Mais de 700 mil vidas perdidas, somente no Brasil, marcam a passagem de um dos períodos mais turbulentos do século 21
Fazia sol em Santa Maria naquelas primeiras semanas de março de 2020. As altas temperaturas coincidiam com a chegada de milhares de alunos que iriam estudar nas universidades e a cidade - mais do que nunca - fazia jus ao título de ‘cidade universitária’. O Coração do Rio Grande pulsava vida, energizada por uma série de sonhos, de pessoas que vinham das mais distantes regiões do estado - e também de fora dele.
A primeira semana de aula passou rápido demais para Igor Euler. Um dos quase três mil novos alunos que a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) recebeu em 2020. O paulista de 23 anos havia encontrado em Santa Maria a oportunidade de cursar a tão sonhada universidade federal. Não era o primeiro curso em que ele se aventurava, já havia cursado dois semestres de Jornalismo em Frederico Westphalen, mas agora iria tentar outra área da comunicação, a Produção Editorial.
A primeira semana contou com o tradicional trote, as festas que uniam calouros e veteranos, o famoso Brahma e passeios pelo campus universitário. Igor, no entanto, nem comparecia a todos esses eventos, e não se importava com isso. ‘Vou ter quatro anos pela frente pra fazer tudo isso’, repetia para si mesmo. Empolgado com o curso, colegas e professores, tudo seguia completamente dentro da normalidade.
O primeiro estranhamento que o colocou de cara com o medo, ironicamente, foi o cuidado. Era um dia quente de março e o Restaurante Universitário, conhecido pela sigla RU, exalava uma mistura gritante e deliciosa de odores - o almoço daquele dia. Em sua frente na fila, Igor observava um menino com uma máscara cirúrgica, que cobria do nariz ao queixo. ‘Doido’, foi o primeiro pensamento que veio à mente. ‘Imagina, usar máscara nesse calor’, ‘será que ele tá doente?', 'será que eu deveria estar usando?’. Por um breve momento, uma angústia faz Igor lembrar das últimas notícias que leu.
Naquele mesmo dia 16 de março de 2020, os jornais brasileiros noticiavam o alastramento de um vírus ainda desconhecido, da família coronavírus. Um dia antes, o Vaticano anunciou que as celebrações da Semana Santa seriam realizadas sem a participação de fiéis na Praça de São Pedro, a Itália registrava mais de 300 mortes em um único dia, Argentina fechava suas fronteiras e, no Brasil, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, minimizava os efeitos do vírus chamando de “histeria” a preocupação da população.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou o que o mundo estava enfrentando como uma pandemia e, no dia 12, o Brasil registrou a primeira morte por conta do vírus, em São Paulo. Naquela semana a UFSM decretava uma pausa de 15 dias nas atividades administrativas e educacionais. As rodoviárias da cidade recebiam vários jovens que decidiram retornar às suas cidades, muitos inseguros acerca do novo vírus. ‘Transmite pelo ar, né?’ ‘Pega em superfície?’, ‘Preciso usar máscara?’ Jovens se amontoavam sobre o guichê de recepção para tentar entender quais linhas de ônibus haviam sido suspensas, quais haviam sido alteradas e como iriam se programar para não perder voos em Porto Alegre.
Igor era um desses jovens. Ansiava voltar para São Paulo, precisava encontrar a família, cuidar da avó já mais velha. Eram 15 dias, ‘praticamente férias antecipadas’, pensava como forma de se tranquilizar, mas não era um momento de calma. Em uma tentativa radical de conter o vírus, estados fechavam suas fronteiras. Para voltar para São Paulo, o estudante foi até Frederico Westphalen, onde conseguiu uma carona para o estado natal com uma amiga. Enquanto enfrentava o caminho até em casa, Igor teve certeza que não seriam só 15 dias. Não foi.
Ainda dentro da universidade federal, um dos maiores complexos hospitalares do estado começava a pensar em como lidar com o inimigo invisível que se aproximava.
Uma guerra nada justa
“Se tem um lugar que já viu muita coisa, esse lugar é a recepção de um hospital”, foi a frase dita por uma senhora de estatura baixa, de aproximadamente 60 anos, que esperava atendimento numa terça-feira pela tarde, em maio de 2023, na sala de recepção do Hospital Universitário. Outra mulher, que a acompanhava, concordou com a cabeça, num aceno triste, com um riso contido, meio nervoso.
Burburinhos sobre o novo vírus já eram comuns nos corredores do Hospital Universitário de Santa Maria ainda em 2019. O novo coronavírus identificado em Wuhan, na China, adentrava não apenas os noticiários, mas atormentava o sono dos profissionais de saúde. Já em janeiro de 2020, não se falava mais sobre o vírus chegar ou não, mas se falava sobre quando isso iria acontecer.
Em 2020, a recepção do Hospital Universitário se tornou o cenário de uma guerra injusta. Centenas de pessoas chegavam com os mesmos sintomas: falta de ar, cansaço, febre, perda de olfato. Os profissionais de saúde que atuavam no HUSM começavam a repetir constantemente uma mesma palavra, simples e assustadora: Covid-19.
A chefe da Unidade de Vigilância em Saúde do HUSM, a enfermeira Débora Luiza dos Santos, comenta que o cenário inicial foi de angústia e busca por capacitação para lidar com o novo vírus. Houve a ampliação do treinamento para uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), por meio de um comitê que atuava semanalmente com reuniões para formulação de estratégias de ação. A enfermeira relata que o HUSM foi rápido em utilizar os espaços que tinha. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) foram rapidamente liberadas para pacientes com Covid-19.
Recostada na cadeira da sala de trabalho, Débora olha para um ponto fixo da mesa quando fala “Teve um dia que nós entubamos quatro”. A voz carrega tristeza e cansaço, de quem já viveu aquilo outras vezes, mas nunca deixou de se emocionar. “Eram quatro pessoas da mesma família, jovens, saudáveis. Nunca deveriam ter entrado no hospital, foi muito triste”, conta. A profissional de saúde ainda relata momentos em que havia apenas incertezas.
Pais e amigos batiam na porta do hospital querendo informações, querendo ver seus familiares. Sem a possibilidade de poder entrar, permaneciam em frente ao HUSM, como se estar ali, mesmo que do lado de fora, transmitisse uma presença e fosse sentida por aqueles que estavam internados. “Chegavamos para trabalhar sem hora para ir embora. Dias viravam noites e vice-versa. Quando saíamos do trabalho, o medo da infecção não acabava. O vírus estava no supermercado, na farmácia. Uma guerra nada justa”, diz a enfermeira.
Dados contabilizados até o dia 24 de maio de 2023, mostram que Santa Maria teve 82.498 casos confirmados de Covid-19. Desses, 1.017 vieram a óbito.
Empatia transformada em cuidado
Sacos plásticos altamente resistentes para evitar a contaminação. Era nesses sacos que os pacientes que vieram a óbito por conta da Covid-19 eram enterrados. Não havia despedida, não havia chance dos entes queridos olharem para o rosto da vítima antes do enterro. A despedida era fria e silenciosa. Pais, amigos, irmãos, colegas. A Covid-19 transformou o luto num processo ainda mais difícil de ser enfrentado.
Ainda nos leitos das UTIs as visitas não eram permitidas. As restrições eram máximas, afinal, a vida de mais ninguém poderia ser colocada em perigo. Mas aqueles pacientes ali internados não eram apenas números, eram pessoas. Era a vizinha que amava ouvir MPB no domingo pela manhã enquanto preparava o café. Era o pai que tinha o sonho de conhecer a América Latina por inteiro. Eram os avós que reuniam a família todo o Natal para uma ceia.
O Hospital Universitário de Santa Maria entendeu isso. Ainda em 2021 surgiu o Grupo de Trabalho de Humanização, coordenado pela psicóloga Taiane Klein. Transformando empatia em cuidado, o grupo atuou na confecção de sacolas de tecido, decoradas com trabalhos manuais. Nessas sacolas, eram devolvidos às famílias os pertences das vítimas do vírus, junto a uma mensagem de carinho. O trabalho de confecção foi feito por diversas mãos, com o apoio, inclusive, de detentas do Presídio Regional de Santa Maria.
A equipe também preparava um prontuário especial para os pacientes internados nas UTIs. Na porta dos quartos, eram depositadas fotos e informações sobre aquela pessoa. Ali, ela não seria apenas mais um número. Junto às famílias, o grupo de trabalho preparava uma playlist, com as músicas favoritas do paciente. Assim, havia dias em que os quartos dos hospitais eram inundados pela voz de Elis Regina cantando “Romaria”, ou pelos versos dos Beatles com “Yesterday”.
Dog Days Are Over
“Run fast for your mother
Run fast for your father
Run for your children
For your sisters and brothers
Leave all your love and your longing behind
You can't carry it with you if you want to survive”
A música da banda britânica Florence and The Machine ecoava de uma emissora de rádio, escolhida pelo motorista de um dos ônibus da ATU, em abril de 2022. Igor riu baixo com a ironia daquela música, bem no dia em que se dirigia para a universidade para o primeiro dia de aula presencial depois de dois anos em casa. ‘Acabou mesmo?’, refletia enquanto ajustava a máscara no rosto.
A Universidade Federal de Santa Maria retomou as aulas presenciais em 2022, depois de quatro semestres totalmente no sistema Regime de Exercícios Domiciliares Especiais (REDE). O campus sede voltava a estar lotado, com pessoas conversando sobre diferentes disciplinas, debatendo distintos assuntos. As recepções ocorriam ao ar livre, com abraços ainda contidos. O uso de máscara era obrigatório, mas elas não escondiam o sorriso de quem via o campus novamente repleto de vida.
Igor retornava a Santa Maria dois anos depois. Não era mais calouro, nem veterano. Retornava com um sentimento diferente. Ver o planetário, a biblioteca, os prédios em que teria aula, o RU, tudo agora tinha aspecto de recomeço. Não era novo, ao mesmo tempo que não havia sido experienciado. Igor também não era mais o mesmo. Havia presenciado uma pandemia, que ceifou milhares de vidas. “Ninguém mais é, não tem como esquecer. Voltamos pra rotina, mas é uma rotina diferente. Hoje eu uso máscara para ir ao hospital, uso máscara quando estou gripado”, conta.
O estudante não perdeu ninguém próximo, mas presenciou a perda de amigos da família. Após dois anos em São Paulo, até o voltar para Santa Maria era incerto. “Dois anos em SP, porque voltar para o interior do Rio Grande do Sul?”, indagava. Mas ele voltou. “No fundo, sabia que ainda tinha muita coisa para viver aqui, tinha pessoas para ver e abraçar, tinha lugares para conhecer. Eu tinha medo, mas a vontade de viver um pouco daquilo que a pandemia me tirou foi mais forte”, conta.
“Falar em ‘depois da pandemia’ é uma ilusão. Podemos ter retornado a uma certa normalidade, mas vamos enfrentar as sequelas que ficaram”, destaca Débora. Na 76ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), ocorrida na última semana, o Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom, destacou a importância do mundo estar atento às variantes da Covid-19 e ao surgimento de novos patógenos. Ainda em discurso, Adhanom enfatiza a importância de campanhas de vacinação e conscientização acerca da valorização da ciência.
No Brasil, os últimos anos foram de ascensão da extrema-direita. Campanhas anti-vacina e a desinformação impactaram a cobertura nacional contra Covid-19. O atual governo, eleito em 2022, busca promover uma retomada nas campanhas de vacinação contra a Covid-19 e outras doenças.
O HUSM segue cumprindo seu papel de Hospital Universitário, com atendimento amplo, público e servindo como Hospital Escola. Alguns prédios à frente, Igor e milhares de alunos seguem na rotina cotidiana, mas com resquícios, memórias e saudade de um tempo passado, de pessoas, lugares e de tudo aquilo que a pandemia tirou.
Reportagem: Milene Eichelberger