Fico no aguardo • 2023 • serigrafia • 66 × 48 cm cada
Sorrir e olhar
Seu desempenho no trabalho nunca foi dos melhores.
Dois meses atrás, o departamento de Gabriel havia sido convidado a participar do congresso nacional de recursos humanos. Das 7 horas de palestras que viu, o que mais lhe agradou foi a fala de Alessandro Matoso, “o decifrador de pessoas”, um dos maiores especialistas de inteligência não verbal do Brasil.
Desde então, convencera-se que a longa estagnação no emprego decorria de sua incorrigível retração, associada a uma antipática expressão facial e à incapacidade de olhar nos olhos. Odiava ter que lidar com o Fernando da supervisão geral, uma daquelas pessoas que grudam determinantemente o olhar quando falam. Se havia que realizar pedidos ou explicar requerimentos, quase sempre preferia os meios remotos de comunicação, como o ramal interno, ainda que fosse uma prática mal vista pelos colegas. Nas reuniões quinzenais de subequipe, procurava sentar-se no fundo e fingir anotar coisas no caderno a fim de evitar um descuidado tropeço visual. O olhar oblíquo e agitado parecia não caber em sua cara, sentia uma profunda agitação como ao se cobrir em uma noite de outono, quando só o lençol não basta para o frio e o edredom esquenta demais.
Tinha sonhado outra vez com seus dentes caindo de domingo para segunda. Os dois caninos inferiores pareciam gomos de jaca mole. Acordou incomodado com a persistência do arquetípico sonho e, durante o café, concluiu que dessa vez se tratava de um aviso, um chamado à responsabilidade: precisava mostrar os dentes, encarar os olhares, alinhar os corações.
No horário do almoço, saiu mais cedo que o costume, disse que iria encontrar sua mãe. Foi até a livraria do shopping comprar o último livro de Matoso, “como se tornar um decifrador de pessoas: 50 passos para interpretar e otimizar sua linguagem corporal no trabalho”. Na pracinha atrás do escritório, começou a analisar sua aquisição durante os minutos livres que ainda sobravam. Notou que respeitava a dica número 12, sentar-se com o corpo totalmente recostado na cadeira ao falar com alguém. Pelo que lembrava, não era de seu costume sentar na ponta da cadeira, como quem estivesse apressado a ir embora. Na orelha, leu uma das dicas em destaque, “A primeira coisa que devemos fazer para mostrar tranquilidade é sorrir. Os primatas, inconscientemente, quando querem ser percebidos como uma não-ameaça, mostram os dentes”.
Seu problema mesmo era esse, era a cabeça enfiada no peito, a falta de dentes — dentes sorridentes no caso, pois leu certa vez que os macacos quando abrem a boca e mostram os dentes estão na verdade apavorados. O que separava, então, os dentes da tranquilidade dos dentes do pavor?
Confuso com as nuances que o sorriso pode guardar, decidiu folhear o capítulo 4, “Comportamento ocular”. Na página de rosto, havia uma grande córnea preenchida por um céu azul com algumas nuvens. “O olhar revela o que se passa na alma”. Imaginou rapidamente sua alma como uma bola de pelo preto, tal qual as que seu gato costumava regurgitar pelas manhãs. Considerou logo em seguida que estava mais uma vez punindo a si mesmo. Imbuído de alguma auto-generosidade, retomou a leitura, mas sem dar muita atenção às palavras que os olhos batiam. Na mente, prefigurava sua volta triunfante ao trabalho, sorrindo para todos de um jeito tão natural, com o queixo apontando para o norte, gargalhando com seus companheiros de sala sobre a baixíssima qualidade da máquina de café, recebendo convites para o happy hour, que prontamente tinha o prazer de recusar, para depois de carinhosas insistências dizer: “tá bom, mas só um pouquinho!”.
Aquelas imagens lhe alegraram, ficou contente em vislumbrar-se no grau máximo de extroversão que aquele espaço poderia acolher. Voltava confiante para o escritório, orgulhoso de ter identificado seus problemas e sem demora começar a consertá-los. Assim que passou a catraca, no entanto, encontrou o Sandro da produção de eventos. Cumprimentou-lhe com um oi mudo e um imperceptível gesto de mão, mas logo virou, voltando-se para a recepção, sem sorrir e sem olhar. Como odiava Sandro, meu deus. Sua estranha mania em sugerir listas e rankings um tanto esdrúxulos, como os melhores 14 filmes de ação ou as 9 melhores canções de 2020. Listas de números quebrados, talvez porque achasse isso diferente, inventivo, criativo, não sabia. Já não gostava de elaborar listas, pensar o que é melhor o que é pior, se fica de fora se entra na lista. E ainda com essa soberba, evitando números redondos como se isso fizesse dele uma pessoa melhor. No elevador, olhava fixamente para o chão, reparando o tapete gasto. Precisavam trocar isso. Por sorte, entre ele e Sandro havia uns três desconhecidos que delimitavam a interação.
Até o fim do expediente, não saiu de sua cadeira e ninguém foi a sua mesa. Achou melhor assim, pelo menos enquanto ainda não dominava totalmente as regras corporais de Matoso. Já no metrô pra casa, sacou o seu livro. Ficara impressionado com alguns dados: vocês sabiam que leva 7 segundos para que uma pessoa forme uma impressão de um desconhecido, sendo a linguagem não-verbal a que mais peso tem em nossa comunicação? Na palestra que assistiu no congresso nacional de recursos humanos, fixara mentalmente que 58% de nossa comunicação vêm da linguagem corporal e 37% do tom de voz.
Estava a ler novamente sobre contato visual e a técnica do triângulo invertido no rosto do interlocutor, quando se perdeu em seus pensamentos. Em que bolso seria melhor carregar seu celular? Os celulares, quando em contato direto com a pele, seriam capazes de algum tipo de contaminação? Em quantos anos esse contato poderia produzir algum problema de saúde? Será que ainda estamos só no começo de uma epidemia de doenças causadas por aparelhos de celular e sinais que ainda não temos informações suficientes para decretar sua total inofensividade?
A semana foi passando e Gabriel, mais confiante. Parou de tocar o rosto e esfregar o nariz. Deixou de cruzar os braços nas reuniões presenciais e só então percebeu como batia os pés com frequência. Quando precisou falar com a chefe de departamento, notou também sua dificuldade em ficar de pé sem pendular entre uma perna e outra, o que transmitiria forte intranquilidade. Na quarta-feira, foi comer feijoada com o resto de sua equipe. Era aniversário de um dos estagiários. Procurou observar seu contato visual. Ainda sofria para estabelecer a regra dos 4 segundos de contato máximo ou para deslizar sem esforço entre os vértices do triângulo invertido. Cansava rápido do contato visual, concentrando-se em desenhar na mesa com a água condensada do fundo do copo ou lascar o revestimento envernizado da cadeira. Ao menos, percebia sua dificuldade com maior atenção. O Sidney da recepção comentou que ele estava diferente, segundo ele, mais disposto, animado. Ficou feliz em notar que a inteligência não-verbal não se trata de uma pseudociência charlatã. Seu progresso era visível! Bastava apenas alguma melhora aqui e ali e pequenos ajustes na gesticulação das mãos, que por vezes passavam a linha da cintura.
No começo, foi difícil decidir qual imagem Gabriel mentalizaria para desenvolver seu “sorriso genuíno”. Apesar de se considerar uma pessoa razoavelmente bem-humorada, nada lhe vinha. Acabou por eleger um vídeo visto uns dois dias atrás no celular, de um senhor que explodiu o quintal tentando matar baratas com gasolina e fogo. No caminho para a copa, desfilava com seus dentes à mostra, lembrando como o fósforo lançado pelo aposentado do vídeo destruiu o singelo jardinzinho de grama. A ideia não era má, “poderia ter feito o mesmo” pensava. “Imagine ter uma infestação de baratas, por deus”.
Se resultado de seu esforço ou não, na outra sexta, a Tayná de Inclusão e Diversidade passou por sua mesa e disse que a turma dela ia fazer uma despedida pro Castro. Ele ia ser transferido para a sede de Araraquara e não vinha mais a partir da semana seguinte. “A gente vai ali no bar do gordinho, depois, vamos?”. Olhando fixamente para a pequena cicatriz na sua testa, Gabriel disse que sim, “mas não posso ficar muito por causa do meu gato”. Tayná esticou o pescoço e, já com metade do corpo pra fora da sala, disse “Ah, é mais para dar um abraço e comer um pastel mesmo, vai lá, sim”. Girou a cadeira esticando as pernas; aplicara com desenvoltura o contato ocular focalizado, mas só havia dado conta mais tarde das mãos cruzadas sobre a mesa. “Será que foi por isso que a Tay saiu tão rápido?”. Ele simpatizava com Castro, sentia alguma conexão estreitada pela timidez de ambos. Gostavam de falar sobre séries televisivas e promoções de eletrônicos. Além do mais, fazia tempo que não ia no gordinho. Em tempos passados, pedia muito o especial de carne, mas achava que o recheio ao longo desses anos havia caído de qualidade. Passaram a usar azeitonas com caroço, o que era um enorme pecado, além de perigoso, e os pedaços de ovo cozido diminuíram de três para dois. Não se conformava como donos de negócios privilegiam somente ganhos financeiros em detrimento da qualidade de seus produtos. Tinha convicção, por exemplo, que o bis foi progressivamente diminuindo de tamanho e, ao mesmo tempo, ficando com gosto de margarina. Nem as gemas dos ovos escapavam hoje em dia, artificialmente pigmentadas de laranja, passando a falsa impressão de serem caipiras.
Antes de ir para o bar, pesquisou sobre Araraquara, enfim, para poder puxar algum assunto, quem sabe. Entre alguns eventos históricos, batalhas e lendas, reteve que a cidade é famosa pelas plantações de laranja e pela coxinha dourada do bairro Bueno de Andrada. Nada muito empolgante, como deve ser mesmo a vida por lá. Quando chegou no gordinho, pegou um lugar na esquina da mesa. Deu um oi generalizado e discreto ainda de pé. Na cabeça, a explosão das baratas ajudou a firmar um sorrisinho. Pediu um pastel de carne com cheddar e ficou por ali tipo uma hora. Viu-se um pouco embolado, dada sua posição espacial, no papo da Julia e da Irene, que falavam da taxa de desempenho do último mês na equipe de atendimento. Reclamaram muito da atualização do Capterra, que deixou o CSAT sem ser contabilizado por quase 10 dias, e do Edu, gerente da tarde. Gabriel basicamente não falou, mexia o torso ora para direita, ora para a esquerda, tentando alinhar-se. O Castro sentou na outra ponta e não teve chance alguma de comentar com ele sobre sua transferência, tampouco sobre as coxinhas de Bueno de Andrada.
Embargado pelo chacoalhar do metrô, ficou chateado sei lá com essa vida. Apesar dos esforços lançados nas últimas duas semanas, sentia que algo ainda atravancava seu desenvolvimento pessoal. Uma vez na faculdade disseram que ele era misterioso. Seus tios de Jacarézinho gostavam de repetir que as pessoas quietas só eram assim porque não tinham nada de interessante para falar mesmo. Seria o seu caso? Era verdade que não se achava particularmente especial, mas não tinha lá muita vontade de se expressar em voz alta. Até poderia falar por horas, se quisesse, sobre certos assuntos, como macrogestão de rh, técnicas de headhunter executivo, targeting estratégico, séries de crime e investigação, new metal, gatos etc.
Começou a duvidar se seu problema não era de ordem verbal. Esses dias viu que uma amiga da faculdade, que agora trabalhava no rh da 99, publicou umas videoaulas de comunicação empática pros motoristas parceiros. No TCC, ele até chegou a estudar um pouco sobre comunicação assertiva, mas seu tema foi mudando. No fim, se deixou influenciar pelo orientador e terminou escrevendo sobre Teoria U (aplicada a projetos de liderança), conceito que hoje já nem se fala tanto. Não que tenha ficado ressentido com suas escolhas, mas algo dizia agora que negligenciara seu interesse pela comunicação. Se tivesse insistido, talvez não passaria por essas provações, “talvez até estivesse numa empresa maior, ganhando melhor. Hoje só se fala de soft skills, people skills”.
Chegando em casa, foi procurar uma live organizada pela CareerBuilder sobre a importância das soft skills no mercado de trabalho que tinha assistido na pandemia. Queria achar o link de novo, mas não achou o link. Pediu uma pizza da marco pinotti e dormiu.
O fim de semana foi arrastado, mal conseguiu ler seu livro.
Na segunda, cruzou o corredor mentalizando a explosão do jardim, mas seu sorriso não firmava. Estava com a cabeça longe e o queixo afundado, “será que baratas são capazes de infestar gramados?”.
Conforme divagava sobre infestações, o olhar descascado de Gabriel recobrava sua presença. Ao chegar na copa, sua mente já estava nos carunchos que atacaram a despensa ontem à noite. Ficara impressionado com os furos perfeitamente redondos que eram capazes de esculpir no feijão, circunferências exatas, com o mesmo diâmetro do seu exoesqueleto. Caçou um por um, mas não jogou o feijão fora. Viu na internet, não faz mal nenhum comer feijões depois dos carunchos. Em suas pesquisas, aprendeu que em Portugal chamam eles de gorgulho e que caruncho vinha do latim cariēs. Fazia tanto sentido, aqueles feijões cariados, tão similares aos buraquinhos de sua obturação velha.
Pedro Andrada é Artista Visual e Educador, formou-se em Ciências Sociais (2010) e em Artes Plásticas (2015) pela USP. Em 2018, concluiu o mestrado em Poéticas Visuais e atualmente cursa o doutorado na mesma instituição, onde se esforça arduamente dia após dia, procurando amenizar a contradição de pesquisar (trabalhar) sobre os temas da improdutividade e recusa ao trabalho. Participou de diversas exposições, mostrando coisas artísticas em espaços como Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, Centro Cultural da Caixa, em São Paulo, Recife e outras seis capitais, Sesc Pinheiros e Sesc Ribeirão Preto, Centro Cultural São Paulo (CCSP), Galeria Vermelho, Rat Trap (Colombia), MASP entre outros. Como se não bastasse, atua como pesquisador na área de mediação e programas públicos em instituições de arte. Foi supervisor do educativo na 31ª Bienal de São Paulo e coordenou entre 2016 e 2018 os programas de oficina, o ciclo de cinema e os encontros de mediação no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Nos últimos anos, tem organizado cursos livres, instalações e oficinas em diferentes espaços e instituições culturais. É sócio do Ateliê Dragão, que fica ali na Barra Funda. Passa lá um dia.