Mudar a história de lugar

Para os indígenas, a aprovação do Marco Temporal significa o extermínio das comunidades que ainda permanecem nos territórios demarcados

*Esse texto contém cenas descritivas de violência.

O povo indígena Xokleng é originário da região oeste de Santa Catarina e por muito tempo ocupou regiões que se estendiam do sul do Paraná ao norte do Rio Grande do Sul. Durante o governo imperial, numa época em que migrantes europeus vinham para ocupar áreas no sul do país - na conhecida política de embranquecimento da população -, os indígenas passaram a ser vistos como obstáculos. Por décadas o povo foi massacrado.

O estado brasileiro contratava homens para que realizassem expedições às aldeias Xokleng, os chamados “bugreiros”. Nessas expedições, nem mulheres, crianças e idosos eram poupados. A população foi constantemente atacada e assassinada. “Você vê seu povo sendo assassinado, dizimado. O que você faz? Sai daquele lugar, foge pra se salvar. E depois? Aquele lugar passa a ser símbolo de morte para você, de traumas”, conta o aluno de Direito da UFSM e indígena Xainã Pitaguary. À medida em que o povo Xokleng era dizimado e fugia das terras para sobreviver, elas eram ocupadas por quem os assassinava.

Obras documentais trazem relatos da época. O livro Índios Xokleng – Memória Visual, publicado em 1997, traz, inclusive, o relato dos assassinos: “Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão”, conta o “bugreiro” Ireno Pinheiro, sobre as expedições que realizava no interior de Santa Catarina até os anos 1930. Ele ainda diz: “O corpo é que nem bananeira, corta macio [...] Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Se não, algum sobrevivente fazia vingança”, complementa.

Em entrevista à BBC News Brasil, em 2021, Brasílio Pripra, liderança Xokleng, se emocionou ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados: “As crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 indígenas foram covardemente mortos pelo Estado”.

Comunidade Xokleng após o contato com os brancos (data desconhecida). Foto: Acervo SCS

O caso do povo Xokleng foi uma das bases para a formulação da tese do Marco Temporal. Por anos, houve uma disputa entre a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o estado de Santa Catarina. A Funai, junto a uma ação do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, pedia a reintegração de parte das terras ao povo Xokleng, enquanto o estado alegava que as terras não deveriam ser devolvidas ao povo se eles não a ocupavam até a data de promulgação da constituição, em 1988.

Outro caso que é considerado importante para entender o Marco Temporal, remonta às terras de Raposa Serra do Sol, em Roraima. A área abriga 194 comunidades indígenas e conta com cerca de 19 mil habitantes, dos povos Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingaricó e Wapichana.

Desde a década de 1990, a Funai mantinha um relatório de identificação das terras indígenas, para que elas fossem posteriormente demarcadas. No entanto, produtores de arroz, vindos em sua maioria do sul do país, alegavam ter direitos que lhe garantiam a posse das terras, o que acabou por impedir a demarcação.

Um decreto de 15 de abril de 2005, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a Portaria nº 534, que demarcava a área como Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Com esse decreto aprovado, havia o prazo de um ano para os não-indígenas deixarem a região, mas a portaria não foi bem aceita pela população do local.

Assim que o decreto foi assinado, começaram a tramitar na Justiça uma série de ações contra a demarcação das terras, alegando que seria inconstitucional tirar os agricultores dali. Muitos desses produtores alegavam, por exemplo, que Roraima não teria espaço para que a produção agrícola se desenvolvesse, uma vez que o estado tem 46% de seu território demarcado como terras indígenas.

A retirada de não-indígenas da área motivou também manifestações contrárias de militares. Uma das vozes atuantes na época foi a do comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GCI) durante o governo de Jair Bolsonaro. Na época, Heleno se posicionou contra a política de demarcação de terras em favor dos indígenas, a classificando como “lamentável”.

Em 2008, houve uma operação policial para retirada dos arrozeiros que ocupavam a área, mas os policiais foram recebidos com forte repressão por parte dos produtores. O Supremo Tribunal Federal (STF) acabou suspendendo as operações. Ainda hoje e apesar da demarcação, a Terra Indígena Raposa Serra do Sol segue sofrendo com constante ataque de ruralistas, garimpeiros e criadores de gado.

Os dois casos descritos anteriormente são muito citados quando se fala em Marco Temporal. A tese do Marco Temporal diz que os povos indígenas têm direito apenas aos territórios que ocupavam quando a Constituinte brasileira de 1988 foi promulgada. Desse modo, as terras indígenas demarcadas após esse período poderiam ser retomadas pela União - ou reivindicadas por não-indígenas.
Para pesquisadores da área, o Marco Temporal nasce ilegal em sua origem, uma vez que vai contra o “Direito Originário”, presente na Constituição. O artigo 231 diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Xainã utiliza o caso do povo Xokleng para mostrar a inconstitucionalidade da medida: “Sua família foi assassinada a mando do Estado, você viu todo esse massacre e teve a sorte de conseguir fugir. Você fugiu porque sua aldeia foi dizimada, ocupada por outras pessoas. O Marco Temporal fala que se você não estava na terra em 1988 ela não é sua, mas e se você foi expulso? Como falar para o povo Xokleng que ele não tem direito àquela terra se ele foi expulso dali?”, exemplifica. 

Marco Temporal e PL 490 

O Marco Temporal e o Projeto de Lei (PL) 490 não são a mesma coisa, mas estão intrinsecamente conectados. O Marco Temporal já foi detalhado anteriormente. Segundo ele, povos indígenas só têm direito sobre as terras que ocupavam ou disputavam judicialmente em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição brasileira.

O PL 490, que está em tramitação nas esferas de justiça brasileiras, por sua vez, é um projeto de lei em que está incluso o Marco Temporal, mas não para por aí. A proposta do PL surgiu em 2007, proposta pelo deputado Homero Pereira, do Partido Progressista (PP). O objetivo era alterar o Estatuto do índio, de 1973. A proposta foi bem recebida pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, com a justificativa de que, sem uma maior regulação, qualquer terra poderia pertencer aos povos indígenas.

Para além da demarcação de terras, o PL 490  prejudica ainda mais as populações originárias. O texto flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras por garimpeiros. Em sua maioria, os apoiadores do PL alegam que áreas indígenas têm muito potencial econômico e que devem ser exploradas. Ambientalistas e populações indígenas discordam: “A terra é a nossa riqueza. Vivemos num ecossistema interligado. Preservar a natureza, é preservar nossa vida, isso faz sentido pra gente”, conta Rayane Xipaya, estudante de Relações Internacionais e membro da Liga Acadêmica de Assuntos Indígenas - Yandê. 

A longa trajetória contra o Marco Temporal 

"É uma ironia dos juristas, um deboche muito grande, essa teoria do Marco Temporal. Alguns povos não estavam em suas terras em 1988 porque a forma histórica de colonização do Brasil deixou muitas marcas, com indígenas sendo expulsos de seus territórios”, reforça o pedagogo Alberto Terena, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em reportagem para o site de notícias Brasil de Fato. Apesar das diversas mobilizações dos povos originários e posições contrárias ao projeto de lei - que está em processo de tramitações legais há cerca de 16 anos - foi aprovado pela Câmara dos Deputados, em 30 de maio, por 283 votos a favor, 155 contra e uma abstenção.

Após a aprovação, a discussão relacionada ao Marco Temporal voltou a ganhar os holofotes da mídia. Contudo, a pauta nunca foi esquecida pelos indígenas. As cenas emblemáticas de manifestações dos povos originários de diversas etnias, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, desde 2017, fazem parte do cenário político atual do país. Veículos e agências internacionais, como a Deutsche Welle, Agence France Press (AFP) e Reuters, ajudaram, ao longo dos anos, a consolidar essa imagem de reivindicações do povo brasileiro. Por isso, a luta contra o Marco Temporal não iria ser diferente. 

Foto: Agência Brasil

 "Luta Pela Vida"

Em 2021, a tese estava em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF). O acampamento dos povos originários na Praça dos Três Poderes, batizado na época de “luta pela vida”, foi a maior mobilização indígena desde a redemocratização, com a participação de cerca de 6 mil originários de mais de 170 povos. Na época, o ministro Alexandre de Moraes, pediu vista do processo, método utilizado para analisar melhor o projeto e consequentemente atrasar seu andamento. Após uma pausa de dois anos, no início de junho de 2023, os relatores da Corte voltaram a discutir sobre o Marco Temporal. Cerca de 2 mil representantes de diferentes povos do país estiveram na capital federal para ampliar a pressão sobre os ministros. A  tese jurídica tem até agora dois votos contrários, de Alexandre de Moraes e Edson Fachin, e um favorável, de Nunes Marques. A última movimentação foi do ministro André Mendonça, que pediu vista de até 90 dias para concluir o voto.

Ou seja, após anos de espera, além de debates contrários e a favor da tese jurídica, nada foi decidido. As lideranças presentes posicionaram-se com opiniões diferentes, um misto de frustração e revolta pelo adiamento, mas também de esperança no pedido de vista.

Em meio a todos os trâmites legais e jurídicos, o projeto ainda precisa passar pelo Senado. Sendo agora o PL 2903. A bancada ruralista quer aprovar um requerimento de urgência, assim o PL não precisaria passar por comissões temáticas e seria levado diretamente ao plenário. No entanto, o presidente deste poder, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) já refutou publicamente o requerimento da bancada ruralista de acelerar o processo. 

Segundo o vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), em pronunciamento na plenária “é fundamental que o Senado possa se posicionar, até mesmo para transformar em lei algo primordial para se ter segurança jurídica e paz entre povos indígenas e produtores rurais”. 

Manifestações continuam

O movimento em defesa dos direitos dos povos indígenas se opõe fortemente ao Marco temporal. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil sustenta que a adoção da tese limitaria o acesso dos indígenas ao seu direito originário sobre suas  terras. Diz, ainda, haver casos de povos que foram expulsos delas algumas décadas antes da entrada em vigor da Constituição. 

Mesmo com a demora da parte legal da tese, as manifestações continuam. Em 18 de junho de 2023, a luta contra o Marco Temporal reuniu mais de uma dezena de pessoas na Praça Liberdade, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Os manifestantes apoiaram a causa e são contra a tese do Marco Temporal que corre no Senado e no STF.

Santa Maria e o Marco Temporal

Em Santa Maria, segundo registros historiográficos, os primeiros moradores do município eram o povo Tape. Eram uma comunidade que vivia da caça, da coleta e da pesca. No começo da era cristã, no século 7, começam a chegar na região os grupos Guarani. O que hoje corresponde ao território de Santa Maria era um aldeamento indígena organizado e administrado por jesuítas.

Atualmente, conforme o arqueólogo André Luis Ramos Soares, professor de História da UFSM, atualmente, os dois grupos de Santa Maria são os Kaingangs e Guaranis. As comunidades sofrem uma série de dificuldades advindas da falta de demarcação de terras, falta de um território próprio e da falta de uma área para a captação de recursos.

O arqueólogo afirma que o Marco Temporal é um mecanismo político e um grande retrocesso. “Nenhuma terra indígena no período da Ditadura Militar era reconhecida. Por isso, é um absurdo o Marco Temporal, em um local, como Santa Maria, que é habitada há mais de 8 mil anos por essas comunidades”, explica o professor.

A tese do Marco Temporal viola os direitos exemplificados na constituição de 1988. Para o assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, Verá Yapua Rodrigo, a violação do direito originário à terra, desencadeia em violações de outros direitos. “Por exemplo, na época de pandemia, a gente teve muitas respostas de órgãos públicos como a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) e a FUNAI, a respeito de atendimento a comunidades indígenas, de que algumas políticas públicas não poderiam alcançar as comunidades dos territórios que estavam sem homologação das suas terras indígenas”.

Além disso, a tese jurídica prevê a possibilidade de reestudo de territórios já demarcados. Conforme Verá Yapua Rodrigo, são mais de 400 projetos que estão em tramitação no âmbito administrativo da Funai, alguns estão suspensos por decisão judicial. “Isso tudo viola um direito que a gente considera como um direito humano, que é o direito ao território para os povos indígenas”, relata o assessor.

“Explorar a terra é explorar a nossa existência”

“Quem não pode com a formiga, que não atice o formigueiro”. Foi com essa metáfora que Rayane Xipaya, do povo Xipaya localizado no estado do Pará, e acadêmica de Relações Internacionais da UFSM, se referiu ao Marco Temporal. Para ela, no momento em que a terra de um indígena é ameaçada, todos se movimentam para a proteção do espaço.

A acadêmica lembra que soube do projeto de lei por meio de articulações indígenas das quais faz parte - atualmente ela é membro da Liga Acadêmica de Assuntos Indígenas Yandê. A partir daquele momento, iniciou-se um movimento contra a aprovação, já que para ela, o projeto de lei é uma abertura para a exploração, o que significa o genocídio dos povos indígenas. “No momento em que se mexe no nosso direito base, que é o direito da terra para a continuidade da nossa cultura, nos afeta de diferentes formas e em todas as áreas - como cultura, saúde e educação - porque altera o nosso modo de vida. Para nós, a terra tem muito significado”, revela Rayane.

Após a aprovação do projeto de lei no congresso, uma faixa foi colocada pelos estudantes indígenas no Restaurante Universitário, localizado na Universidade Federal de Santa Maria.

Foto: Milene Eichelberger

No dia da votação, ela e outros indígenas ligados a Yandê fizeram uma caminhada pela Avenida Roraima, em Santa Maria, como forma de protesto. O ato, para os membros do grupo, foi importante para mostrar que os indígenas existem dentro do ambiente da Universidade e resistem a todas as formas de exploração em terras indígenas: “Nossa existência não está apenas nas terras demarcadas, mas em todos os lugares porque o Marco Temporal não afeta somente quem está dentro da aldeia”.

Rayane ainda conta que reivindicações como o Marco Temporal evidenciam ainda mais a necessidade da presença indígena na Universidade para entender como esses processos funcionam e a forma mais eficaz de evitar que os povos indígenas sejam ainda mais impactados. “Nós entendemos que a nossa arma não é mais o arco e a flecha. Hoje, a nossa arma é a mesma dos não indígenas, ou seja, a caneta. Porque hoje a nossa vida é decidida na ponta da caneta”, completa.

Em relação a perspectivas futuras, o desafio é se manter otimista diante dos últimos acontecimentos, seja dentro ou fora de suas aldeias de origem:

- Que perspectiva de vida você acha que um jovem indígena tem sabendo que está sendo ameaçado dentro do seu próprio território? O que eu sinto é que se tu fica dentro do território tu morre, por bala ou por garimpo. Se tu for pra fora, sofre todo tipo de violência possível”, comenta Rayane.

A acadêmica de Relações Internacionais foi uma das entrevistadas pelo Eixo Jornalismo no vídeo “Como o Marco Temporal muda a minha história de lugar” - que reúne relatos de indígenas de diferentes etnias sobre o tema. Confira o vídeo completo abaixo: 

Confira os bastidores da reportagem:

Povos indígenas como parte da natureza

Os territórios indígenas também cumprem um papel importante na preservação das florestas. Por conta disso, esses locais estão entre as principais barreiras contra o avanço do desmatamento no Brasil. Nos últimos 30 anos, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6% - como mostram os dados do MapBiomas.

No relatório, o coordenador geral do MapBiomas, Tasso Azevedo, revela que os dados não deixam dúvidas de que os indígenas estão retardando a destruição da floresta amazônica. “Sem seus territórios, a floresta certamente estaria muito mais perto de seu ponto de inflexão a partir do qual ela deixa de prestar os serviços ambientais dos quais nossa agricultura, nossas indústrias e cidades dependem”, completa. Atualmente, as terras indígenas ocupam 13,9% do território brasileiro e contêm 109,7 milhões de hectares de vegetação nativa, o que corresponde a 19,5% da vegetação nativa de todo o Brasil.

Dados em relação a perda de vegetação nativa no país também indicam o mesmo cenário de protagonismo dos povos indígenas na proteção da natureza. De acordo com o MapBiomas, as áreas privadas responderam por 68% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos 30 anos, já as terras indígenas respondem por menos de 2% dessa perda.

Nesse sentido, Rayane Xipaya afirma que os povos indígenas não defendem apenas a natureza, mas os próprios indivíduos. “A gente se entende como parte da natureza. Quando falamos sobre ela, é como se fosse uma parte de nós”, afirma. Ela ainda afirma que o desmatamento altera a paisagem e, em consequência, o modo de vida e os rituais indígenas também - já que, na visão deles, um não existe sem o outro.

- “Existe toda a questão da cosmovisão, ou seja, a forma como enxergamos o mundo a partir do lugar que estamos inseridos. Por isso, lutamos pela preservação. A gente sabe que vai acontecer, mas enquanto pudermos, vamos tentar adiar. É como a gente sempre fala no movimento: enquanto houver um indígena existindo, respirando nessa terra, vai haver meio ambiente. Porque não tem como um existir sem o outro”, afirma Rayane.

Terra sem indígena, terra com garimpo 

O chamado Marco Temporal tem reverberado de norte a sul do país e chamado atenção para suas manifestações contrárias, vindas de diferentes povos indígenas. Mas, essa não é a única alteração prevista no texto, que tramita há 16 anos no Congresso Nacional. Entre outras mudanças está a autorização para garimpos e plantações de transgênicos dentro de terras indígenas.

O arqueólogo, André Luis Ramos Soares, explica que o Marco Temporal é um mecanismo político que possibilita a ampliação de práticas como o garimpo e o uso agrícola em terras indígenas. “Nesse sentido, a tese é um retrocesso porque permite que grupos econômicos - vinculados ao agro, a madeiras, a extração mineral e florestal - possam contestar as terras reconhecidas como terra indígenas, que foram demarcadas depois de 1988”, completa.

Ele ainda explica que, na prática, esse trecho autoriza o garimpo em terras indígenas, onde atualmente a atividade predatória é ilegal. Ou seja, intensifica um cenário que já é crescente no país. Segundo o Mapbiomas, entre 2010 e 2021, as áreas de garimpo em terras indígenas cresceram 632%, ocupando quase 20 mil hectares em 2021.

Na Terra Indígena Yanomami, por exemplo, o aumento do garimpo nos últimos anos levou a uma grave crise humanitária, com a explosão de casos de malária e o crescimento da fome e da desnutrição infantil. As máquinas do garimpo reviram o leito dos rios, inviabilizando a pesca, e afastam a caça. Além disso, ao usar mercúrio para separar o ouro, o garimpo também vem causando a contaminação de pessoas e animais.

Além da questão ambiental, o garimpo pode ser prejudicial em outros aspectos, especialmente em relação à qualidade de vida. Rayane comenta que um indígena, ao ser contaminado pelo mercúrio, tem a saúde afetada diretamente, já que a substância é tóxica ao organismo - podendo resultar em sintomas como tremores, insônia, dores de cabeça, fraqueza muscular e, em casos extremos, a morte.

Mais do que a contaminação da água, o garimpo também ameaça a sobrevivência dos indígenas em seus territórios. “Como você acha que é a abordagem dos garimpeiros? Eles matam. Eles entram na terra indígena atirando e matando. Estupram mulheres e crianças. É uma violência total, não só com o meio natural, mas com os seres que estão ali”, revela Rayane.

Após o projeto de lei ser aprovado no Congresso, diversos representantes de povos indígenas protestaram no Salão Verde da Câmara dos Deputados contra a votação. O caso do território Yanomami foi lembrado pela ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Segundo ela, o projeto de lei permite a entrada de terceiros em territórios indígenas e o garimpo ilegal nesses locais. “Estamos lutando para acabar com o garimpo ilegal, nós assistimos o crime humanitário contra os yanomamis”, criticou a ministra.

Já manifestações de outras representações políticas revelam o interesse de outro grupo nas terras indígenas: os agropecuaristas. O coordenador da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Pedro Lupion (PP-PR), afirma que os parlamentares estão com boa expectativa da votação sobre o Marco Temporal. Segundo ele, “a Câmara está fazendo seu papel de legislar, estamos fazendo a nossa parte para que esse problema se resolva e acabe qualquer vazio legal em relação a essa questão”, disse Lupion, que votou favorável a aprovação do Marco Temporal.

Para Xainã Pitaguary, o Marco Temporal interessa grandes ruralistas e empresários pelas riquezas que ainda são protegidas pelos povos indígenas. “Existe um setor da política brasileira que está comemorando a aprovação do Marco Temporal e está contando os dias para que ele entre em vigor. E essa é a bancada do agronegócio. Eles querem carta branca para invadir os nossos territórios”, afirma.

Além do aumento de garimpo, o Marco Temporal também pode ser sinônimo de outros crimes ambientais. O mestrando em Direito na UnB e assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, Verá Yapua Rodrigo, a não demarcação de territórios indígenas abre a possibilidade para a exploração estrangeira nas regiões, retirada de vegetação, além da pesca e da caça ilegal. “Enquanto os indígenas estiverem em um território, há proteção territorial, porque proteger o meio ambiente é proteger a nossa existência e a nossa vida”, afirma.

Diante desse cenário, Xainã explica que o projeto de lei, se for aprovado, coloca uma insegurança ainda maior sobre os territórios indígenas. “Legaliza o garimpo, a mineração e a estrada. Não existe nenhum território desse país que não vai passar por problemas. E eu não acho que somos donos da terra, não gosto desse conceito. Porque nós somos parte dela”, completa.

Reportagem: Eduarda Paz, Milene Eichelberger e Thais Immig