Balanço de 2000

Conferência de Imprensa

Sede da ACA-M, 2000/12/20

A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados vem declarar o seu desespero perante a forma como o estado e a sociedade portugueses encaram a situação de tragédia diária que se vive nas estradas e ruas do país. A tolerância dos cidadãos e das autoridades perante comportamentos anti-sociais, agressivos e infractores dão bem conta de que uma cultura de violência rodoviária se difundiu e se vulgarizou em Portugal. Estamos perante um problema social e cultural à escala nacional, na medida em que mais de um em cada três portugueses são hoje proprietários de automóvel.

Morreram, nos últimos dez anos, mais de 25.000 portugueses em desastres e atropelamentos rodoviários. Ficaram feridos, estropiados ou incapacitados mais de 400.000 cidadãos.

Quantas vidas ficaram para sempre marcadas pela violência do trânsito em Portugal? Quantas famílias ficaram destruídas ou desmembradas?

Os números do que a ACA-M tem vindo a chamar de guerra civil nas estradas portuguesas não são conhecidos do grande público. O preço das vidas humanas sacrificadas, os custos materiais, psíquicos e sociais desta tragédia rodoviária são, no entanto, graves e preocupantes.

Suficientemente graves, pelo menos, para ter levado a Comissão Europeia a enviar ao Estado português, há um ano, uma directiva na qual se afirmava descontente com "a persistente estimativa por baixo das consequências económicas dos acidentes quando são estabelecidas prioridades políticas gerais".

A Comissão Europeia convidava por isso o governo e as autarquias portugueses "a aumentar o investimento em projectos no domínio da segurança rodoviária", dado que esses investimentos se justificam plenamente em termos económicos e de pacificação social.

O que se passou, no entanto, este ano em termos de prevenção e segurança rodoviária?

O governo declarou em tom optimista que o ano 2000 seria o "Ano da Educação Rodoviária". Em Janeiro, durante a abertura oficial do Programa de Educação Rodoviária para 2000, o Primeiro-ministro e o Ministro da Administração Interna afirmaram que:

    • O automóvel está a ser usado como uma arma de agressão em Portugal;
    • O governo pretendia acabar com a guerra nas estradas portuguesas.

Mas o ano começou mal, em termos de segurança rodoviária, com a operação de Natal e Ano Novo a registar um macabro aumento do número de mortos nas estradas. A operação Tolerância Zero foi totalmente desacreditada pela insuficiência de meios policiais. Os tribunais continuaram a enviar sinais claríssimos aos condutores de que o homicídio e outros crimes rodoviários não são de facto punidos judicialmente.

As estatísticas mostram que, ao contrário do que o governo esperava, o número de desastres e de mortes aumentou em vez de diminuir. O LNEC publicou um estudo que revela que mais de 60% dos condutores conduzem em permanente excesso de velocidade. Por outro lado, o EuroStat informou que Portugal é o país onde o consumo de álcool é mais elevado em todo o mundo.

Confrontado com a falência da política de segurança rodoviária seguida durante o ano, o MAI lançou durante um mês, em Novembro, uma operação desesperada chamada "Tréguas à Vida" autuando indiscriminadamente os condutores que conduzissem em excesso de velocidade. Porque de trégua se tratava, na concepção das autoridades, a guerra nas estradas retomou o seu curso de forma macabra matando num só dia, no início de Dezembro oito pessoas no IP4.

Durante todo o ano, em termos de educação rodoviária, viu-se um único autocarro da Prevenção Rodoviária Portuguesa surgir solitário à porta das escolas com alguns panfletos para distribuir, e uma tíbia campanha de out-doors alertou pela enésima vez para o problema da condução sob o efeito do álcool.

O ano termina com um imbróglio político sobre uma fundação misteriosa, dinheiros mal-parados, suspeitas de auto-favorecimento, e demissões de membros do governo.

A ACA-M vem pedir que paremos por um pouco e nos perguntemos porquê.

Porquê a falta de investimento do Estado Português em matéria de segurança, prevenção e educação rodoviárias?

Porquê a passividade da população perante a incapacidade de estancar a sangria nas estradas?

Porquê tanta dependência mental, social e económica do país em relação ao automóvel, que é tão usado como instrumento de agressão e de auto-destruição?

Porquê o silêncio dos partidos políticos, do parlamento, das oposições, da Presidência da República?

Face à vulgarização da tragédia rodoviária, há uma tentação frequente de fechar os olhos como atitude de auto-defesa e de fuga às nossas responsabilidades cívicas e humanas.

Mas não deixa de ser clamoroso o silêncio e a desresponsabilização dos partidos políticos. Como avestruzes de cabeça escondida na areia, receiam perder votos se se pronunciarem sobre o problema do excesso de velocidade, do álcool ao volante, da condução agressiva, ou da impunidade provocada pela falta de policiamento e de ausência de condenação.

Durante toda a discussão recente sobre a criação e o financiamento da Fundação de Prevenção e Segurança, criada pelo MAI, não houve um momento em que um membro do governo ou um opositor político se tivessem referido ao problema rodoviário que levou à criação da fundação. Não houve uma só palavra pronunciada sobre a necessidade urgente - imposta pela União Europeia - de aumentar o investimento estatal e autárquico em prevenção e segurança rodoviária. A polémica da Fundação Prevenção e Segurança é, na perspectiva da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, a árvore que esconde a floresta.

Enquanto Portugal assistia assim a duelos políticos confrangedores, chocavam por dia mais 240 automóveis e morriam por dia mais quatro condutores e peões. Porque os políticos não têm a coragem de assumir colectivamente a responsabilidade de terem contribuído para a presente situação e de não fazerem nada para a alterar. Mas também porque ainda não perceberam que ganharão votos no dia em que fizerem desta questão - nacional, como disse - a sua bandeira política e cívica.

Amanhã irão morrer mais quatro portugueses nas estradas. E nos próximos dias este número irá aumentar para o dobro, como é habitual todos os Natais. E assim irá acontecer durante o próximo ano, enquanto as propostas de solução não chegarem à agenda dos candidatos às eleições presidenciais, às eleições autárquicas, e parlamentares.

A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados pede assim que os portugueses reconheçam que cada um de nós é parte do problema que é a violência rodoviária. Só assim podemos ser parte da solução, que é a pacificação das nossas relações sociais nas estradas e ruas do país.