Vinicius S. Baldaia - Livres reflexões sobre um mar turbulento. 2021.
Vinicius S. Baldaia - Livres reflexões sobre um mar turbulento. 2021.
A música persistirá sempre como uma presença histórica, um testemunho dos homens que enfrentam conscientemente o processo histórico, e que, em cada instante de tal processo, decidem, na plena clareza da sua intuição e da sua consciência lógica, e actuam para extrair novas possibilidades da exigência vital de novas estruturas. A arte vive e continuará a desdobrar e a desenvolver a sua tarefa. E há ainda muito e maravilhoso trabalho a cumprir e a levar a cabo (NONO, 2015, p. 37)[1].
A Arte é uma expressão humana e, como tal, manifesta sempre um conjunto de aspectos (materiais e conceituais) que se remetem à sua origem cultural (CATALÁN, 2003, p. 22). Evidentemente, a natureza e o grau de literalidade de tal manifestação serão funções dos meios empregados na elaboração do objeto de Arte, bem como do contexto cultural em que se originam o criador e o fruidor daquele objeto.
Como exemplos desses resíduos (materiais e conceituais) manifestos na obra de Arte poderíamos mencionar a linguagem verbal que suporta a Poesia. Ainda que as rotinas sintáticas e mesmo gramaticais sejam frequentemente subvertidas em favor de uma renovação e ampliação semânticas[2], persistem (e mesmo mostram-se como condições de estruturação e fruição) diversos mecanismos básicos da linguagem verbal e da língua (idioma) de base, tais como as relações entre signo e significado (as palavras e seus sentidos gerais e estritos), as classes gramaticais e suas funções no discurso, a ortografia, etc. Que dizer de uma Arte não-figurativa, que não manipule objetos revestidos de significações a priori? Como exemplo menos literal, mas igualmente presente, dessas reminiscências culturais impressas na obra, consideraremos as palavras de Oswald Herzog em seu texto de 1919-1920, O Expressionismo Abstrato[3], à luz da análise de Maria Heloísa Martins Dias. Por se abster do uso de signos com significados dados de antemão e externos à própria obra, o Expressionismo Abstrato, enquanto arte não-figurativa, pode parecer não transparecer elementos externos a si, relacionados ao mundo circundante. Mas, como expresso por Herzog e desenvolvido por Dias, mesmo que não se utilize da representação de objetos pré-existentes, o artista não chega a conceber algo que não guarde alguma relação para com o mundo externo. Ao contrário, “o mundo serve de impulso à criação, sem dúvida, pois os objetos se oferecem à arte como ‘material para a configuração’” (DIAS, 1999, p. 131). O artista expressionista encontrava no mundo exterior, assim, os mecanismos para a organização das formas que construía – fossem tais os mecanismos do inconsciente ou da matéria inorgânica. Ele buscava as relações entre objetos externos à obra de Arte no lugar de uma mímese literal dos mesmos, não deixando, ainda assim, de representar aspectos da vida orgânica tal como esta se dava fora da tela, buscando antes reconfigurá-los com vistas à sua elaboração artística (DIAS, 1999, p. 133). Mas a interpretação do mundo exterior não se pode dar de maneira absoluta e imparcial, antes, apresentando-se como fenômeno interpretado e julgado pelo receptor com base em seus pressupostos e conhecimentos anteriores. Logo, a representação do mundo na obra expressionista abstrata carrega consigo o julgamento acerca daquele mundo por parte daquele criador quanto ao que é relevante e ao que não é: “(...) porém, configurar implica uma tomada singular do objeto, ‘cortando tudo o que não é importante’ para focar sua essência, abstraída do supérfluo” (DIAS, 1999, p. 131) - e esse julgamento se insere em um contexto cultural de influência recíproca para com o juiz/criador. O próprio fato de se tornarem um movimento artístico identificável abrangendo certo número de obras e criadores demonstra como, ao menos em parte, tais criadores compartilhavam um conjunto de julgamentos estéticos e/ou externos à Arte que levassem suas obras a convergirem esteticamente em maior ou menor grau. Esses juízos (estéticos e não estéticos) podem ser profundamente influenciados por seu contexto social, o que não teria sido diferente para o Expressionismo (DIAS, 1999, p. 14), imprimindo-se na técnica artística e levando à convergência estética. Por fim, como afirma o historiador Eric Hobsbawm, ainda que possua uma dimensão essencialmente estética que se possa interpretar com base na história das obras, o conjunto dos elementos sociais e políticos em que vive o criador exerce sobre ele influência e torna-se elemento indispensável em uma análise ampla das obras (HOBSBAWM, 2017, p. 483). Por essa razão, mesmo movimentos artísticos ou iniciativas criativas individuais que, mais radicalmente do que Expressionismo Abstrato, buscassem um rompimento completo para com o mundo exterior, poderiam ser contextualizados em um ínterim em que motivações externas à linguagem artística em questão teriam influenciado tal procedimento, e a própria recusa da tradição poderia então se apresentar como manifestação, na técnica artística, de um conjunto de ideias que transcendem a obra. Em última instância, se poderia relacionar a obra em questão à história da técnica da criação naquela Arte, mesmo que por antítese, ou à história das ideias análogas ou opostas em acordo com seus contextos externos à Arte.
Com a pequena consideração acima, observamos que a Arte é um dado da Cultura e está intimamente relacionada ao contexto sociopolítico em que se insere. Com a Música, como apontou Luigi Nono, não é diferente. Mesmo onde pareça ser a mais subjetiva e não relacionada para com o mundo exterior, é, ao menos em algum grau, relacionada a ele. Henri Pousseur chegou mesmo a traçar paralelos entre a ordenação dos elementos na estruturação musical e as ideologias política e social dominantes ao longo da história, propondo que (e como) estruturas de poder e pensamento mais ou menos autoritárias influenciaram na idealização de uma música que refletisse a si próprias (POUSSEUR, 2008, p. 95-97). Como faceta da Cultura, a Arte é, consequentemente, uma faceta do indivíduo humano ao mesmo tempo absorvido por ela e tornado seu agente transformador. Portanto, no cerne da compreensão sobre o que é e como acontece a Arte está também a compreensão sobre o que é o humano. A compreensão do que é o humano passa pela análise e interpretação de sua história enquanto indivíduo e enquanto ser social, e, como vimos, em cada obra se encontra também um lastro cultural que em muito transcende o objeto estético e aponta para o contexto em que foi concebida. Não à toa livros de história geopolítica dedicam capítulos inteiros à consideração das Artes no período em questão, investigando em que medida causas exógenas influenciaram no desenvolvimento artístico (HOBSBAWM, 2017, p. 483) e, diríamos também, como pensamentos comuns à prática artística se puderam observar em esferas não artísticas da vida social. Mas, para que seja especialmente relevante, é necessário que a Arte a que se refira esteja profundamente vinculada ao tempo que se considera. Tirado de seu contexto, o objeto estético é esvaziado de seu significado socialcultural e tem negado seu papel em relação à “sua participação na realidade presente e à eficácia sobre ela” e “em relação às suas capacidades de projecção no futuro” (NONO, 2015, p. 30). Por isso a Arte Contemporânea é aquela que tem a dizer sobre o mundo contemporâneo. Ambos, mundo (sociopolítico e cultural em sentido amplo) e Arte, estão em constante transformação, de modo que uma expressão artística gestada por esse mundo não possa senão carregar a marca das inquietações e do pensamento da sociedade presente. Como Arte dos nossos dias, a Música Contemporânea promove a reflexão crítica acerca do mundo em que nasce e dos indivíduos que nele habitam; promove ponderação e questionamento, não apenas sobre o que define a própria Arte, mas, repensando a Arte, repensa a sociedade que a concebeu, em primeiro lugar - o que é o humano e o atual estado de coisas provocado por ele.
Nosso barco está sob constante ameaça. Nos últimos cem anos, centenas de guerras motivadas pelo interesse em monopólios políticos e econômicos, a ascenção do fascismo e de todos os valores que o alimentam – a xenofobia, o racismo, o sexismo... -, bem como uma série de movimentos políticos (em sentido geral) que contribuem para a desigualdade de todos os tipos (econômica e social no sentido mais amplo) têm se intensificado. Não são novidades da sociedade moderna, mas a maneira e intensidade por que se manifestam são particularmente recentes – “Era dos Extremos” é como Hobsbawm denomina o século XX (HOBSBAWM, 2017). Enquanto escrevo estas linhas, o sistema de saúde no Brasil se encontra em estado de colapso devido à crise pandêmica de COVID-19. Ainda assim, ouve-se e lê-se falar diariamente em uma suposta farsa dessa crise, bem como se continua a propagar informações falsas acerca de medicamentos que já se provaram exclusivamente nocivos e em nada eficazes contra a doença, que já tomou centenas de milhares de vidas no país. Um dos meios mais eficientes ao mantimento desse estado de coisas vai na linha oposta do que promovem a Arte e também a Ciência – a reflexão, a pesquisa, a crítica, a falibilidade em oposição ao dogmatismo. É, assim, a censura da Arte e a cultura do anticientificismo com vistas à perpétua alienação das massas. Como demonstrou Giulio Girardi, o mais eficaz método de confinamento da sociedade à ideologia dominante é remover sua consciência sobre as paredes de sua prisão (GIRARDI, 2011, p. 15). Como consequência antitética, é por meio da tomada de consciência crítica e coletiva que se dá o primeiro passo em direção à busca por uma sociedade mais igualitária e prevenida contra os efeitos da alienação. Mas consciência crítica não é algo que se possa receber, é preciso desenvolvê-la por meio de um hábito de reflexão crítica sobre o mundo. E é aqui que desempenha um papel fundamental como salva-vidas a Música, em meio a este mar turbulento, bem como toda a Arte de nosso tempo.
No texto An Artistic Impression (1909), Arnold Schoenberg propõe que a capacidade de assimilação de uma “impressão artística” de um indivíduo depende apenas em parte da elaboração da obra por ela mesma. O autor explica que a obra parece funcionar como um estímulo externo que “desperta” uma série de forças sentidas pelo criador na forma de impressão artística, e que é da interação entre esse estímulo e forças análogas a priori latentes no expectador que resulta a maior ou menor assimilação de tal impressão. Poder-se-ia sintetizar como: a assimilação de uma impressão artística depende de uma identificação por parte do expectador para com o conteúdo daquela mensagem (SCHOENBERG, 1984, p. 189). Essa é uma concepção-chave para a compreensão de por que a Arte Contemporânea tem a capacidade de engajar, de provocar reflexão e mesmo de excitar as paixões de qualquer indivíduo a despeito de seu conhecimento especificamente musical (embora sua capacidade de assimilação propriamente musical tenda a aumentar com a frequentação ao repertório). Pois, como vimos, o objeto estético mantém, em maior ou menor grau, lastros para com sua origem. Tais lastros variam em gênero e grau de obra a obra, mas se mantém a capacidade destas últimas de provocarem a reflexão, o pensamento crítico sobre a própria Arte e sobre a sociedade que a gerou. De todo modo, as condições para a identificação dos problemas, conflitos e ordenações apresentadas pela obra por parte de um seu fruidor estão satisfeitas no momento em que este se propõe a descobrir a Arte de seu tempo (POUSSEUR, 2008, p. 95), pois ambos, indivíduo e obra, nasceram em e em parte refletem as inquietações e ideias de uma mesma época, à qual esses conflitos e ordenações estão impregnados. Ao assimilar, assim, a “impressão artística” a ele oferecida, o indivíduo vê na obra um reflexo da trama que envolve o mundo e a si próprio, e o fato de ele estar cônscio desse mundo será ao mesmo tempo resultado e condição de sua fruição – um processo dialético de enriquecimento mútuo entre obra e indivíduo. Esse processo resulta da convergência de uma dimensão preordenada da mensagem tal como apresentada, em nosso caso, musical, e de outra em que a subjetividade do indivíduo lhe permite interpretar o fato estético de seu ponto de vista, identificando-se individualmente, embora envolvido no mesmo contexto (social, cultural, político) da obra (POUSSEUR, 2008, p. 94-96).
Evidenciamos aqui os potenciais da Música como instrumento de conscientização crítica da sociedade, colocando-a como um dos muitos salva-vidas que trabalharão em conjunto ao resgate dos eventuais náufragos e também à prevenção de futuros naufrágios da consciência coletiva socialmente crítica.
A quinta posição, na qual me reconheço, é a que tenta uma cultura como momento de tomada de consciência, de luta, de provocação, de discussão, de participação. Isto comporta o uso crítico de instrumentos e linguagens historicamente recebidas ou inventadas; (...) método de trabalho baseado numa verificação comum com as forças sociais, antes, durante e depois (NONO, 2015, p. 135).
De que maneira, então, pode a Música agir nesse contexto? A Música contemporânea a qualquer época é, naquela época particular, um incessante convite à reflexão crítica. Isso porque a obra estabelece uma relação dialética para com a história das obras e para com a sociedade. Falamos brevemente sobre essa última relação. Quanto à primeira, consiste em uma profunda reflexão sobre as bases da linguagem artística e dos procedimentos de sua elaboração, adotando-os, modificando-os e/ou refutando-os. A relação Música-Sociedade, portanto, não exclui ou torna menos importante seu estudo e compreensão como linguagem artística com uma vasta dimensão autossuficiente e autorreferencial, especulativa e sistemática (CATALÁN, 2003, p. 22). Mesmo porque, como se viu, ao passo em que há uma dimensão do objeto de Arte que o transcende e se remete à Cultura, há outra que diz respeito ao objeto em si, a seus mecanismos de estruturação e funcionamento, a qual, quanto mais profundamente assimilada, mais fornecerá ao ouvinte as chaves-de-leitura do repertório e, como consequência, dos fragmentos-de-sociedade que ele abriga. A cada novo som, o compositor propõe um conjunto amplo de significações possíveis relativas ao excerto, à obra e ao repertório. Sem mesmo utilizar como subsídio a linguagem verbal (embora possa em muito se beneficiar e potencializar ao fazê-lo), a Música feita hoje, que reflete criticamente o mundo vivido hoje, rememora e critica toda a história do repertório e dos valores refletidos nele – estéticos e não estéticos. Mas nunca como uma representação acabada e inexorável: a cada escuta, novas interpretações suscitam, e cada obra proporcionará um conjunto de reflexões único, ainda que inesgotável (ECO, 1968, p. 40-41), sobre si e sobre a história das obras. Pois nem a Arte nem a sociedade podem negar sua história, antes, devendo se colocar em perspectiva em relação a ele - mesmo quando para prospectivamente refutá-lo, isto é, não repeti-lo. Não é esse tipo de compromisso para com a história da sociedade que, adotado por todos, pode parar o sangramento transparente do barco?
Esse exercício provocado pela Arte de nosso tempo pode convidar à sua aplicação generalizada. Ao despertar no ouvinte os anseios mais genuínos, o temor mais íntimo e a capacidade de raciocínio crítico e profundo que ele já possui - por meio de uma “impressão artística” sempre nova e especulativa -, a Música Contemporânea pode se somar às demais Artes de nosso tempo com vistas à promoção de uma constante vigília sobre as ondas cambaleantes de um mar turbulento, buscando amparar o mundo na busca por águas cada vez mais justas, igualitárias – e, como consequência natural, mais artísticas.
Vinicius S. Baldaia, abril de 2021.
Referências Bibliográficas
CATALÁN, Teresa. Sistemas compositivos temperados em el siglo XX. Valencia: Institució Alfons el Magnànim, 2003.
DIAS, Maria Heloísa Martins. A estética Expressionista. Cotia: Editora Íbis, 1999.
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.
GIRARDI, Giulio. Educar: para qual sociedade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2011.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Editora Schwarcz S.A., 2017.
NONO, Luigi. Luigi Nono: textos e entrevistas. Porto: Casa da Música – CESEM, 2015.
POUSSEUR, Henri. Apoteose de Rameau e outros ensaios. Trad. Flo MENEZES e Mauricio Oliveira SANTOS. São Paulo, Editora Unesp, 2008.
SCHOENBERG, Arnold. Style and Idea. Trad. Leo BLACK. Los Angeles: University of California Press, 1984.
[1] Texto Presença Histórica na Música de Hoje, de 1959.
[2] Consequentemente, uma ampliação das possibilidades interpretativas acerca do fenômeno - a “Abertura” da obra a que se refere Umberto Eco (ECO, 1968, p. 40).
[3] HERZOG, Der abstrakte Expressionismus. Der Sturm 10, fasc. 2, 1919/1920, p. 29.
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