Comunicado "2003: Um ano (quase) perdido"

2003/12/23

Os decisores políticos imaginam – ou querem fazer-nos crer que imaginam – que a tragédia rodoviária pode desaparecer com um passe de magia feito de boas intenções.

Ou seja, impotentes face à falta de recursos, à impossibilidade de articulação entre organismos, ao desinteresse da maioria dos utentes das estradas face às suas mensagens, recorrem ao que em inglês se designa por “wishful thinking”.

Imaginam – ou querem fazer-nos crer nisso - que, se ameaçarem com operações policiais e fiscalização mais rigorosa os não muitos cidadãos que ainda os ouvem, e se prometerem mais meios, mais leis e mais campanhas educativas, conseguirão obter bons resultados numa luta contra a sinistralidade que parece ter contornos similares aos moinhos de vento do D. Quixote de Cervantes.

Infelizmente, as boas intenções e a retórica paternalista não conseguem esconder falhas estruturais já cristalizadas na gestão política da “segurança rodoviária”. O Plano Nacional de Prevenção Rodoviária (PNPR), anunciado pelo primeiro-ministro com pompa envergonhada numa fria manhã de sábado, em Março passado, foi elaborado à pressa, por um grupo heterogéneo de pseudo-especialistas, a partir de uma visão superficial dos problemas do sistema rodoviário. Várias das medidas prometidas (por exemplo, kits-mãos livres para telemóveis, coletes reflectores, alteração do regime de coimas), já várias vezes adiadas, não foram fundamentadas por critérios analíticos, não foram orçamentadas, nem foram claramente explicadas ou justificadas.

Passaram nove meses desde a apresentação do PNPR e não passou para a opinião pública a ideia de que há empenho, direcção, articulação ou recursos financeiros e humanos suficientes para pôr o plano em prática. Em vez disso, tornaram-se evidentes as desautorizações, descredibilizações e mal-entendidos entre o MAI, e os comandos e corporações policiais (em particular, no respeitante à GNR-BT). Os anúncios de atribuição de novos meios (veículos, equipamentos, etc.) são requentados e as declarações de pendor securitário soam a falso, face à inconstância da presença policial nas estradas. A gestão da comunicação das decisões e acções oficiais é confusa e extemporânea.

Não devemos esquecer que os principais factores de redução da sinistralidade grave não são as políticas de prevenção e segurança rodoviária da administração central, mas sim:

Mas sobretudo é sinal de fraqueza o facto de a administração pública promover discursos optimistas sugerindo que a redução dos números de sinistrados face a anos anteriores se deve ao sucesso da suas acções. É, genericamente, falacioso argumentar, sem o demonstrar, que a redução do números de mortos e feridos se deve – genericamente – às acções do PNPR. Podemos conceder que as fiscalizações aumentaram, que a cobrança de multas se tornou mais eficaz e que as inspecções ao funcionamento administrativo das escolas de condução se tornaram mais frequentes. Mas as autoridades não conseguem provar que, por exemplo, a fiscalização policial contribui mais para a diminuição da velocidade excessiva que a redução que ocorreu este ano no consumo de combustível. Assim como não é procurando apropriar-se da oratória de associações como a ACA-M, anunciando desejos de paz rodoviária pelas estações de rádio e televisão, que as autoridades responsáveis pela gestão da insegurança nas estradas conseguirão modificar a situação presente.

Estaremos a ser demasiado severos no nosso balanço? Cremos que não. Até ver, o PNPR é uma carta de boas intenções cuja aplicação é, no máximo, timorata. Fala quem vê que, no dia-a-dia do ano de 2003, o nível de agressividade, a frequência das infracções, a ausência das polícias, e as armadilhas escondidas nas ruas e estradas portuguesas continuaram quase inalterados em relação a anos anteriores.