proveito (17.7-10); a do juiz injusto (18.1-8); a do fariseu e do publicano (18.10-14); e a das minas (19.12-27) — 14 ao todo.
Os escritos de Lucas revestem-se de um excelente caráter literário. Disse Cadbury: “O vocabulário de Lucas, a despeito de suas afiliações naturais com o grego bíblico, não está tão distante do estilo literário dos aticistas que não possa ser comparado com o deles”.6
Lucas mostrou um interesse biográfico maior que o dos outros evangelistas. Há informação sobre os antepassados de Jesus, seus parentes, o local e as circunstâncias de seu nascimento, seu fácil relacionamento com as pessoas, o fato de ele ser alvo constante de tentações, e não somente no começo de seu ministério (veja Lc 22.28).
Lucas é o único dentre os três evangelhos sinóticos que chama Jesus de “Salvador” (2.11). Isso pode parecer estranho, quanto mais quando notamos que Lucas não tem nenhum trecho paralelo com Marcos 10.45 e Mateus 20.28 — a famosa passagem sobre Jesus como “resgate” por muitos.
Em dois trechos, Lucas ressalta o anúncio sobre o reino, onde os outros evangelhos fazem silêncio (4.43; 9.2).
Se os outros evangelhos destacam o cumprimento de profecias messiânicas em Jesus de Nazaré, Lucas interessa-se mais por mostrar a associação entre a realização de Jesus e o padrão seguido pelos profetas do Antigo Testamento (4.16s; 24.25,44-47).
Lucas, diferentemente dos outros evangelhos, não frisa tanto o meio ambiente judaico (embora também faça isso), mas se mostra internacional em sua exposição. Austin M. Farrer talvez tenha expressado esse aspecto melhor do que ninguém, ao escrever: “O que mais nos chama atenção em Lucas não é seu helenismo, mas sua versatilidade. Sua história começa no seio da piedade judaica, mas deságua no agora [mercado público] grego”.7
Muitos estudos mais antigos viam no terceiro evangelho apenas uma edição ampliada do evangelho de Marcos. Mas alguns escritores evangélicos mais recentes têm mostrado que Lucas merece, por seus valores intrínsecos, um lugar destacado entre os quatro evangelhos. Esses estudiosos não se preocupam somente com o interesse histórico e arqueológico de um Ramsey, nem somente com a análise literária do livro, como um Harnack, e, sim, frisam também o interesse teológico de Lucas. Quanto a esse aspecto, ninguém fez melhor exposição do que Hans Conzelmann. Ele salientou que a narrativa lucana concebe o ministério de Jesus como a transição entre a antiga ordem da Lei e dos Profetas para a era ou dispensação da igreja, a qual terminará por ocasião do segundo advento de Cristo. Jesus pôs fim à dispensação veterotestamentária e iniciou a dispensação neotestamentária. “A Lei e os Profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus [...]” (Lc 16.16).
O mesmo autor contendeu que Lucas preferiu salientar não uma iminente expectação escatológica (conforme fazem os outros evangelistas), mas a vida do espírito no seio da igreja. E isso Lucas fez encerrando seu evangelho com a promessa do Espírito (24.49) e desdobrando o cumprimento dessa promessa no livro de Atos. O escopo do evangelho de Lucas não pode ser devidamente apreciado sem a sua contraparte, o livro de Atos.
Outro ponto notável, salientado ainda pelo mesmo escritos, é que a preocupação de Jesus com Israel durante o seu ministério não conflita com o universalismo de Atos, mesmo porque a igreja cristã é concebida como o novo Israel. Temos aí reflexos paulinos claros: “[...] paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gl 6.16).
Em face do exposto, podemos agora sublinhar os temas principais do terceiro evangelho. O tema cêntrico encontra-se em Lucas 19.10: “[...] o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido”. Jesus é o homem perfeito, o que ele mesmo expressou com as palavras “o Filho do Homem”. A finalidade de sua vinda — pois ele é também “o Filho de Deus” — foi sua grandiosa obra salvífica. O homem perfeito veio salvar os homens mais que imperfeitos. No dizer de Paulo, Jesus é o “primogênito” da nova raça humana, que encontra em Jesus o seu arquétipo. Por isso mesmo ele é o “segundo Adão”. Sendo eternamente Deus, o Filho de Deus assumiu a natureza humana, embora sem pecado.
Acerca do Deus-homem, A. T. Robertson afirmou: “Se tivéssemos somente o evangelho de Lucas, teríamos, ainda assim, um retrato perfeito da humanidade de Jesus Cristo, como o Filho de Deus e o Filho do Homem”.8 Mateus, em sua genealogia, retrocede a linhagem de Jesus até Abraão, pois Cristo é o “Filho prometido” a Abraão, em última análise. Mas Lucas retrocede essa linhagem até Adão, pois o Filho de Deus, ao encarnar-se, tornou-se parte da humanidade.
Quanto ao ponto de vista pelo qual viam Jesus, Paulo e Lucas divergiam um pouco. Paulo se valeu de definições teológicas; Lucas argumentou com material histórico. Mas o resultado desses dois exames é idêntico: um retrato autêntico do Cristo vivo. Outro tema bem destacado é a certeza histórica do evangelho cristão. Vê-se isso desde o prólogo de Lucas e de Atos. Mas também no cuidado que Lucas teve de confrontar eventos cristãos com episódios da história secular; e até quanto à escolha de vocábulos, refletindo a época em que tudo ocorreu. A precisão histórica de Lucas é bastante impressionante. Lucas chama Quirínio de “governador” da Síria (2.2).
Cronologicamente, isso parecia um equívoco para os críticos, mas descobriu-se que, na época que Lucas lhe atribui, Quirínio recebera o controle das relações exteriores da Síria, cabendo-lhe por direito o título que Lucas lhe deu. Outros exemplos de precisão histórica, quanto a meros vocábulos, figuram em Atos (caps. 27 e 28), onde são usados termos náuticos realmente empregados na época historiada por Lucas. Quanto a esses vocábulos, veja a “Introdução” a Atos dos Apóstolos.
A última viagem de Jesus a Jerusalém é a grande contribuição de Lucas para nossa compreensão sobre a vida na Pereia (veja Lc 9.51—19.28). É verdade que a Pereia nunca é mencionada por nome o Novo Testamento, mas se trata da mesma região chamada “além do Jordão” (Mt 19.1). Quando os judeus queriam viajar da Judeia, ao sul, para a Galileia, ao norte, podiam evitar o território hostil dos samaritanos fazendo um desvio mais para o leste, cruzando a Pereia, e assim viajando o tempo todo por território tipicamente judaico. A hostilidade dos samaritanos transparece em Lucas 9.51- 56.
Naturalmente, Lucas também reserva grande fatia de seu relato para narrar a última semana da vida de Jesus na terra. Mas a narração da ressurreição de Jesus é sui generis em Lucas. Exemplificando isso, o terceiro evangelho é o único a descrever a ascensão de Jesus (24.50-53). Dessa forma, Lucas mostra-nos historicamente que terminara a kénosis ou humilhação de Jesus, porquanto ele fora novamente acolhido na glória, recebendo, com o Pai, posição no trono da majestade divina, algo que Jesus prometeu que faria (veja Jo 17.5,24).
Finalmente, se Marcos faz girar seu relato em torno dos “atos” do Senhor Jesus, apresentando-nos o âmago da história evangélica desde o seu início (Mc 1.1), e se Mateus expõe Jesus como o Messias prometido nas Escrituras judaicas, arquitetando sua história em redor de grandes “sermões” de Jesus, Lucas, por sua vez, procurou por em ordem os acontecimentos relatados (Lc 1.1). Incidentalmente, se Lucas retrocede até Adão, João, o quarto evangelho, retrocede até antes da criação, mostrando que Jesus não é mera criatura, e sim, o criador (Jo 1.1). Isso mostra que nenhum dos quatro evangelhos é supérfluo. Antes, cada qual retrata o Senhor Jesus Cristo por um ângulo.
Se faltasse um dos quatro evangelhos, não teríamos um retrato completo do Cristo. Portanto, a contribuição de Lucas é indispensável.
I - PREFÁCIO 1.1-4
II - NASCIMENTO E INFÂNCIA DE JESUS 1.5—2.52
1) Anúncio do nascimento de João 1.5-25
2) Anúncio do nascimento de Jesus 1.26-38
3) Visita de Maria a Isabel 1.39-56
4) Nascimento de João 1.57-80
5) Nascimento de Jesus 2.1-20
6) Circuncisão de Jesus 2.21-40
7) Infância de Jesus 2.41-52
III - PREPARO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO DE JESUS 3.1—4.13
1) Pregação de João 3.1-20
2) Batismo, genealogia e tentação de Jesus 3.21—4.13
IV - MINISTÉRIO NA GALILEIA 4.14—9.50
1) Jesus expulso da sinagoga 4.14-30
2) Curas comprobatórias 4.31-44
3) Chamada dos primeiros discípulos 5.1-11
4) Mais curas comprobatórias 5.12-26
5) Conflito sobre o jejum e o sábado 5.27—6.11
6) A escolha dos doze 6.12-16
7) O Sermão da Montanha 6.17-49
8) Mais prodígios comprobatórios 7.1-17
9) Jesus fala sobre João 7.18-35
10) A pecadora perdoada 7.36-50
11) A ajuda das mulheres 8.1-3
12) As parábolas do reino 8.4-21
13) Diversos prodígios 8.22-56
14) A missão dos doze 9.1-6
15) A perplexidade de Herodes 9.7-9
16) Primeira multiplicação de pães 9.10-17
17) A confissão de Pedro 9.18-22
18) O discípulo de Jesus deve levar a sua cruz 9.23-27
19) A transfiguração 9.28-36
20) O menino endemoninhado 9.37-45
21) Posições no reino 9.46-50
V - EM VIAGEM PARA JERUSALÉM 9.51—19.28
Primeiro estágio 9.51—13.21
1) Na aldeia samaritana 9.51-56
2) Jesus testa seguidores 9.57-62
3) A missão dos setenta 10.1-20
4) Jesus e o Pai 10.21-24
5) Parábola do bom samaritano 10.28-37
6) Marta e Maria 10.38-42
7) Instrução sobre a oração 11.1-13
8) A blasfêmia dos fariseus 11.14-26
9) As bem-aventuranças 11.27,28
10) Reprovação dos fariseus 11.29—12.12
11) Reprovação da avareza 12.13-34
12) Parábola sobre a vigilância 12.35-48
13) A terra incendiada pelo evangelho 12.49-53
14) Os sinais dos tempos 12.54-59
15) Todos devem arrepender-se 13.1-9
16) Conflito: cura da mulher enferma 13.10-17
17) Duas parábolas do reino 13.18-21
Segundo estágio 13.22—17.10
1) A porta estreita 13.22-30
2) Mensagem a Antipas 13.31-33
3) Lamento sobre Jerusalém 13.34,35
4) O espírito cristão 14.1—15.2
5) Quatro parábolas 15.3—16.13
6) As duas dispensações 16.14-18
7) O rico e Lázaro 16.19-31
8) O perdão e o poder da fé 17.1-10
Terceiro estágio 17.11—19.28
1) A cura dos dez leprosos 17.11-19
2) A vinda do reino 17.21-37
3) Parábolas sobre a oração 18.1-14
4) Jesus e as crianças 18.15-17
5) O rico e a salvação 18.18-30
6) Nova predição da morte de Jesus 18.31-34
7) O cego de Jericó 18.35-43
8) O publicano Zaqueu 19.1-10
9) Parábolas sobres a mordomia 19.11-28
VI - FINAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE JESUS 19.29—21.38
1) A presença do Messias 19.29-48
2) Controvérsias com as autoridades 20.1—21.38
VII - PAIXÃO DE JESUS 22.1—23.56a
1) O traidor é indicado 22.1-6
2) A Páscoa e a ceia memorial 22.7-30
3) No horto do Getsêmani 22.31-46
4) Detenção de Jesus 22.47-62
5) Jesus no Sinédrio 22.63-71
6) Jesus perante Pilatos e Herodes 23.1-25
7) A crucificação 23.26-49
8) O sepultamento de Jesus 23.50-56a
VIII - A RESSURREIÇÃO DE JESUS 23.56b—24.53
1) Jesus ressuscitou 23.56b—24.12
2) No caminho para Emaús 24.13-32
3) Jesus aparece aos salvos 24.33-49
4) A ascensão do Salvador 24.50-53
1 Dicionário enciclopédico da Bíblia, p. 905.
2 HALE, Broadus D. Introdução ao estudo do Novo Testamento, p. 106.
3 BITTENCOURT, B. P. O Novo Testamento: cânon, língua, texto, p. 64.
4 HALE, Broadus D. Introdução ao estudo do Novo Testamento, p. 107s.
5 Veja GUNDRY, Robert H. Panorama do Novo Testamento. Grand Rapids: Zondervan, 1976, p. 102.
6 CADBURY. The Style and Literary Method of Luke. New York: Harper, 1995, p. 38.
7 FARRER, A. M. “On Dispensing With Q”. Em: NINEHAM, D. E. (Ed.). Studies in the Gospels, p. 69.
8 ROBERTSON, A. T. Word Pictures in the New Testament, p. xiv.