Comunicado

2003/09/18

Falta de segurança pedonal na Avenida da República em Lisboa

Qualquer técnico de tráfego sabe – ou deveria saber – que os peões procuram sempre atravessar uma rua percorrendo a distância mínima entre dois pontos.

Na verdade, não é preciso ter um curso de engenharia para saber uma tal coisa. Até uma criança ou um louco o sabem, instintivamente.

Mas então, se este comportamento dos peões é tão sobejamente conhecido, porque razão insistem os técnicos da Câmara Municipal de Lisboa em conceber estruturas viárias que frequentemente expõem os cidadãos a graves riscos para a sua vida, saúde, conforto ou dignidade?

Sem dúvida porque, como os políticos que apadrinham os seus projectos, os técnicos não são responsabilizáveis, cível ou criminalmente, quando produzem “soluções” eticamente condenáveis e socialmente iníquas. Sentem-se impunes.

A quatro meses do início do ano mundial das pessoas com mobilidade reduzida, e a quatro dias de mais um “dia europeu sem carros”, deparamo-nos com uma autêntica ratoeira para peões numa das principais avenidas da cidade de Lisboa, frente a uma zona de diversão e sob uma importante estação de comboios.

Há uma semana, eventualmente por pressão política, os técnicos de tráfego da CML ordenaram a colocação de separadores de betão Jersey, com 85 cm de altura, sobre a placa central da Avenida da República, no local onde há quinze dias uma criança de dez anos morreu atropelada. Estes separadores não estão chumbados ao solo e não estão fixos entre si.

“Pior a emenda que o soneto”, costuma dizer-se. Neste caso, se o soneto foi trágico, a emenda é aterradora. Vejamos a história desde o princípio:

Há dez anos, o Dr. Jorge Sampaio desejou deixar um legado de modernidade à cidade de Lisboa – o túnel do Campo Pequeno. Quando o túnel inaugurou, quase ninguém notou que os técnicos responsáveis se tinham “esquecido” do atravessamento de peões.

Com efeito, do Campo Pequeno a Entrecampos, numa extensão de meio quilómetro, não há uma única passadeira. Na altura, o que interessava era aumentar o fluxo de automóveis, sem ligar ao facto de a CML estar assim a induzir de forma sistemática o excesso de velocidade dos automóveis.

Mais tarde, a CP – que entretanto gastava fortunas a construir um apeadeiro milionário na Expo – decidiu expandir de forma atamancada a estação da Av. 5 de Outubro, lugar de confluência de linhas suburbanas, regionais e nacionais de comboios. Aumentou-se assim a circulação pedonal mas não se acautelou a travessia das pessoas na Av. da República. Há alguns anos que a REFER estava obrigada a colocar guarda-corpos nos passeios laterais mas estes nunca surgiram (ninguém será, claro, responsabilizado).

Depois do atropelamento mortal de há quinze dias, os técnicos da CML – que pelos vistos não têm o hábito de circular a pé em Lisboa - apressaram-se a colocar os separadores Jersey no troço fatal. Mas estes separadores, em vez de serem um dissuasor eficaz, são um perigo adicional para os peões e para os automobilistas.

Por um lado, a quem tem, ou julga ter, compleição física suficiente para saltar sobre o separador, este funciona como uma ratoeira, dificultando mas não impedindo o atravessamento. Por outro, se um automóvel embate num separador, este é lançado para a faixa contrária porque não está preso ao solo nem às outras peças – potenciando assim novos embates.

O túnel do Campo Pequeno não deveria ter aberto sem garantir o conforto e segurança dos peões. A estação de comboios não deveria ter sido expandida sem impedir o atravessamento à superfície num local tornado perigoso pelos túneis e pelo excesso de velocidade dos automóveis.

E, depois do atropelamento de uma criança há quinze dias, os técnicos da CML deveriam ter – como medida provisória – colocado um gradeamento com a altura de um metro sobre os separadores. Entretanto deveriam também ter sido iniciadas obras para:

  • colocação de guarda-corpos para peões nos passeios laterais, para evitar o atravessamento da Av. República no troço em questão;
  • colocação de sinalização na estação do metropolitano de Entrecampos indicando que o acesso funciona também como passagem subterrânea para os peões atravessarem a avenida; e
  • colocação de sinalização na estação do comboio indicando que a plataforma funciona também como passagem aérea para o atravessamento da avenida.

Ao lamentarmos hoje a morte de uma criança à boca do túnel do Campo Pequeno, somos obrigados a avaliar o legado que nos deixaram há dez anos o Dr. Jorge Sampaio, o Eng. Machado Rodrigues e os técnicos da CML. Mas também estamos obrigados a auto-responsabilizar-nos por ter deixado que a situação fosse criada e mantida durante tanto tempo.

Uma última palavra: estaremos agora suficientemente atentos para verificar se o legado que o Dr. Pedro Santana Lopes e os técnicos da CML nos querem deixar na Rotunda irá ter consequências trágicas semelhantes? Como irá ser feita a circulação pedonal na zona do túnel do Marquês? Haverá troços de meio quilómetro sem passadeiras? Será que alguém já se preocupa?