Atlas do chão

Imaginar o atlas como uma coleção de mapas que permite visualizar o mundo e navegar por ele.

Não o mundo pesado e esférico que o titã condenado por Zeus carrega nas costas, mas este que carregamos em nós mesmos, no impulso metamórfico que chamamos de vida.

Um atlas, por isso, inacabado por natureza. Dinâmico. Tentacular. Simbiótico.

Onde mais que os pontos em si, são as conexões e inter-relações que importam. Proximidades e distancias, intervalos, contatos. Constelações. Parentescos.

Ligar pontos isolados, gerando estruturas rizomáticas que lhes dão novos sentidos.

Aproximar e articular coisas distantes geográfica e culturalmente, fazendo surgir relações de afinidade sempre prontas a serem reconfiguradas.

Arranjos provisórios e por vezes surpreendentes, a oferecer novas possibilidades de leitura à medida que nos movemos por dentro do atlas, tramando percursos.

Um atlas infinito. Com uma dimensão ficcional correspondente à ambição desvairada de mapear o chão do mundo, nas suas múltiplas dimensões e sentidos.

Aqui, todos os modos e métodos de mapeamento são possíveis.

Em comum, a vontade de fortalecer o chão.

Identificar situações críticas em que a potência do chão se revela. Tornar visível criticamente ações e práticas que envolvem cuidados com o chão. Especular sobre outras possíveis configurações territoriais. Inspirar novas ideias, projetos e pensamentos, modos de ativar e honrar o chão à revelia da sua apropriação como mercadoria.

Restituir sua plena potência como ser vivente, feito da contínua interação entre múltiplas espécies.

Como mundo, em que inúmeros tempos, organismos, agentes, forças geopolíticas e lógicas de territorialização, domínio e poder se cruzam.

E como arquivo do mundo, no qual todas as ações (humanas, não humanas, mais que humanas) de algum modo se inscrevem, deixando marcas.

Sem deixar de considerar também o que é construir um atlas do chão hoje, no Brasil. Ou a partir do Brasil, hoje. Nesta encruzilhada onde as desigualdades herdadas da violência colonial se expressam como nunca no corpo em que pisamos cotidianamente, sobre o qual erguemos nossas casas, onde enterramos nossos mortos e do qual depende a habitabilidade do planeta. Mas onde também, junto com as ameaças crescentes provocadas pela urbanização descontrolada, a pavimentação extensiva, o extrativismo predatório, o agronegócio, o desmatamento, ainda podemos ouvir a floresta, na voz firme e doce de Ailton Krenak: “Pise suavemente sobre o chão”.

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