A compreender as origens da Internet e do computador pessoal a fim de mensurar por que o Vale do Silício mira em inteligência artificial e "aprimoramento" humano nos respectivos projetos tecnocientíficos atuais;
A entender a noção de rede distribuída como base conceitual para a construção das plataformas digitais;
A relação direta entre as contraculturas dos anos 60 e a utopia digital que abastece Big Techs como Google, Amazon, Apple e Facebook.
Houve um tempo em que as pessoas escreviam umas às outras em folhas de papel, usando instrumentos chamados de lápis ou caneta, e precisavam se deslocar para o centro da cidade a fim de, mediante a colocação do papel em um envelope lacrado com cola, permitir que o serviço postal encaminhasse a outra pessoa seus pensamentos. Às vezes, isso podia levar bastante tempo.
Em vários filmes e séries de ambiente futurista como Black Mirror, The Feed ou Electric Dreams, é comum que os personagens jovens ou crianças lidem com estranhamento com esse tipo de informação.
Mas o cenário descrito está cada vez menos ficcional e mais próximo da realidade.
Certamente, parecerá surreal à geração que nasceu na década de 10 que as aceleradíssimas mensagens de WhatsApp – ou o que o eventualmente substituir nos próximos anos – demoravam dias para chegar ao destinatário. Que um telefonema podia simplesmente não encontrar destinatário – e alguém podia passar horas em uma cafeteria sem saber se espera ou não a outra pessoa chegar, porque não tem meios para confirmar. Ou ainda toda parafernália que seria necessária em termos de equipamento e pessoal para fazer o que uma criança faz em dez minutos no Tik Tok.
As coisas estão mudando rapidamente. E os futuristas do Vale do Silício, hoje os principais representantes desse imaginário e as inovações técnicas correspondentes, não hesitam em projetar um mundo ainda mais digitalizado com o passar do tempo. Suas ideias, aliás, beiram à megalomania: upload da mente para computadores, superação dos limites do corpo com upgrade biotecnológico, colonização de Marte.
É essa incursão que propomos no nosso primeiro capítulo em que investigamos a cultura digital. Entender o mundo em que estamos situados significa invariavelmente compreender quais as ideias que gestaram o computador pessoal, a Internet e a emergência das plataformas digitais.
Por volta dos anos 40 do século passado, pensadores de diversas áreas – como matemáticos, engenheiros, neurologistas – começaram a especular acerca da possibilidade de construir uma ciência adequada à informação. Seu objetivo era ambicioso: buscavam explicar, por meio desse conceito interdisciplinar, tanto os organismos vivos quanto os não vivos.
Um dos primeiros a pensar a questão, por exemplo, foi o matemático Alan Turing, cuja importante participação na Segunda Guerra Mundial por meio da criptografia foi recentemente contada pelo filme O Jogo da Imitação. Embora a película não tenha dado destaque a esse ponto específico, o título parece uma menção implícita ao famoso teste de Turing. Segundo ele, se estivéssemos em duas salas separadas e uma máquina fosse capaz de responder a uma pessoa de tal modo que se tornaria imperceptível sua diferença em relação a um ser humano típico, para Turing poderíamos chamá-la de inteligente. A inteligência, portanto, não seria uma propriedade exclusiva dos seres humanos, nem estaria relacionada especificamente ao cérebro ou ao espírito, mas algo que poderia ser replicado em artefatos técnicos mediante uma série de operações lógicas que iriam se autoaperfeiçoar até atingir a indissociabilidade.
Com o objetivo de alcançar uma compreensão ampla da questão da informação, foi então inventada a disciplina da cibernética pelo norte americano Norbert Wiener, entendida como a área que permitia atravessar as diferenças entre sistemas vivos e não vivos capazes de auto-organização. A palavra vem do grego kubernetikos, que literalmente remete à atividade do timoneiro, pilotagem do navio, mas em seguida recebeu a conotação de arte de governar os seres humanos. Aplicando noções de termodinâmica e lógica, Wiener buscava encontrar o equilíbrio entre inputs, outputs e feedbacks permitindo ajustar de forma ótima um sistema. Na época, ele definiu a cibernética como ciência do controle.
É importante situar a cibernética como horizonte inicial de toda problemática da cultura digital porque ela permite ressaltar pelo menos duas características centrais que se aprofundaram no imaginário do Vale do Silício: o atravessamento entre o vivo e o não vivo, ou o humano e a tecnologia, e o aprimoramento autorregulado das redes. Noções como ciborgues, androides, aprimorados, inteligência artificial, entre outras, aparecerão em obras de ficção, especulações filosóficas e projetos científicos a partir do primeiro aspecto. A regulação dos algoritmos, por outro lado, pode ser exemplo do segundo, uma vez que envolve um ser não humano capaz de se aprimorar sem a intervenção constante de um agente externo.
A relação entre computação, informática e cibernética ficará marcada durante muito tempo na linguagem com as expressões que usam o radical cyber, como cibercultura, ciborgue, entre outras. William Gibson, por exemplo, irá criar a ideia de ciberespaço em seu famoso romance Neuromancer, uma das primeiras obras de ficção científica a fazer incursão densa no universo digital enquanto possibilidade narrativa. Com isso, Gibson inaugura a zona cultural chamada de cyberpunk, ainda hoje muito presente na estética do cinema (com filmes como Matrix, das irmãs Wachowski), da literatura (por exemplo, Carbono Alterado), da música (com bandas industriais como Nine Inch Nails) e dos games (por exemplo, Deus Ex).
O avanço da ciência engendrada ao longo do século XX no complexo industrial-militar norte-americano levou à transformação do computador enquanto simples máquina de calcular para uma máquina de comunicação. Progressivamente, com o princípio de executar uma série de comandos previamente gravados enquanto programa, o computador passou a separar as funções físicas (hardware) das funções lógicas (software), tornando a partir disso uma “máquina universal” (LOVELUCK, 2018). Surge então a indústria da informática capitaneada pela IBM.
A ideia da Internet, por sua vez, inicia por meio da construção do time-sharing, modelo que envolvia o compartilhamento de recursos em rede por diversos terminais. A construção da noção de rede distribuída, em que predomina a ideia de que a rede não é dependente de nenhum centro específico, distribuindo-se por pacotes, foi nesse ponto decisiva. O primeiro projeto do qual a Internet foi herdeira foi designado então de Arpanet, uma das bases para a rede atual, assim como a introdução do chamado protocolo TCP/IP, que organizava a circulação e a formação e reconstituição dos pacotes transmitidos (LOVELUCK, 2018).
Para se ter uma ideia mais visual acerca do conceito de rede distribuída que inspirou a formação da Internet, a famosa esquematização de Paul Baran – hoje viralizada e memetizada sob várias outras formas – pode servir como guia:
Curiosamente, a noção de rede distribuída era conveniente do ponto de vista militar, dada a possibilidade de – mediante uma guerra nuclear – perder-se grande quantidade de dados importantes em um ataque inimigo a uma sede de informações (TUNG-HUI HU, 2015). Agora, com a possibilidade de distribuir os dados em pacotes em diferentes pontos de rede, a dependência em relação a um computador central diminuía. Durante algum tempo, muitos pensadores como, por exemplo, Paul Virilio (1999) ligavam a Internet a propósitos estratégicos militares – e até hoje alguns teóricos sustentam noções similares com a de "guerra híbrida".
No entanto, a hegemonia militar na construção da rede arrefeceu nos anos 60. Desde então, os projetos passaram a ser mais associados ao ambiente das contraculturas, que emergiu nos campi universitários norte-americanos. As contraculturas podem ser definidas como um conjunto de ideias libertárias que envolviam a defesa de maior liberdade individual, autonomia pessoal, ampliação da autoexpressão e crítica dos dispositivos de disciplina da sociedade das décadas anteriores. De perfil majoritariamente jovem, seus adeptos envolviam-se com experimentalismo nas artes, nas relações afetivas e na cultura, buscando construir alternativas sociais que escapassem dos modelos tradicionais então vigentes. A Guerra Fria e a ameaça de destruição nuclear era o horizonte do qual partiam esses jovens, buscando o pacifismo e a crítica das burocracias. O chamado Verão do Amor, em 1967, foi considerado um dos episódios marcantes para caracterizar esse ciclo.
Como nota, Loveluck (2018) foi no mesmo período e nos mesmos lugares – São Francisco, Berkeley, Stanford e Palo Alto – que ocorreu a evolução crucial da história da informática. Todos eles estariam "impregnados dos valores de descentralização e abertura, assim como livre-circulação da informação". Alguns dos seus principais atores, como Steve Jobs, da Apple, relacionavam a libertação dos indivíduos com a libertação pelos computadores, resumindo isso na expressão ambígua computer liberation. Barbrook e Cameron (1996), mais acidamente, designam esse complexo cultural como "ideologia californiana", combinando a liberdade de pensamento dos hippies com o zelo empresarial dos yuppies por meio da aposta nas tecnologias como fonte para a emancipação dos indivíduos. O cineasta Adam Curtis produziu também uma série de documentários que conectam a cultura do Vale do Silício e seu redesenho das relações de mercado a partir dos anos 60, com as contraculturas de inspiração New Age.
A criação do PC – Personal Computer, computador pessoal – torna-se um objetivo portanto que é ao mesmo tempo tecnológico e político. Ele avança o projeto de "levar a computação para o povo", fazendo com que o que era apenas um instrumento de alguns para diversão se tornasse uma ferramenta para o cotidiano.
Halt and Catch Fire (2014) é uma série que busca reconstituir ficcionalmente o contexto do surgimento das grandes inovações da informática a partir de uma pequena empresa que se entrelaça nas transformações como a criação do laptop, a disseminação da Internet ou dos grandes buscadores.
Os anos 1980, 1990 e 2000 viram proliferar sonhos e esperanças acerca do espaço virtual criado pela disseminação da Internet.
Pierre Lévy e Manuel Castells, por exemplo, ficaram muito conhecidos por associar a emergência do espaço virtual como uma chave de abertura de possibilidades para a criação de uma democracia mais forte que a representativa, com ampla participação e se aproximando inclusive do ideal de democracia direta da Atenas antiga. Lévy cunha, por exemplo, o conceito de "inteligência coletiva" para pensar como a formação de redes era capaz de abrir, por aglutinação, capacidades que os indivíduos sozinhos não seriam capazes de alcançar. O somatório de inteligências individuais produziria uma inteligência comum que poderia ser compartilhada por todos, ultrapassando os limites que o trabalho isolado poderia proporcionar sem com isso perder a autonomia pessoal.
Henry Jenkins (2009) exemplifica a formação de fóruns para investigação de spoilers como um experimento da inteligência coletiva que reconstrói o consumo de produtos televisivos em novos termos. A partir de um estudo de caso do reality show Survivor (2000), da rede norte-americana CBS, Jenkins examina como as comunidades de fãs (fandoms) empenharam-se em descobrir detalhes que antecipavam os resultados (spoilers), desenvolvendo múltiplas estratégias que combinavam habilidades individuais com grandes debates sobre confiança na informação, verificação de fontes e análise detalhada das imagens que eram divulgadas pela própria emissora. Embora Jenkins recuse estabelecer uma hierarquia entre atividades sérias e divertidas, ele próprio reconhece que a cultura participativa dos fãs poderia incidir sobre assuntos aparentemente isolados das redes, como a política e o direito.
Talvez um dos principais emblemas desse período da Internet tenha sido a cultura dos blogs. Iniciados como espécie de diários pessoais, gradualmente foram se tornando espaços de debate público e exigindo adaptações da mídia tradicional. No Brasil, sua "década de ouro" foi entre a de 2000. Jenkins (2009) chama de cultura da convergência "o fluxo de conteúdos por meio de múltiplas plataformas de mídia" e também a "cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam". Ou seja, tudo é muito dinâmico e não está mais restrito a um único meio. O que vemos na televisão, no rádio, nas revistas ou nos jornais já não basta, pois complementamos todo tempo a experiência com outros tipos de mídia. A convergência é o encontro com atrito entre tudo isso. Hoje, inclusive, poderíamos até inverter a lógica: os meios tradicionais, em geral, complementam a experiência das novas mídias. Com os smartphones, é comum a experiência das duas telas simultâneas: enquanto vejo as notícias do dia no telejornal, passo o feed do Facebook ou do Instagram. Os blogs parecem ter sido uma das primeiras experiências em que o novo e o tradicional convergiram, como hoje ocorre frequentemente com podcasts e canais do Youtube.
Hossein Derakhshan foi preso em 2008 e condenado a 20 anos de prisão, em Teerã, no Irã, pelos conteúdos que publicava no seu blog. Seis anos depois, abruptamente perdoado e libertado da prisão de Evin, sentou-se diante do computador e postou no seu novo blog. Sua sensação foi de profunda decepção. Enquanto em 2008 "Blogs valiam ouro e blogueiros eram como estrelas de rock", com uma audiência de cerca de 20 mil pessoas por dia, a nova experiência foi a indiferença de "três curtidas" no Facebook – tendo seu texto exposto na rede como um anúncio comercial qualquer. Derakhshan (2015) lamenta a perda dos blogs, que eram ferramentas de descentralização e diversidade movidas por meio de uma curadoria distribuída de compartilhamento de hiperlinks, para dar lugar a uma concentração no conteúdo interno à rede social (Facebook, Instagram) cuja visibilidade é muito superior aos externos.
De fato, nesse breve ínterim, a Internet vai aos poucos perdendo seu caráter de "livre navegação", expressa na própria escolha para designar o programa em que era executada, para se concentrar em poucos hubs – que são como nós encorpados de uma rede capazes de se avolumar mais que as outras ligações.
Uma pesquisa da Quartz realizada em 2017, por exemplo, divulgada como parte do relatório "Internet Health Report v0.1", da Mozilla, mostrou que 55% dos brasileiros consideravam que o Facebook era a Internet.
Na época, isso soou complementamente inusitado para os usuários mais antigos da rede. Como uma rede social nova, como o Facebook – que sucedeu não apenas redes similares famosas como Orkut e MySpace, mas também as experiências em bate-papos de portais, do MIRC e ICQ, entre outras tantas vivências – pôde tão rapidamente se confundir com uma experiência tão ampla?
De fato, a partir do final da primeira década de 2000, as redes sociais como Facebook, Twitter e Instagram passam a centralizar a experiência interativa dos usuários sob os seus moldes, diminuindo o espaço de curadoria de links, proliferação de blogs, as listas de emails e as newsletters que costumavam fazer parte da vivência cotidiana. Além disso, a maioria das buscas e navegação se concentra no Google, fazendo com que o algoritmo dirija quase ininterruptamente a leitura do usuário. Siva Vaidhyanathan (2011) utiliza a expressão "googlelização de tudo" para caracterizar essa superconcentração dos conteúdos da rede em poucos hubs.
Mais contemporaneamente, tem-se usado a expressão "plataformas digitais" para caracterizar esse conglomerado de empresas – representadas sobretudo pela sigla GAFA (Google, Amazon, Facebook, Apple) – que controlam a maior parte do tráfego da rede e hoje são as mais valiosas do mundo.
Figura 5. Fonte: Reprodução.
Para caracterizar o gigantismo desses conglomerados econômicos, hoje se utilizam expressões como "capitalismo de plataforma", "Gig Economy" e "Big Techs", dado o caráter central que vão adquirindo no panorama geopolítico e econômico mundial. Como veremos também mais na unidade trabalho de plataforma, a nomenclatura se deve também à proliferação de serviços que utilizam o mesmo tipo de tecnologia, como Netflix, Spotify, Uber e Airbnb.
BARBROOK, R.; CAMERON, A. The Californian Ideology. Science as culture, january 1996.
DERAKHSHAN, Hossein. Salve a Internet. Piseagrama, n. 8, setembro de 2015. Disponível em: <www.piseagrama.org>. Acesso (20 fev. 2021.)
HU, Tung-Hui. A prehistory of the cloud. Massachusetts: MIT Press, 2015.
JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Trad. Susana de Alexandria. São Paulo: Aleph, 2009.
LÉVY, Pierre. Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2000.
LOVELUCK, Benjamin. Redes, Liberdades e Controle: uma genealogia política da Internet. Trad. Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2018.
"Pesquisa mostra que 55% dos brasileiros consideram que o Facebook é a internet". Portal Imprensa, 24/1/2017. Disponível em: <https://portalimprensa.com.br/noticias/ultimas_noticias/78896/pesquisa+mostra+que+55+dos+brasileiros+consideram+que+o+facebook+e+a+internet>. Acesso em: 14 jan. 2020.
VAIDHYANATHAN, Siva. The Googlization of Everything (and why we should worry). Berkeley: University of California Press, 2010.
VIRILIO, Paul. A Bomba Informática. Trad. Luciano Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.
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Ilustrações: Rogério Lopes
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