Fase escolar - Seleção dos finalistas por escola
Natal, de Miguel Torga
Biografia de Miguel Torga
Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, autor de uma produção literária vasta e variada, largamente reconhecida. Nasceu em S. Martinho de Anta em 1907. Depois de uma experiência de emigração no Brasil durante a adolescência, cursou Medicina em Coimbra, onde passou a viver e onde veio a falecer em 1995. Foi poeta presencista numa primeira fase; a sua obra abordou temas bucólicos, a angústia da morte, a revolta, temas sociais como a justiça e a liberdade, o amor, e deixou transparecer uma aliança íntima e permanente entre o homem e a terra. Estreou-se com Ansiedades, destacando-se no domínio da poesia com Orfeu Rebelde, Cântico do Homem, bem como através de muitos poemas dispersos pelos dezasseis volumes do seu Diário; na obra de ficção distinguimos A Criação do Mundo, Bichos, Novos Contos da Montanha, entre outros. O Diário ocupa um lugar de grande relevo na sua obra. Também como escritor dramático, publicou três obras intituladas Terra Firme, Mar e O Paraíso. Recebeu o Prémio Camões em 1989 e o prémio Vida Literária (atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores) em 1992.
de Miguel Torga
"De sacola e bordão 1, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. “Tenha paciência”, “Deus o favoreça”, “hoje não pode ser” - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas ações é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas 2, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! 3 Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo 4 conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis 5 no bolso e o bornal 6 cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! 7 Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar 8 à manjedoira nativa 9... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo 10, permanentemente escancarado à pobreza 11. Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra 12 de um borralho 13 de estevas 14 e giestas 15 familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário coletivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego 16. Ainda por cima atrasara-se na jornada 17 em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram 18, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos 19, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias 20 a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! 21 O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador 22 à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro 23 da ermida 24. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados 25, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou 26 o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado 27 de urgueiras 28, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia 29 e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! 30 Ia escavacar o arcanho 31. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim 32 ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda.
É servida? A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca 33. - A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José."
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Vocabulário
"Natal", de Miguel Torga, lido pelo próprio. Faixa integrada no disco de 1986: "Natal - um conto e vinte e um poemas", de Miguel Torga & Pedro Caldeira Cabral, editado pela EMI- Valentim de Carvalho. Este filme da leitura do conto foi feito a partir do registo em cassete da emissão da rádio TSF de 17 de janeiro de 1995, dia do falecimento do escritor.
O Jornal 2 lançou cinco desafios. O resultado cinco contos ou poemas de Natal que por entre as luzes ou a neve trazem o frio de uma realidade que o brilho de tantas estrelas ilude.
Na voz da atriz Paula Seabra, Garrinchas, o homem que rezava sem fé para que "ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso", salta das palavras de Miguel Torga para, embora indigno, fazer de S. José.
Episódio 1 (emitido em 18 de dezembro 2006) da mini-série "Contos de Natal" produzida pela RTP. São adaptados ao tempo presente contos prestigiados da literatura portuguesa. Neste episódio, realizado por João Maia, Nicolau Breyner transforma-se na personagem mítica do conto Natal de Miguel Torga, Garrinchas, o mendigo de Regresso a Casa, rodeado por um elenco de luxo: Gonçalo Waddington, Manuel Marques e Francisco Nascimento.