Dia Europeu em Memória das Vítimas da Estrada

2003/11/16

Porque faz falta um memorial adequado para homenagearmos as vítimas do que temos vindo a chamar de “guerra civil nas estradas portuguesas”, a ACA-M tomou de empréstimo, no Dia Europeu da Memória (16/11/03), um monumento cuja função ritual se encontra já há muito desactivada: o monumento aos mortos da Grande Guerra.

É algo estranho – quase sacrílego – que dirijamos uma homenagem a quem morreu violentamente nas ruas e estradas usando para isso um memorial de pedra que foi, durante anos, usado para evocar outras vítimas - os mortos portugueses da Primeira Guerra Mundial. A verdade é que, na perspectiva da vítima e de quem a chora, uma guerra equivale sempre a outra.

O Dia Europeu em Memória das Vítimas das Estradas oferece aos amigos e familiares das vítimas das estradas, e à comunidade em geral, um momento de reflexão colectiva sobre o significado da carnificina diária provocada pela velocidade automóvel.

O Dia da Memória é um dia de evocação e um dia de acção. De evocação da memória dos nossos familiares e amigos mortos na estrada, soldados desconhecidos de uma guerra suja e aparentemente interminável, soldados que a maior parte das vezes nem sabem que o são, e que caem muitas vezes antes mesmo de deixarem de ser crianças (ou, como aconteceu recentemente em Aveiro, antes mesmo de ser crianças). O direito à vida foi-lhes roubado, em nome do direito da força: a força do excesso de velocidade, a força da sensação de impunidade, a força de conduzir alcoolizado, de falar ao telemóvel, de não parar nas passadeiras, e também a força de construir e manter estradas sem respeito pela integridade física dos cidadãos.

O Dia da Memória é também um dia de acção. Um gesto, mesmo que simbólico e algo estranho, como a deposição de coroas de flores num monumento tomado de empréstimo, tem a força da razão que está por detrás dele. Para acabar com esta guerra, não precisamos de recorrer à força das acções sangrentas – porque esta é uma guerra que não se vence pela razão da força mas pela força da razão e pela valorização da memória.

A memória é parte importante na construção da identidade de um país, de um colectivo. A função dos monumentos nas nossas cidades é também essa: homenagear, honrar, dizer que não esquecemos.

Não existe ainda um memorial dedicado aos mortos da grande guerra civil das estradas portuguesas. Um tal monumento, que perpetuaria a memória das vítimas da violência rodoviária, seria um reconhecimento, por parte do estado e da sociedade, da enorme dor e sofrimento causados a muitos milhares de cidadãos portugueses em nome de uma tecnologia de transporte que não tem acautelado suficientemente o nosso inalienável direito à vida e à integridade física.

Será que um monumento à memória das vítimas da grande guerra civil das estradas ajudaria a tornar menos gratuito o seu sacrifício? Será que ele nos ajudaria a reanimar a nossa consciência colectiva e a fazer o que se deve fazer com qualquer guerra – dá-la por terminada? Deixamos aqui intencionalmente sem resposta estas perguntas que são também um repto a quem estiver disponível para as ouvir e para agir em consequência.

O monumento aos mortos da I Grande Guerra é, como se sabe, um monumento ao soldado desconhecido. Por isso também é justificado este empréstimo temporário: é que as vítimas das guerras são todas, voluntária ou involuntariamente, soldados desconhecidos. Anónimos para o colectivo, com identidade concreta para quem as chora e as lembra.

A memória é mais frágil que a força do hábito e da insensatez dominante. A evocação dos mortos portugueses da I Grande Guerra não desperta hoje a emoção e dor que já despertou em tempos passados, mas sim distanciamento cultural face ao horror da violência da guerra de trincheiras. Talvez um dia os nossos descendentes possam sentir apenas estranheza e distanciamento cultural perante o modo barbárico como nos conduzimos nas estradas e ruas portuguesas.

Manuel João Ramos

Rui Zink