Round 6 Mais do Que Entretenimento

(Cuidado! Spoilers)

Round 6 - Mais do Que Entretenimento

Carmem Moretzsohn

15/12/2021


A essa altura, a maioria das pessoas já sabe que a série sul-coreana é um fenômeno e existem diversas análises à disposição na web. Li alguns comentários como, por exemplo, “Alice in Borderland é melhor”. Na minha opinião, parece uma tentativa (tosca, aliás) de tirar o brilho de uma das melhores e mais consistentes críticas ao capitalismo contemporâneo. Round 6 não é mero entretenimento e é incomparável!


A intenção deste pequeno texto é chamar a atenção para alguns aspectos. É bom avisar que há spoilers. Darei início com um comentário de um intelectual que admiro muito, cujo nome prefiro não revelar, sobre o fato de que o retorno dos personagens ao jogo é uma escolha. Discordo de maneira cabal. Penso, inclusive, que o autor da série demonstra como a meritocracia, pilar do capitalismo, é uma falácia. O que fica claro, para mim, é a falta de escolha, velada, mas que Round 6 escancara.


Em suas vidas medíocres, determinadas pelas crenças nos valores intrínsecos ao sistema, a falta de recursos financeiros e outras condições que fragilizam os indivíduos, como a imigração, por exemplo, os levam a acreditar que participar dos jogos coloca à prova suas habilidades. É neste ponto que está a grande ilusão.


Eles (todos nós, na verdade) são fisgados pela ideia de que, a partir do momento em que criem as estratégias corretas, serão capazes de sobreviver. Esse é o grande mérito dos jogos. Permanecer vivo será o privilégio de somente um indivíduo, ao final. Nesse fato podemos identificar o hiperindividualismo que aprendemos a cultuar. Por acaso, você é capaz de perceber os efeitos psicológicos em sua vida?


Segundo Lipovetsky,


o hiperindividualismo aparece quando a sociedade nega as instituições da coletividade. “A religião, a comunidade, a política. Os deuses são os homens. O indivíduo é um agente autônomo que deve gerenciar a própria existência. Esse indivíduo pode fazer escolhas privadas – que profissão seguir, com quem se casar, o que comprar – mas está submetido às regras da globalização econômica de eficácia, de produtividade, juventude, consumo”.(Disponível em: https://revistapontocom.org.br/materias/a-era-do-hiperindividualismo).

O desespero, falta de sentido e desvalorização da vida, também, fundamentais para o sistema capitalista, coloca os personagens em uma situação de matar ou morrer. Nesse ponto está o cerne da questão! Os indivíduos naturalizam não somente ser obrigados a oferecer suas vidas como fazer o trabalho sujo de matar.


E, de novo, naturalizar não é uma escolha. Trata-se do resultado de uma socialização que ensina competitividade como valor supremo, humilha e tortura os indivíduos por meio de um sistema massacrante e desumano. Para sobreviver, humanos são desumanizados.


“Todas as esferas de vida estão subjugadas à lógica do mercado” (Lipovetsky).


Os jogos, por meio da apresentação de regras, assim como ocorre em nossas democracias, dão um verniz para o absurdo da proposta “matar ou morrer”. Isso porque fazem parecer justas as condições de cega obediência, torturas físicas e psicológicas e até as mortes aleatórias. O maior incentivo de todos?


De acordo com a Netflix Brasil, o prêmio total do jogo seria R$ 208.845.119,58 e cada morte valia mais dinheiro acumulado! Assim, a lógica de lucrar com a morte alhei é incutida na mente de todos.


Afinal, não está se tornando comum o discurso de que há um excesso de pessoas no mundo e de que não há espaço para todos? Para os que concordam com o pressuposto, seria bom se perguntar:


1º) quem chegou a essa conclusão e como?

2º) quais são os argumentos científicos?

3º) quem decide quais são os que devem morrer?

4º) quem fará o trabalho de matar?


A proposta do jogo, ou seja, que todos devem matar e/ou morrer, por acaso, não está sendo colocada em prática diante dos nossos olhos cotidianamente?


O mais interessante é que, nos momentos em que alguém questiona o sistema, o que é proposto? Pasmem. Votação! Absolutamente genial! É uma forma de transferir para os indivíduos a responsabilidade de escolher num contexto de “não escolhas”.


Isso porque aquele ambiente dos jogos é, somente, um microcosmos do que já ocorre “fora”. O que é oferecido no ambiente dos jogos é a ilusão de mérito, algo que não conseguem perceber, pois, internalizaram os valores que colocam o dinheiro num pedestal e a ideia do “vale-tudo” para conquistá-lo.


No final, vem a cereja do bolo: a apresentação dos VIPs! Todo o desespero que leva os personagens a lutar por aquilo que os VIPs têm em excesso em um mundo de escassez, ou seja, o dinheiro é motivo de diversão para os mais ricos do planeta. Vale notar que os VIPs são homens brancos ocidentais que falam o inglês com sotaque americano.


Para você, a vida imita a arte ou o contrário? Veja o que acontece quando um dos atores da série desrespeita um funcionário do supermercado na Tailândia:


"Sou americano, faço o que quiser"; https://br.bolavip.com/entretenimento/zeze-di-camargo-fala-sobre-luciano-20211216-0044.html


O diretor e roteirista Dong-hyuk Hwang comparou o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, com um dos espectadores VIPs:


"Donald Trump se tornou o presidente dos EUA, e acho que ele meio que se parece com um dos VIPs de Round 6. Era quase como se ele estivesse comandando um game show, não um país, como se provocasse terror nas pessoas". (Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/10/4955198-vips-de-i-round-6-i-foram-inspirados-em-donald-trump-diz-criador-da-serie.html)


Em um ambiente protegido no qual são observadores, porém, o sistema é capaz de ocultar, usufruem de um sadismo chocante. Apostam em seres humanos assim como o protagonista Seong Gi-Hun aposta em cavalos. Não é tudo um jogo, afinal?


E as crianças são socializadas por meio de jogos que estarão presentes em todas as suas vidas. Esse é um gatilho psicológico muito poderoso presente no inconsciente de todos. Outro aspecto interessante é observar o modo pelo qual as novas tecnologias são utilizadas e foram inseridas em nossos cotidianos. Mais um aspecto que, simplesmente, naturalizamos.


Infelizmente, concordo com Becken Lima quando escreve:


“E o que mais encanta: é ver as massas consumirem a série tão sedadas pelo entretenimento que se recusem a tirar qualquer lição dela”. Disponível em: https://medium.com/@beckenlima/round-6-da-netflix-quando-o-anticapitalismo-vira-produto-122aca05daa5.


Assim como os personagens de Round 6, não percebemos a profusão de absurdos a que somos submetidos e até nos divertimos. Uma pergunta a ser feita é: em que aspectos seria possível nos identificarmos com cada um dos personagens? Pode ter certeza de que Round 6 é um espelho. Não se preocupe. Não será preciso contar sua resposta para ninguém.


Round 6, por meio de uma crítica contundente ao sistema capitalista, deixa-nos, entre outras, as seguintes questões para reflexão:


  • Até quando aceitaremos ser ditados pelos rumos do mercado e valorizar mais o dinheiro do que a vida?

  • Quando começaremos a questionar e mudar as regras que regem as instituições de modo a melhorar a qualidade de vida da maioria dos indivíduos e a sustentabilidade do planeta?

  • Como conseguiremos que as instituições estejam a serviço da população e não, o contrário?

  • Quando passaremos a exigir que os direitos básicos de cidadania sejam garantidos?


E o que dizer quando um homem é condenado à morte e um estudante à prisão perpétua por distribuir ou consumir a série? Veja a matéria:

https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/coreia-do-norte-condena-homem-a-morte-por-distribuir-serie-round-6-no-pais/


Que poder, não é mesmo?

Round 6 não responde a todas as questões, porém,

a forma como desnuda a realidade

é um tapa na cara de cada um de nós!