O Crime da Condução Anti-Social

Artigo de Manuel João Ramos, publicado no Público, a 17 de Julho de 2021

https://www.publico.pt/.../crime-conducao-antisocial-1970672


O CRIME DA CONDUÇÃO ANTI-SOCIAL


Assim, de repente, lembro-me de Paulo Portas a esmagar um Jaguar contra o carro de uma copy-desk do Expresso parada num semáforo da Av. Fontes Pereira de Melo; de Garcia Pereira a vangloriar-se por conduzir o carro como um fórmula um em campanha eleitoral; de Rui Rio a experimentar um BMW na A1 a 220km/h e a admitir que a menos de 120km/h adormecia ao volante; de Jorge Sampaio a dizer nunca circular a mais de 120km/h em autoestrada mas os seguranças irem a 140km/h para o poder acompanhar e os jornalistas terem de acelerar até aos 160k/h para não o perderem de vista; de Mário Soares a ser apanhado a 200km/h, a insultar os agentes da GNR e a dizer que o Estado é que ia pagar a multa; de Marcos Perestrello a desfazer um Mercedes oficial quando fazia dele uso pessoal. E depois há episódios como do motorista de Manuel Pinho que alegou ir em marcha urgente de interesse público quando apanhado a 212km/h na A1 (sem que o ministro tirasse os olhos do jornal, dentro da viatura); o episódio em que o motorista de António Costa alegou marcha urgente ao ser apanhado a 160km/h na A2, quando conduzia o então presidente da CML para um jogo de futebol no Estádio do Algarve; ou aquele em que o motorista de Mário Mendes, ex-secretário-geral de segurança interna, alegou marcha urgente após chocar com o carro do presidente da AR, ao descer a Av. Liberdade a 120km/h em hora de ponta sem parar em nenhum semáforo. E há o caso recente em que o motorista de Eduardo Cabrita, ainda Ministro da Administração Interna (MAI), atropelou um cidadão na A6 em zona de obra assinalada, circulando a uma velocidade ainda não determinada, em circunstâncias de marcha, urgente ou não, ainda não conhecidas publicamente.

Após uma sucessão de queixas da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M), o então Provedor de Justiça Alfredo de Sousa emitiu em 2011 a Recomendação 4-A/2011, de imediato acatada, por despacho, pelo então MAI, Rui Pereira. A Recomendação versa sobre as condições em que os veículos oficiais utilizam a “marcha de urgência de interesse público e a forma como as autoridades policiais devem proceder à fiscalização da mesma”. O ponto 3 esclarece que “nem todo o serviço público justifica a inobservância das regras e dos sinais de trânsito”. O ponto 6 estipula que “cabe em exclusivo à Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) a apreciação dos casos de serviço urgente de interesse público, a fazer no âmbito da instrução dos processos de contra-ordenação. (...) Às forças policiais compete levantar os autos de contra-ordenação rodoviária sempre que presenciem situações de inobservância das regras e os sinais de trânsito”. A recomendação que como disse foi acatada pelo MAI, indica que a GNR, a PSP e a ANSR devem organizar e manter actualizados registos de entidades do Estado cujos veículos e condutores foram fiscalizados e invocaram ou suscitaram o serviço urgente de interesse público, e devem divulgar anualmente tais registos.

A ACA-M pugna há mais de 20 anos pela pacificação das relações sociais em meio rodoviário e considera que os detentores de cargos públicos têm um dever especial de cuidado e se encontram obrigados a oferecer-se publicamente como exemplo irrepreensível de boa conduta rodoviária, enquanto mandantes dos motoristas que lhes estão assignados nas suas deslocações oficiais. É sabido que os motoristas de viaturas do Estado se encontram numa situação de particular fragilidade contratual, sentindo-se compelidos a obedecer a ordens - explícitas ou implícitas - dos seus mandantes, mesmo quando estas contravêm os deveres acima referidos. Na nossa perspectiva, qualquer violação por parte de um detentor de cargo público a esse dever de suma isenção em meio rodoviário, seja por acção ou por omissão, é atentatória do contrato social estabelecido entre o Estado e os cidadãos, e reveste a forma de comportamento anti-social especialmente gravoso. Por outro lado, a percepção pública dos comportamentos rodoviários de detentores de cargos públicos, enquanto mandantes, é a de que, com demasiada frequência, não reflectem essa obrigação de conduta rodoviária exemplar. Em diversas ocasiões, no passado recente, detentores de cargos públicos ou os seus motoristas invocaram circular em “marcha urgente”, quando fiscalizados e autuados pelas forças de segurança por se encontrarem em inobservância das regras e sinais de trânsito.

Passados dez anos sobre a Recomendação do PJ e do Despacho do MAI, continuamos sem ter qualquer informação sobre o que se passa no universo cinzento das relações entre governantes, motoristas e entidades fiscalizadoras. A ANSR nunca publicou a lista anual das infrações dos motoristas de governantes ou das alegações de “marcha urgente”, as forças policiais nunca divulgaram os autos de infração, o MAI nunca tomou medidas contra a cultura de impunidade rodoviária que se vive a bordo das viaturas oficiais, e sobretudo nenhum governante surgiu perante as câmaras de televisão para fazer o necessário e urgente mea culpa prévio ao combate à corrupção colectiva que faz com que governados aceitem comportamentos rodoviários anti-sociais da parte dos governantes para assim poder justificar, perante a sua consciência, os seus próprios actos anti-sociais na estrada.

É por isso urgente saber a que velocidade circulava o BMW atribuído a Eduardo Cabrita na A6, a 18 de Junho, e se o seu motorista alegou ir em “marcha urgente”. E é ainda mais urgente, porque se trata de comportamentos perigosos posteriores àquele mediático atropelamento mortal, saber a que velocidade circulavam nos dias 5 e 12 de Julho as viaturas:

- Do primeiro-ministro António Costa na A1

- Do ministro do ambiente na A2

- De pelo menos duas secretárias de estado na A1

É igualmente imprescindível saber se os seus motoristas irão alegar ter conduzido em “marcha urgente”. Um mea culpa colectivo vinha mesmo a calhar.